segunda-feira, 22 de julho de 2024

"Pia Desideria" ou "Desejos Piedosos": o III Livro, e os seus 15 emblemas reproduzidos e brevemente comentados.

Com os seguintes quinze emblemas levemente comentados, concluímos a transcrição das gravurinhas devotas do mais editado livro de emblemas do séc. XVII, a Pia Desideria emblematis Elegiis & affectibus SS. Patrum illustrata, isto é, Desejos piedosos ilustrados por emblemas, elegias e sentimentos dos santos Padres, escrita pelo sacerdote e humanista  Herman Hugo (1588-1629) e impressa pela 1ª vez em 1624 em Anvers ou Antuérpia, então o grande centro tipográfico do livro religioso de imagens na Europa dilacerada pela Reforma, quando os religiosos católicos tentavam transmitir as suas ideias  publicando tanto em latim, como em francês, flamengo ou em outras línguas europeias, em Portugal publicando-se a primeira versão só em 1688.

Frontispício da 1ª edição da Pia Desideria, de 1624.

A obra foi ilustrada por notáveis gravadores,  tais como Boetius Bolswert (a 1ª edição), Christoffel Sichem (a 2ª), Antonie Wierix, ora sobre cobre ora sobre madeira. Debaixo de cada emblema estava inscrita em latim a legenda, que era um pequeno excerto da Bíblia (a maioria do Cântico dos Cânticos), desenvolvida depois numa reflexão meditativa em forma de poema e, por fim, comentada com múltiplos excertos (referenciados) de Padres da Igreja e da Bíblia.

Emblema, legenda com versículo bíblico e poema comentário. No emblema um andarilho anímico: quantos de nós não precisamos deles (...) e do apoio-estímulo dos espíritos celestiais?

Dividida em três Livros num caminho ascendente de purificação, santificação e união da alma (com o Anjo que simboliza tanto o Amor, como o mestre Jesus, como Deus), tal como os títulos indicam Gemitus Animae Poenitentis, Gemidos da alma penitente,  Desideria Animae Sanctae, Desejos da Alma Santa, e Suspiria animae amantis, Suspiros da alma amante, cada um dos livros contém quinze emblemas. Tendo publicado já os primeiros trinta, passamos a reproduzir os do último ciclo, Suspiros da alma amante, na realidade o mais pleno de amor unitivo:

O apaixonado deseja saber do ser amado e reencontrar-se com ele. A alma ferida pelo Amor a quem seja, ao mestre ou a Deus sofre enquanto não os vê ou encontra.

Almas mais místicas, e entre nós algumas sorores (tal soror Mariana da Purificação, clarissa do convento da Esperança em Beja), talvez por terem lido (e visto) a Pia Desideria ou o Cântico dos Cânticos, e por tal se justificado, exclamaram: - "Ajudai-me a respirar melhor com o aroma das maçãs e das rosas, senão despeço-me do corpo e morro de amores."
  
Quando a amada e o amado estão juntos e de mãos dadas florescem as coroas de flores aromáticas, ou seja, os centros de força do corpo glorioso resplandecem e irradiam energias e formas orgânicas belas...
A bússola do coração aponta para quem ele ama e guia-nos na sua direcção.
A Alma que ama profundamente facilmente se derrete e alegra sob o fogo do coração e da palavra do Amado.
O Amor em mim não me deixa presa aos bens da Terra ou do Céu,  e só a ti aspiro e suspiro, ó Amor, ó Anjo, ó Mestre, ó Divindade

- Longe do mundo espiritual, até quando peregrinarei por terras alheias em vez de estar mais unido a ti?
A alma que mais intensamente aspira à Divindade pode sentir como infeliz o estado de estar presa do corpo mortal. Como e quando nos podemos libertar deste jugo? Esta interrogação vivenciou dramaticamente essa alma mística do Absoluto que foi Antero de Quental. Se tivesse conseguido estabilizar uma relação devota com uma pessoa espiritual ou divina provavelmente o seu amor não teria fenecido, e sua vida ter-se-ia prolongado e o seu estado espiritual se elevado...
"Sou como uma ave presa por um fio à Terra e quero elevar-me livremente e ascender para Ti", exclama a alma nos seus momentos de maior devoção amorosa e aspiração divina. Este emblema foi fonte de inspiração para algumas gravuras e azulejos.
"Livrai a minha alma da gaiola e prisão, permiti-me dar testemunho do teu nome e ser", exclama a alma para o seu espírito, anjo, mestre e forma pessoal da Divindade...
Tal como a gazela ou o veado anseiam pela fonte fresca, assim a minha alma te deseja, ó espírito, ó Amor, ó bem Amado, ó Divindade.
Aspirar a conseguir aproximar-nos da mestre ou da Divindade e podermos contemplar a sua face, deve ser uma prece incessante, um fogo latente no coração...
Que a nossa oração seja a de pedirmos asas para podermos elevar-nos acima das transitoriedades e inutilidades e podermos comungar mais com a realidade espiritual, perene, divina.
Intuirmos ou contemplarmos  o mundo espiritual e o templo da Divindade, mesmo que seja apenas o seu átrio, já é uma graça e a tal devemos aspirar e merecer pela nossa perseverança em nos mantermos sintonizados apesar de todas as dificuldades. Eis uma das mais belas gravuras para contemplarmos e sentirmos mais os raios unificadores do Amor divino.
Fujamos das multidões e agitação, meu amor, e vamos para os montes e montados, onde as aves e os animais se exprimem livre e harmoniosamente por entre os aromas das ervas e flores. Saibamos elevar-nos aos montes ou estados expandidos de consciência e transfiguradores em Luz, Poder e Amor.

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