sábado, 20 de julho de 2024

Os shamans, e seus poderes, vistos por Marie-Louise von Franz, Carl G. Jung e Mircea Eliade. Reflexões a partir de "Jung, seu mito no nosso tempo."

                                                             

       Marie-Louise von Franz (1915-1998) no seu livro Jung,  seu mito no nosso tempo, que talvez fosse melhor até  o mito que fizemos dele (como alguns criticaram, algo exageradamente, tal Richard Noll),  partilha muita informação seja de Carl Gustav Jung (1875-1961) seja de ela própria e de Mircea Eliade, que merece a nossa reflexão, pois na verdade transmite algumas ideias e ensinamentos ora bons ora discutíveis ora mesmo incorrectos...
O capítulo V, a Viagem no Além, foi o que nos atraiu e, da pequena travessia das suas letras, ideias e vivências, eis alguns dos aspectos questionáveis ou notáveis:
No primeiro parágrafo encontr
amos logo uma afirmação bem discutível: «Ao lado do sacerdote, que vela sobre o ritual e as tradições da sociedade, encontra-se a figura do shaman, que se distingue por uma experiência individual dos espíritos (ou seja do que nós chamamos hoje o inconsciente) e que é especialmente responsável pela cura de indivíduos e de problemas da colectividade».
A fonte ad
optada por Marie L. Franz é Mircea Eliade e o seu livro o Chamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase
Jung e Eliade, dois fumadores do cachimbo shamânico, dialogando nos anos 50 em Eranos

Ora é enganador, ou então reducionista, considerar que os espíritos são o inconsciente. Podemos quanto muito dizer que o mundo dos espíritos não nos está consciente, ou que quase sempre estamos inconscientes deles, mas considerar que entidades individuais e determinadas são apenas aspectos ou configurações que brotariam do inconsciente é errado.
Tal perspectiv
a só poderemos considerar útil se pensarmos e admitirmos que, no nosso mundo inconsciente e pelos sonhos os espíritos podem-se manifestar mais, uma vez que a nossa racionalidade diminui e um funcionamento psíquico acontece no qual, para além de meras associações e limpezas, pode haver um ver, agir e ser influenciado por entidades nos mundos subtis, os quais se subsumiram no termo inconsciente, na linguagem de Freud e de Jung.
Jung e Marie-Louise von Franz diminuem assim o discernimento duma visão de entidades seja no plano astral seja no espiritual e propõe antes uma espécie de saco vago e amplo, o inconsciente, acessível pelos sonhos, as imaginações, os desenhos e não tanto pela visão determinada espiritual sobre certos níveis do pluridimensional universo.
Neste sentido também o enaltecido caminho para a individuação, de Jung e da sua escola, não é tanto o da ligaç
ão directa com o espírito, ou ao espírito, mas antes uma estruturação psíquica segundo certos moldes arquétipos e que não implica um eu espiritual como a meta e essência de cada ser, mas antes um vasculhar, compreender e ordenar os conteúdos psíquicos internos de modo a que um eu mais são e total se afirme.
Maria-Lo
uise von Franz diz-nos ainda que «é o shaman que cura os doentes pelo seu transe,  que acompanha os mortos no reino da sombra e quem serve de mediador entre eles e os seus deuses. Num certo sentido ele vela pelas suas almas».
                                                

Eis afirmações algo mistificantes
, possíveis em vários shamans, sobretudo os mais dotados de poderes psíquicos, mas de modo algum com o tipo de domínio pleno ou absoluto como nos tentam apresentar.
Quantos shamans antigos ou actuais conseguem ver a ascensão das almas, quantos conseguem acompanhar na visão, ou pela energias que consigam enviar, uma alma no caminho ascensional post-mortem, tão individual, tão subtil?
Uns poucos, os que conseguem ter a visão psico-espiritual aberta, limpa, algo difícil pois as ervas e poções que ingerem podem distorcer os seus finos sensores psico-espirituais...
Bem podem clamar de novo Mircea Eliade e Marie-Louise von Franz que o shaman serve de
mediador entre eles e seus deuses, quando em geral os deuses representam entidades subtis de planos bem próximos da Terra e que nem exigirão grandes mediações, embora certamente quem faz as danças ou orações trabalha com energias que podem alimentar entidades ou deuses, e impulsionar a elevação dos mortos,  facilitando a abertura dos sentidos das almas dos que partiram para os planos de vida desses deuses, desses anjos da Natureza e de tradições regionais ou tribais.

