domingo, 7 de julho de 2024

Nossa Senhora das Almas, uma face feminina da Divindade iluminando ou salvando do Purgatório astral. Arte conventual portuguesa.

                                          
A Nossa Senhora das Almas não é uma representação feminina divina muito comum na iconografia portuguesa, nomeadamente em pinturas, desenhos, gravuras e registos mas sabemos que houve irmandades ou confrarias (tal a da vila de Moura, que viveu cerca de 300 anos), e que ainda há uma ou outra ermida ou capela com esta devoção ou invocação, nomeadamente nos Açores, arquipélago do Espírito Santo, perenemente misterioso na conceptualidade da sua imanência e cosmicidade.
O problema
da vida no post-mortem sempre desafiou ou inquietou a humanidade e a muitas entidades ou facetas divinas se pediu a proteção para os que partiam para esse além brumoso, misterioso. O Cristianismo substituiu Hermes e Orfeu, deuses e deusas antigas, por  Jesus e Maria, o Anjo da guarda e o arcanjo Miguel, tornando-se estes os destinatários seja de orações seja de representações artísticas que procuravam consubstanciar o desejo e a ideia da proteção ou salvação divina, mas não só numa forma passiva pois sempre implicavam orações dos familiares, amigos e comunidade pelos que tinham desincarnado, uma sábia medida já que a grande maioria dos seres não está bem preparada para estar logo desperta e activa no seu corpo psico-espiritual, recebendo portanto dessas orações e sentimentos algumas energias de luz e de amor úteis ao fortalecer psico-espiritual.
                                              
Testemunhos destas preocupações e aspirações podemos encontrar na nossa Tradição religiosa a Encomendação das Almas, com orações, ladainhas, cantos, procissões, ou ainda as Alminhas, que povoam por vezes zonas desabitadas ou curvas da estrada  nas quais alguém faleceu por acidente ou de repente, e que são inegavelmente uma especificidade portuguesa arquitectónica, artística e de devocional valiosa, e razoavelmente estudada e que, na sua rusticidade ou dramatismo, detêm os viandantes e fazem-nos balbuciar algumas preces, enviadas assim para uma pessoa, familiares ou  a generalidade dos seres que se consideram estar no além ou num Purgatório, no Cosmos subtil uma realidade dinâmica (pese  a oposição dos Protestantes ou de modernismo católico), e que é um sub-plano do mundo astral, com sofrimento purificador mas que, podendo ser muito demorado, se deseja ser aliviado pelas energias das orações enviadas da Terra ou das abençoadoras do Céus, pois levam amor e luz clarificante às almas aí detidas temporariamente em semi-inconsciência ou em dor.
Ora entre as várias entida
des cristãs já mencionadas recaiu sobre algumas imagens ou ícones de específicas nomeações de Nossa Senhora, ou ainda Mãe Divina, a missão de transmitirem aos que morriam eflúvios de pacificação, aquietação e confiança, surgindo assim a Nossa Senhora do Bom Despacho, a Nossa Senhora da Boa Morte, em que Maria surge sossegadamente adormecida,  a Nossa Senhora da Boa Viagem, da terra para o céu, como alguns registos explicitavam, ou ainda a Nossa Senhora do Carmo, prometendo boa elevação ou salvação para os seus devotos, sobretudo munidos do seu escapulário, uma bela recorrência no Cristianismo (com outros bentinhos)  das orações que egípcios e órficos e pitagóricos punham inscritas em papiro ou lamelas sobre o peito dos que partiam, quais passaportes ou palavras de passe para se franquearem os planos intermediários na ascensão espiritual para a Luz, o Bardo Thodol.
Mas será a Nossa Senhora das Almas a q
ue mais se venerou, e com uma iconologia simples: as almas no Purgatório, entre as chamas dos desejos impossíveis de se satisfazer ou dos sofrimentos, os Anjos que as tentam ajudar, despertar, salvar e, ao alto, a Nossa Senhora, em geral com um resplendor forte, mostrando, numa das possíveis hermenêuticas,  que a Divindade, na sua face feminina, na sua Materna Compaixão, pode ser tocada pelas nossas orações e ajudar o processo relativamente libertador, em processos subtis energético-conscienciais que a Providência divina sustém no Cosmos.
Como é que os fiéis assumiam operativamente mas subjectivamente estes registos ou ícone
s não se poderá saber ao certo, e apenas se pode deduzir  que nos nossos dias alguns fiéis poderão sentir diante deles o mesmo que outrora, embora o receio das penas purgatoriais tenha diminuído, cremos que bastante, e tanto para o bem como para o mal das pessoas, assim por vezes menos preparados para as causalidades obscurecedoras em que incorreram.
Não é contudo
uma invocação da qual se conheçam muitos representações e Ernesto Soares, no seu incontornável Inventário da Colecção de Registos de Santos, conheceu e registou apenas doze, uma delas sendo mesmo recente: a de Nossa Senhora de Fátima, assinalada com tal função de Nossa Senhora das Almas. Ora não há entre elas grandes diferenças na representação de tal ideia e crença de uma possível salvação ou melhoria do estado das alma no além pela acção tripla intercessória do mundo humano, do celestial e do divino, este Mariano ou de Nossa Senhora, embora o que os registos destaquem, e Ernesto Soares, seja sobretudo a «representação em busto sobre nuvens, cercada de grande resplendor, incutindo esperança às Almas do Purgatório», E. Soares veiculando aqui a sua hermenêutica, quem sabe se mais acertada,  da acção e pensamento de Maria: «-Aguentem-se, mantenham a Esperança viva.»
Cumpre indicar que os
registos assinalados por Ernesto Soares ostentam a costumeira propaganda algo enganadora (pois há muitos factores em causa) dos efeitos salvíficos (as chamadas Indulgências) obtidos por quem rezar diante de tal imagem da Nossa Senhora das Almas. E que alguns deles ostentam na parte superior, dois Anjos com uma fita, onde se lê: «Mostra que és Mãe (May)», este sim um contributo psicologicamente valioso para a compreensão da operatividade imaginal da fé, contemplação e oração face a estes ícones acessíveis a quase toda agente, e que tinham nos religiosos e religiosas um público que especificamente os trabalhava melhor, como algumas vidas das nossas sorores ou irmãs místicas narram, tanto mais que orarem por pessoas vivas e já nos mundos invisíveis era uma das suas principais tarefas, com algumas narrando os sucessos que obtinham na libertação das almas...
Tendo encontrado há tempos
uma pintura conventual da Nossa Senhora das Almas, fins do século XVIII - princípios do XIX, dimensão média, sobre papel que foi minuciosamente pontilhado, numa bela moldura de esquadrias e orlas vegetalistas muito cândidas e frescas, obra provavelmente de uma freira com bons dotes e paciência, resolvemos partilhar a imagem operativa de ligação entre os mundos, quem sabe se estimulando por este modo a nossa oração eficaz por familiares ou amigos já partidos.
                                                               
