quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Vivekananda, o discípulo querido de Ramakrishna. A sua vida e missão. No seu dia de anos 12 de Janeiro

Valiosa palestra proferida na Rússia em 1981 pelo meu mestre Swami Ranganathananda.

Foi em 1863, a 12 de Janeiro, que nasceu, em Calcutta, Narendranath Dutta,  dum  pai céptico mas leitor do grande poeta e místico persa Hafiz e dos Evangelhos, enquanto poesia, e de uma mãe de quem valorizava o domínio sobre si própria, a piedade e o carácter elevado, numa família kayastha, tradicionalmente ligada à escrita e à administração pública. Levou a sua aprendizagem  até ao bacharelato em Artes na Universidade de Calcutá, destacando-se nos estudos filosóficos e na memória retentiva poderosa.
Será no final de 1881, já depois de ter participado, e até como
cantor (e por isso no fim deste artigo encontra uma pequena canção dele, moderna, em vídeo),  no movimento bengali religioso monoteísta do Brahmo Samajde Ram Mohan Roy, Dwarkanath Tagore e Keshab Sen, que foi aconselhado a visitar, com outros estudantes,  Sri Ramakrishna, como um exemplo dum mestre vivo. Mas ao princípio ficou renitente em aceitá-lo como mestre, pois este quando o ouviu cantar entrou em extâse e, depois, levando-o para  a varanda da casa, confessou-lhe ser ele o discípulo que há tanto tempo esperava, e cultuou nele, com a saudação típica indiana, a divindade Narayana. Já na sala com os outros devotos, Narendra perguntou-lhe se ele já vira Deus, respondendo-lhe Ramakrishna que sim, e que quem verdadeiramente aspirasse a Deus, e chorasse até, O poderia ver. Anote-se que a capacidade visionária de Sri Ramakrishna era invulgarmente poderosa  e tem sido assunto de muitos estudos e livros, nomeadamente na obra de Swami Yogeshananda, The Visions of Sri Rmakrishna, onde são relatadas cronologicamente.

Romain Rolland, na sua famosa La Vie de Ramakrishna, p. 229, que leio num exemplar que tem notas de posse e de leitura do meu irmão Carlos ( e muita luz e amor na sua alma, pois já partiu para o outro mundo), descreve assim a intuição do mestre: 

                                   

«No cenáculo dos seus discípulos indianos, em que todos se distinguiram mais tarde pela fé e pelas obras, houve um, excepcional, em relação ao qual a sua atitude foi, também, excepção: pois, ao primeiro olhar, elegeu-o, enquanto que o jovem homem ignorava-se  ainda para o que ele fosse: um chefe espiritual de humanidade: - Narendranath Dutt - Vivekananda.
O Paramahamsa [Ramakrishna], com o seu génio de intuição das almas, que via num só batimento do coração delas desenrolar-se toda a maré do seu futuro, pensava que ante mesmo de reencontrar o grande discípulo na vida, já se tinha cruzado com ele, na matriz dos Destinos.
[Uma subtil idealização-visualização do que pode estar por detrás ou na base causal do desenrolar da vida no plano da incarnação fisico] 
Inscrevo aqui a sua bela visão. Eu [Romain Rolland] poderia, tão bem como os psicólogos, tentar explicar pelos meios correntes. Mas que importa? Sim, nós sabemos que uma vigorosa visão que se impõe, cria e faz nascer o que ela viu. Num sentido mais profundo, os profetas do que será foram os verdadeiros criadores do que não era ainda, mas hesitava em ser.
[Outra tentativa de aproximação à matriz causal do que sucede na incarnação terren: o olhar quente do mestre jardineiro faz germinar potencialidades, sementes]. A torrente que foi o destino genial de Vivekananda ter-se-ia perdido nas entranhas da terra se o olhar de Ramakrishna não tivesse, num golpe de machado, fendido a rocha que o bloqueava, e pela brecha fazer brotar a torrente da alma.»

Na segunda visita de Narendra (Swami Vivekananda), o mestre, Sri Ramakrishna tocou-lhe e Narendra começou a ver tudo à roda e a desaparecer, pelo que começou a gritar que tinha os pais em casa para tratar, obrigando Sri Ramakrishna, rindo-se, a fazê-lo voltar à sua consciência de vigília normal. Regressando a casa, ainda mais desconfiado ia em relação a Ramakrishna. Seria um hipnotizador ou um doido?  Todavia na terceira vez que se encontraram ainda foi pior, pois o mestre, tocando-lhe, fê-lo perder a consciência e aproveitou esse estado para lhe fazer algumas perguntas ao seu eu espiritual. Narendra, apesar de impressionado fortemente, continuou com dúvidas e não tinha receio de questionar as visões de Sri Ramakrisna como sendo alucinações, mas um dia que ridicularizava o ensinamento não-dual, ou seja, aquele que afirma que Deus ou o Absoluto está em tudo, ou se vê em tudo, ou mesmo é o único que existe em tudo,  Ramakrisna Paramahamsa veio e tocou-o, fazendo-o entrar num estado não dual, no qual Vivekananda via a Presença Divina em tudo, estado muito expandido de consciência este em que permaneceu alguns dias. 

