A recente e meritória publicação da obra poética completa de Afonso Cautela, realizada por José Carlos Marques, sob o título Lama e Alvorada, em dois volumes, permite-nos conhecer dezenas de poemas inéditos, a maioria datados, e discernir melhor as múltiplas tendências e fases no seu percurso poético criativo lírico, de crítica, de ironia e de idealismo, e assim encontrar, na sua época mais juvenil, com 13 e 14 anos, os veios e sopros baptismais de Luís de Camões e Antero de Quental. A recente participação no IX encontro do círculo de poesia do Montado do Freixo do Meio, organizado pelo Manuel Calado, a Cassandra Querido e a Fátima Sequeira Remédios, e dedicado a Afonso Cautela (com a presença da sua filha Cristina), na qual mencionei tais veios, como ainda as de Walt Whitman e de Álvaro de Campos-Fernando Pessoa, impulsionou-me a escrever este artigo, provando tais asserções com três sonetos.
No Soneto III, escrito em Beja a 13-3-1946, Afonso Cautela inicia-se com mais juvenil doçura e esperança no Amor e, seguindo a linha platónica de reconhecimento do Bem, do Belo e do Verdadeiro primordiais ou arquétipos, glosa o famoso soneto de Camões:
«Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.
É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.
Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?»
Eis como o glosou Afonso Cautela, menino de treze anos:
As trevas desta vida descontente.
Como um bem guiará eternamente
No caminho feliz a nossa sina.
Puro como a rosa amena e fina
Terno o seu calor manso e dolente.
Como eterna verdade que não mente
A saudade o amor sempre confina.
E mesmo sendo assim todo o alento,
Da vida o mais doce e belo encanto,
Em suas garras somos fraco vime...
Abate, esmaga e fere com crueza
Sem atender ao mal de tal vileza,
- ele o belo imenso, o bem sublime».
O original manuscrito do poema de Afonso com 4 anos na contracapa do II volume da Lama e Alvorada. |
Sonhei a vã quimera, um louco ideal.
Sonhei o tudo imenso, o tudo nada.
Sonhei da vida a morte, o bem, o mal.
Vivi na bruma escura quão cerrada
Desse sonhar imenso, desse irreal.
Vivi a vida triste e desesperada,
Eu só, só terra e pó, fui imortal.
E perco o gosto amargo de viver,
Perco o receio, o medo de morrer,
Imploro da vida a morte que não vejo.
Quero viver num sonho de incerteza,
Trocar da vida o peso e a vileza
Por um sonhar eterno, é meu desejo!
N'um sonho todo feito de incerteza,
De nocturna e indizível ansiedade,
É que eu vi teu olhar de piedade
E (mais que piedade) de tristeza...
Não era o vulgar brilho da beleza,
Nem o ardor banal da mocidade...
Era outra luz, era outra suavidade,
Que até nem sei se as há na natureza...
Um místico sofrer... uma ventura
Feita só do perdão, só da ternura
E da paz da nossa hora derradeira...
Ó visão, visão triste e piedosa!
Fita-me assim calada, assim chorosa...
E deixa-me sonhar a vida inteira!»
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