Um pouco mais à frente encontramos mais uma afirmação mitificante ou exagerada de Mircea Eliade, algo frequente, e em geral diminuindo a força espiritual de cada ser: «O shaman, diz Mircea Eliade, é o grande especialista da alma humana: só ele a vê, pois ele conhece a sua forma e o seu destino».
Afirmação exagerada e algo absurda: prim
eiro, como se só ele tivesse clarividência; segundo, como se a vidência que ele possa ter seja assim tão segura que veja a essência do ser, o seu estado presente e o seu futuro, que dependem de tantos factores. Sabe-se que  a maior parte dos shamans tem uns vislumbres (maiores ou menores) dos planos do Cosmos mais próximos do físico terrestre, frequentemente ligados a espíritos elementais e de animais e aos seus antecessores. Como poderá ele discernir tão facilmente a essência espiritual de cada ser e adivinhar o desenrolar da sua vida, nomeadamente nos planos subtis que tão íntimos são, a não ser que tenha recebido da tradição um mapa arquétipo no qual deduz ou intui a estação da alma desencarnada?


Em seguida refere Marie-Louise como certas viagens no além podem ser vividas em sonhos e como desmembramentos e mortes sucedem nessa linha iniciática de morrer e renascer, que Mircea Eliade e muitos outros antropólogos têm encontrado por toda a parte. Este aspecto é correcto, e os contos tradicionais de enfrentamentos com lobos ou outros seres que nos tentam desmembrar, comer ou matar reflectem iniciações transmitidas por oralidade e vivenciadas nos mundos subtis  e em sonhos, e que visam despertar a força de vontade dos jovens, o discernimento do mal e capacidade de lhe resistir.
Faltará ainda discernir com mais exactidão em que níveis se peregrina no além, e se os espíritos que falam pela boca do shaman podem ser guias elevados inspirando, ou mesmo imagens do Eu espiritual dele, ou apenas possessões interiores por entidades menores ou mesmo imaginações do seu inconsciente dinamizado nessas sessões por vezes bastante intensas e emotivas
Um dos aspectos mais interessantes, pelo que pode apontar para a alma complementar ou gémea, ou ainda mesmo para  um mestre como guia, será o que narram Eliade e Marie-Louise: «Muitos shamans possuem assim uma esposa celeste invisível, outros têm como auxiliar supremo o espírito de um grande shaman defunto, um velho sábio que os conduz, e que frequentemente, durante o transe fala directamente através da sua boca». E assim pode suceder, sobretudo em sociedades tradicionais, com ligações que perduram de mestre a discípulo, mas, repetimos, o entrar em transe, as  incorporações de entidades (que podem ser de todo o género), o alguém falar por nós, são métodos   que não levam  necessariamente a planos e conhecimentos elevados, nem a estados de harmonia e saúde...
´«Ter
a visão dos espíritos, no estado de vigília ou de sonhos, é o sinal mais importante da visão shamanica, diz-nos Marie-Louise,  acrescentando que frequentemente o shaman compreende igualmente a linguagem secreta dos espíritos ou dos animais, em especial das aves».
                                                   
                 Uma shaman na Coreia, povo onde ainda se conserva bastante tal tradição.
Estas afirmações de Mircea Eliade e Marie-Louise von Franz, embora reconhecendo a importância da clarividência, ou uma ligação tradicional, acabam por ser superficiais pois, mais do que ver espíritos, importa é o nível e o controle que se tem, pois pode ser apenas uma vidência de origem atávica ou genética, e portanto muito terrestre e que não foi obtida por merecimentos e realizações próprias.
Entender que a fala dos espíritos e dos animais e aves é algo ao mesmo nível é pouco exacto, pois são níveis e linguagens diferentes, embora certamente o amor do coração emanado, a empatia e harmonia com eles seja o mais importante. Mircea Eliade e Marie-Louise von Franz são em vários aspectos mais teóricos, esotericistas do que conhecedores, iniciados e provavelmente pouco ou nunca dialogaram com animais e aves, nem sentiram a unidade com eles, seja individualmente seja em grupo. Nem viram com o terceiro olho  a Luz espiritual que nos banha.

Para concluir este breve apontamento a um livro ainda assim com valor, destacaremos do que relatam ou especulam a afirmação que os shamans inventam as suas canções e orações, pois tal é certamente algo que todos devemos fazer, de modo a libertar-nos de padrões e a conseguirmos orar e  elevar-nos da mente para o coração e deste para o espírito, os mundos espirituais, a anima mundi onde vivamos, para o divino que cada um possa alcançar, e a Verdade que possa discernir e realizar.

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