                                         

Assim se foi convertendo ao reconhecimento de Sri Ramakrishna como seu mestre, sobretudo após a morte do pai em 1884, realizando  que Ramakrishna era o seu intermediário divino, o guru,  e teve ainda dois anos de aprendizagem e formação, nomeadamente a aceitar e sentir a Divindade feminina, Shakti, Kali, como Deusa pessoal, tornando-se  o discípulo mais querido e principal, embora com vários outros bem próximos,  protagonistas de muitos diálogos e histórias das biografias do mestre, nomeadamente na famosa obra O Evangelho de Ramakrishna, Sri Ramakrishna Kathamrita, em bengali, escrita por Mahendranath Gupta, uma obra excepcional na sua simplicidade de diário dos eventos e diálogos, e que cedo circulou no Ocidente, seja nos resumos-biografias realizados por Max Müller e Romain Roland, seja pelo próprio Evangelho, traduzido para muitas línguas.  

Com a desincarnação de Sri Ramakrishna em 16 de Agosto de 1886, que mesmo assim antes de morrer iniciara doze discípulos como swamis, monges,  os  discípulos foram obrigados a deixar a casa onde se reuniam em Cossipore, já que devotos e admiradores esfumaram-se e com eles o dinheiro que sustentava o grupo, e assim uns dispersaram-se, outros assumiram responsabilidades familiares ou profissionais, e só alguns resolveram manter-se juntos, firmes na devoção inquebrável ao mestre (tanto mais que tinham absorvido um pouquinho das suas cinzas...), mudando-se para uma casa de renda barata que reconstruiram em Baranagar, tornando-se o primeiro mosteiro ou Math.  

Será após a convocação e auscultação dos discípulos e devotos, a 1 Maio de 1887, em Calcutá, hoje Kolkota, que é fundada formalmente a Ordem Ramakrishna, ou Ramakrisna Math, sendo ele o Presidente,  Yogananda o Vice-Presidente, cabendo a Bramananda a presidência de Belur Math, o centro em Calcutá. O lema ou mote da Ordem e da Missão escolhido foi e é Atmano Mokshartham, Jagad Hitaya Cha,  que pode ser traduzido como: Libertação pela realização do espírito  e  prosperidade para toda a Humanidade" . Hoje em 2022 há 214 centros no mundo, dos quais 163 na Índia.

Entre 1888 e 1891 andou frequentemente a peregrinar e a meditar pela Índia, sentindo a necessidade de trabalhar tanto o espírito como a pobreza social gritante, até receber a intuição de que deveria viajar por barco (via Japão, China, Canadá) e participar (e viria a ser como representante do monasticismo da Vedanta) no Primeiro Parlamento das Religiões, intuído e projectado por Charles C. Bonney, um discípulo ou seguidor do notável cientista visionário Swedenborg, e realizado em Boston, USA, em Setembro 1893, durante 17 dias de sessões, discursando com brevidade e simplicidade mas grande sucesso na tarde do 1ª dia, 11 de Setembro (que se tornou Dia Mundial da Fraternidade), perante 7.000 pessoas, transmitindo de unidade das religiões, pois por todas elas se pode chegar a Deus ou  manifestar as Suas qualidades e de tolerância e universalismo. Interveio ainda doze vezes, e com tal sabedoria e convicção que o New York Herald noticiou assim: "Vivekananda é sem dúvida a mais grandiosa figura do Parlamento das Religiões. Depois de o ouvirmos sentimos quão tolo é enviar missionários para esta nação tão culta (learned)».
A mensagem no dia do encerramento, a 27 de Setembro, tornou a ser
breve e simples, sete parágrafos apenas, realçando que cada fiel de uma religião devia crescer nela e apenas assimilar o espírito das outras preservando contudo a sua individualidade e o crescimento de acordo com a lei do seu crescimento [o seu swadharma].

