terça-feira, 2 de julho de 2024

Afonso Cautela, discípulo de Camões e Antero de Quental: sonetos juvenis, um camoneano e dois anterianos. Da sua poesia reunida "Lama e Alvorada".

                             

A recente e meritória publicação da obra poética completa de Afonso Cautela, realizada por José Carlos Marques, sob o título Lama e Alvorada, em dois volumes, permite-nos conhecer dezenas de poemas inéditos, a maioria datados, e  discernir melhor as múltiplas tendências e fases no seu percurso poético criativo lírico, de crítica, de ironia e de idealismo, e assim encontrar, na sua época mais juvenil, com 13 e 14 anos, os veios e sopros baptismais de Luís de Camões e Antero de Quental. A recente participação no IX encontro do círculo de poesia do Montado do Freixo do Meio, organizado pelo Manuel Calado, a Cassandra Querido e a Fátima Sequeira Remédios, e dedicado a Afonso Cautela (com a presença da sua filha Cristina), na qual mencionei tais veios, como ainda as de Walt Whitman e de Álvaro de Campos-Fernando Pessoa, impulsionou-me a escrever este artigo, provando tais asserções com três sonetos.

No Soneto III, escrito em Beja a 13-3-1946, Afonso Cautela inicia-se com mais juvenil doçura e esperança no Amor e, seguindo a linha platónica de reconhecimento do Bem, do Belo e do Verdadeiro primordiais ou arquétipos,  glosa o famoso soneto de Camões: 

«Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?»

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Eis como o glosou Afonso Cautela, menino de treze anos:

«Amor é fogo que arde que ilumina
As trevas desta vida descontente.
Como um bem guiará eternamente
No caminho feliz a nossa sina.

Puro como a rosa amena e fina
Terno o seu calor manso e dolente.
Como eterna verdade que não mente
A saudade o amor sempre confina.

E mesmo sendo assim todo o alento,
Da vida o mais doce e belo encanto,
Em suas garras somos fraco vime...

Abate, esmaga e fere com crueza
Sem atender ao mal de tal vileza,
- ele o belo imenso, o bem sublime».
 
Poderemos observar como Afonso Cautela, a partir do seu contacto puro com a terra e o céu alentejano e com a sua aspiração optimista juvenil, sente e vê o Amor como a força de realização dos arquétipos fundamentais do Belo e do Bem, como a estrelinha do caminho, como o Anjo da Guarda da vida, ora exigente ora doce na sua modelação da nossa alma imortalizável.  
 

Já com ecos de Antero de Quental, seja de temática ideológica, de sentimentos ou de imagens, encontramos dois poemas: primeiro o Soneto V no qual a aspiração a um estado de sonho fantástico é afirmada, embora em Antero houvesse em geral mais o encontro com  ilusão do mundo e a meta ou aspiração ao Não-ser, ou simplesmente a irmã Morte, tal como encontramos por exemplo nos sonetos Nirvana ou no VI do Elogio da Morte.

O original manuscrito do poema de Afonso com 4 anos na contracapa do II volume da Lama e Alvorada.

Sonhei a fantasia inanimada,
Sonhei a vã quimera, um louco ideal.
Sonhei o tudo imenso, o tudo nada.
Sonhei da vida a morte, o bem, o mal.

Vivi na bruma escura quão cerrada
Desse sonhar imenso, desse irreal.
Vivi a vida triste e desesperada,
Eu só, só terra e pó, fui imortal.

E perco o gosto amargo de viver,
Perco o receio, o medo de morrer,
Imploro da vida a morte que não vejo.

Quero viver num sonho de incerteza,
Trocar da vida o peso e a vileza
Por um sonhar eterno, é meu desejo!
                                                                       Beja, 20-1-1947

Já mais claro como de matriz de inspiração é o soneto seguinte de Antero de Quental dedicado piamente à Virgem Santíssima,  mas que Afonso Cautela, no seu soneto VII, sem se quedar na entrega  piedosa a Maria divinizada,  o glosará projectando o seu amor e unção do Eterno Feminino para uma mulher amada. Oiçamos Antero, primeiro:
 
À Virgem Santíssima, 
Cheia de Graça, Mãe de Misericórdia

N'um sonho todo feito de incerteza,
De nocturna e indizível ansiedade,
É que eu vi teu olhar de piedade
E (mais que piedade) de tristeza...

Não era o vulgar brilho da beleza,
Nem o ardor banal da mocidade...
Era outra luz, era outra suavidade,
Que até nem sei se as há na natureza...

Um místico sofrer... uma ventura
Feita só do perdão, só da ternura
E da paz da nossa hora derradeira...

Ó visão, visão triste e piedosa!
Fita-me assim calada, assim chorosa...
E deixa-me sonhar a vida inteira!»

Oiçamos agora o Soneto VI de Afonso Cautela:

Sonhei num sonho imenso de amargura
De ti somente ser eterno amante.
Fui sonho de uma noite já distante
Desejo louco que ainda em mim perdura.
 
E esse louco desejo foi ventura
Que vi brilhar imensa e fulgurante.
Da minha vida estrela radiante,
Foi ambição amarga, negra e dura.
 
Para quê acalentar este desejo
E querer o teu amor que em vão bosquejo,
Sofrer, um dia tarde, ao recordar?!
 
Deixa-me sempre ver a tua imagem,
Idolatrar-te a ti grata miragem,
Em ti eternamente quero sonhar.
                                                                                          Beja, 15-4-1948 
 
 
Saudemos estas três grandes almas universais mas de raiz lusitana, três elos da Tradição poética e espiritual portuguesa, agora nos mundos espirituais. Que se possam comunicar e inspirar-nos!

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