Na oval central, Maria, incarnação do princípio Divino feminino, da sofianidade ou Santa Sophia da tradição ortodoxa e da filosofia russa,  representada em busto, acima das nuvens, emana um sorriso perfeito de amor e compaixão, enquanto um anjo, provavelmente seu enviado e ajudante, liga-a às almas do Purgatório, vigilante sobre elas. É um anjo pequeno, discreto, que paira como que à altura do seu coração, e que emerge das nuvens que diferenciam os planos do Cosmos e  separam a denominada rainha dos Anjos em relação ao plano das labaredas purgatoriais, como que só o Anjo por lá dentro pudesse entrar e salvar, embora saibamos que o processo metamórfico consciencial se realize na interioridade das almas que detêm sempre pelo apex do seu espírito a capacidade da religação divina.
A aureola dourada da Sabedoria
Divina é inspiradora,  tal como o finíssimo pontilhado do lenço que cobre o seu cabelo e nos transmite  grande doçura e intimidade, e por esta criatividade são nos  oferecidas visivelmente qualidades espirituais invisíveis ou acesso ao prototipo divino, e que poderemos ver, sentir, meditar, intuir e quem sabe emanar, deste modo contribuindo para que a contemplação deste ícone conventual (assim cremos), acompanhada ou não de orações vocais ou mentais, possa ser um acto de comunhão intercessória e eficaz com os que já partiram, e a graça dos Anjos, Maria e Santa Sophia, Providência Divina no devir do mundo e da Humanidade. Pax. Lux.

Muitas bênçãos de luz, amor e paz nas almas em processos conscienciais de transição e ascensão. Aum, Amen. E demos muitas graças à anónima artista, provavelmente uma soror dum convento alentejano, por este tão belo ícone inspirador.

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