Tornou-se então o primeiro grande divulgador do Sanatana Dharma, o Dever ou Ordem Eterna, a espiritualidade indiana, no Ocidente (antes apenas realizada por livros, embora no Parlamento estivessem vários outros indianos, e tivesse passado um ou outro pela Europa), e em especial nos USA, onde viveu três anos de grande dinamismo e sucesso, realizando dezenas de conferências e ensinos, fundando a Vedantic Society em Nova Iorque e publicando vários livros sobre Yoga. Também viajou até Londres duas vezes, em 1895 e em Maio de 1896, fazendo então amizade com Max Müller e, já na Alemanha, com outro orientalista importante, Paul Deussen. De tais encontros escreveu pequenos mas belos e entusiásticos artigos para a revista Brahmavadin, elogiando ambos pelo abnegado e frutífero amor ao sânscrito e à Índia. Dirá mesmo que foi um dos episódios mais agradáveis da sua vida a viagem que fez com Paul Deussen, após se ter juntado a ele em Kiel, através da Alemanha e da Holanda até Inglaterra.
Foi mantendo constante correspondência com os outros monges
indianos, apoiando-os de diversos modos e em 16 Dezembro de 1896, parte de Londres e, via França, Itália, Suez e Ceilão, chega à Índia no final de Janeiro 1897, sendo recebido com grande entusiasmo e veneração por uma população no fundo crescentemente aspirando também já a uma liderança libertadora da colonização inglesa. Irá pronunciar consecutivos discursos, de Ceilão a Calcutta e a Almora, para milhares e milhares de almas, o primeiro em Madras tendo ficado memorável pela envolvência feérica, estimulando a auto-estima dos indianos. Como escreveu Jawahardal Nehru, em Discovery of India, p. 400, «Enraizado no passado e cheio de orgulho na herança indiana, Vivekananda era todavia moderno na sua aproximação aos problemas da vida, e era uma espécie de ponte entre o passado da Índia e o seu presente».

Funda então em 1 Maio de 1897 a Missão Ramakrisna,  destinada ao karma yoga ou trabalho social, mas que trabalha em estreita ligação com a já referida Ordem Ramakrisna e com os seus swamis ou monges e presidentes, a sede de ambas sendo em Belur Math, a uns quilómetros de Calcutá, junto ao rio Ganges e que eu bem conheci. Funda ainda jornais e mosteiros e desloca-se a numerosos locais e instituições. Em Junho de 1899 apesar da saúde fragilizada, decide voltar ao Ocidente para apoiar a obra na USA, onde funda mais centros, e para participar no novo Parlamento das Religiões, ou melhor, Congresso de História de Religiões que se realiza em Paris em 1900.  

Deste Congresso parisiense Swami Vivekananda dará ecos numa carta impessoal para a revista Udbodhana nas quais assinala a resistência ao diálogo em pé de igualdade da Igreja Católica, dominante em França mas que num Congresso recente em Chicago não conseguira afirmar-se como a melhor religião, e que decidira que neste de Paris não havia lugar para «discussões sobre as doutrinas e as vistas espirituais de cada religião». E assim diz que «da Ásia havia apenas três pandits Japoneses presentes no Congresso. E da Índia o Swami Vivekananda.» E menciona então, como observador imparcial, como Swami Vivekananda se erguera para refutar as teorias sem base do alemão Gustave Opert, quando ao culto do Shiva Lingam, expondo o que os dois disseram. Quanto à sua palestra, Vivekananda falou sobre a evolução histórica das ideias religiosas da Índia e como todas derivariam dos Vedas, mesmo as que os negavam. Afirmará também a contemporaneidade, se não mesmo a anterioridade, da Bhagavad Gita em relação ao grande poema em que foi incluída, o Mahabharata, destacando ainda nela a inexistência de qualquer referência ao Budismo.

Regressando em 9 Dezembro a Calcutta, estabilizará então na casa mãe de Belur Math e, embora viajando ainda até ao mosteiro de Almora e aos grandes locais de poder Bodhigaya e Varanasi, já não sentirá forças para participar no Congresso das Religiões de 1901, a realizar-se no Japão. E em 4 de Julho de 1902, seja por causa da saúde em que os diabetes, a asma e até insónias fizeram o seu desgaste, ou porque chegara a hora de partir, depois de ter dado aulas, dialogado e meditado, retirou-se para o quarto e terá morrido enquanto meditava, seja por um aneurisma cerebral, seja porque o seu ser e corpo espiritual abandonou o corpo físico pelo chakra ou centro de forças do topo da cabeça.

   Nascido numa família culta, desde novo com uma capacidade muito grande de leitura, memória, oratória, sensibilidade espiritual e preocupações sociais,  os toques sucessivos de Sri Ramakrishna e o discipulado ascético abriram Swami Vivekananda cada vez mais ao Divino e ao serviço da Humanidade. Foi assim um pioneiro do encontro do Oriente e do Ocidente e da divulgação do Sanatana Dhrama ou sabedoria indiana, em especial do Vedanta e do seu mestre Ramakrishna mundialmente, pois, embora tendo estado sobretudo na USA,  as suas principais obras, em especial o Raja Yoga, saído à luz em 1896, foram traduzidas em toda a parte, nomeadamente em Portugal, nas segundas e terceiras décadas do séc. XX na Editora A. M. Teixeira, onde Fernando Pessoa publicou as traduções de livros teosóficos de influência indiana.  Mas foi o Brasil e a sua Editora O Pensamento (e também a Editora Ananda, com O Ensinamento Espiritual de Ramakrishna) quem se encarregaram de divulgar mais o Evangelho de Ramakrishna (do qual podemos apreciar a bela capa da 3ª edição, de 1936), o qual Swami Vivekananda ecoou e continuou, certamente com diferenças, apesar de ele ter dito que o melhor que ele falara era o que mestre nele dizia...

Entre nós outros seres conheceram sri Ramakrishna e Vivekananda e assim em 1931 era impresso em Leiria um opúsculo A Universalidade da Sociedade Vedanta, do swami Prakashananda, traduzido pelo professor Joaquim Morais da Silva, um leiriense de quem se sabe pouco e que foi membro da Societé Psychique Internationale, e publicou ainda um estudo sobre os casos de levitação.

                                        

Também Luzo Bemaldo, co-autor de um livro de Esperanto, de 1919,  traduziu e publicou em 1935 um belo livrinho de Jean Herbert, de quem parece ser um admirador, e com razão pois Jean Herbert foi dos melhores orientalistas, intitulado Alguns Grandes Pensadores da Índia Moderna, contendo dois capítulos dedicados a Vivekananda e a sri Aurobindo e donde extraí a bela imagem colorida de uma fotografia de Sri Ramakrishna Paramahamsa...

                                      

Devemos mencionar ainda Rajarama Pundolica Sinai Quelecar, um goês que, tendo publicado uma tradução da Bhagavad Gita, recentemente reimpressa entre nós nas Publicações Maitreya, a instâncias de Maria Ferreira da Silva e a partir dum exemplar meu, escreveu e deu à luz  também em Goa, na Imprensa Nacional, em 1963, um esboço biográfico de Swami Vivekananda, valioso, donde selecionamos o prefácio: «A Índia celebra hoje o centenário do Nascimento de Swami Vivekananda, um dos seus mais eminentes filhos, que foi mestre espiritual de muitos Indianos, Americanos e Ingleses. Inteligência viva e penetrante, memória prodigiosa, vontade de ferro, clareza na exposição e discussão das questões difíceis, esse homem que, depois dos Upanishads, foi o único que deu vigor ao pensamento Indiano, proclamava bem alto o seguinte: "Ó jovens, antes de tudo, sede viris. Não esqueçais nunca a glória da natureza humana. Nós somos Deus. Os Cristos, os Budhas não são senão vagas no Oceano Imenso que Eu sou." Palavras maravilhosas encerrando o sentido lato do homem.
Julgo-me feliz, por ter tido ocasião de prestar a minha homenagem a esse grande homem que venerei e continuo a venerar, publicando em poucas linhas, a sua biografia para a geração nova ocidentalizada».
Entre nós, Agostinho da Silva, dedicou-lhe uma pequena biografia, provavelmente a partir da leitura da obra de Romain Rolland, onde diz, numa percepção com influência franciscana e panteísta:«o grande fervor religioso que frequentemente o fazia entrar em êxtase e romper em louvores da Natureza e de Deus não o distraía da criação de escolas, de Universidades vivas em que se estudassem com um espírito novo os grandes problemas da humanidade, de centros de socorro, de instituições médicas; oferecia-se com os seus missionários para as tarefas mais humildes, sem querer saber a quem beneficiavam, certo sempre que, em última análise, só poderiam dar a todos maior força espiritual».
Anote-se que a edição das Obras Completas de Swami Vivekananda, está publicada em oito volumes, compreendendo os seus discursos, conferências, cursos, poemas, ensaios, traduções, com cerca de 500 páginas cada, e
na introdução se explica que a sua obra baseou-se nas Shastras (textos sagrados), na terra mãe e no Guru ou mestre. E os meios de realização principais do espírito eram para Vivekananda a fé (shrada), a força (virya) e jnana ou conhecimento acerca do espírito. Mas são milhares os livros com os ensinamentos e as vidas tão abnegadas de Sri Ramakrishna Paramahansa e de Swami Vivekananda. Esperamos consagrar mais alguns textos dedicados à  imensa e tão valiosa obra dos dois.

                                           

E para finalizar, dando graças, contemplemos e inspiremo-nos com esta bela fotografia antiga de Swami Vivekananda meditando...
Que ele, Sri Ramakrishna e os demais mestres e swamis desta linha espiritual nos impulsionem ou abençoem....
Aum Jivatman Om...

                                   

                      

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