Kabir, mestre dos sant. |
Um dos mestres espirituais mais apreciados e estudados por gurudev Ranade (1886-1957) foi o famoso poeta e místico do século XVI Kabir, tendo-lhe dedicado várias páginas na suas obras, abordando-o numa hermenêutica verdadeiramente espiritual e não meramente histórica, teórica ou esotericista. É o caso de The conception of spiritual life in Mahtama Gandi and Hindi Saints, 1956, onde no prefácio Ranade escreve: «a terceira parte deste livro é dedicada ao desenvolvimento da experiência mística em Kabir, o Apóstolo da unidade espiritual, não só entre os hindus e os muçulmanos, mas entre os membros de todas as comunidades religiosas do mundo. Se Kabir vivesse hoje, seria a primeira pessoa a pregar o evangelho da unidade espiritual universal».
É na realidade sempre actual e importante este posicionamento: sem se menosprezar as diferentes religiões, a unidade espiritual que as subjaz deve ser reconhecida, estudada, anunciada, para melhoria da paz, entendimento e inclusividade entre os fiéis das várias religiões e tradições.
Ramchandra Dattratreya Ranade. |
A data do nascimento de Kabir é controversa, para uns em 1398 para outros 1440, mas a da sua morte, 1518, já é unanimemente aceite. Varanasi, ou Kashi, a luminosa cidade gangética, foi o local, embora sejam incertas as influências espirituais iniciais: teria nascido provavelmente numa família Nath yogi shivaísta, e talvez também praticante do sufismo islâmico, sabendo-se que foi ainda discípulo do mestre Ramdas na linha dos devotos de Vishnu, o que se torna manifesto nos poemas em que critica os Nath yogi por não desenvolverem a devoção, o amor, prembhakti.
Kabir, tecendo, cantando, ensinando. |
Foi um tecelão, poeta, yogi, místico e assim a inspiração brotava fortemente em poemas ricos de sentidos espirituais e aparentemente paradoxais dada a profundidade das suas experiências e que foram musicados e cantados por milhões de seres, neles inserindo também críticas sócio-religiosas fortes aos sacerdotes e fiéis hindus e islâmicos que se deixavam estar quase que só nos dogmas, aparências e superstições, perdendo a realização viva.
Kabir canta as suas experiências espirituais, as dos Nath yogi e as dos sadhus ou sants, seres libertos da ilusão (maya) e realizados, orientadas pelo amor a Deus ou, talvez melhor, à Realidade Suprema, que designou por diferentes termos das várias tradições e religiões, tais como os vedânticos Brahman, Atman, Purusa, Tat, Gyan (ou Jnana, Sabedoria), Ek (o único), Niranjan (o Sem nódoa) mas também o dos avatares Ram, Hari e Govinda, ou ainda, já na tradição do Islão, Allah, Hazrat (o Majestoso), Khuda (Deus em persa), Karim (o Dignificado).
Só no século XVII é que surgiram as compilações dos seus poemas principais, no Kabir Bijab, no Kabir Granthawalli, na escritura sikh Adi Khant e noutras compilações. Nos tempos modernos destacaram-se as publicações e traduções de Westcott (com o seu Kabir and the Kabir Panth, 1907), Rabindranath Tagore, Ranade e Charlotte Vaudeville.
Para o professor Ranade, Kabir será sempre um dos grandes unificadores das várias religiões pela sua boa nova ou evangelho de paz e de universalidade, e pelos ensinamentos autobiográficos espirituais que semeou, e destacará e comentará na obra referida Spiritual Life... certos aspectos valiosos para os praticantes do caminho espiritual, da sadhana:
Para Kabir, o verdadeiro mestre, ou seja, o Sat Guru, o Sadguru, é quem está apto a estabelecer o seu discípulo na visão de Deus para onde quer que este lance o seu olhar. Não pode ser só interiormente nem só no mundo exterior. Podemos considerar tal uma realização completa, pois tanto há a visão interior mística, em geral obtida por bhakti. amor devoção, como a visão intelectual e a intuição da unidade da Divindade omnipresente, jnana.
Característica do sadguru é a de ensinar o discípulo a estar no sahaj samadhi, na unificação interior natural, sem depender de práticas respiratórias ou concentrativas, e dando a original imagem de se estar numa cabana sem fundo entre a terra e o céu, o que é também entre a base da coluna, ou talvez melhor o umbigo, e o cimo da cabeça, ou seja, estar mais no peito, sem contudo se deixar prender nele, nem enredar os outros, um aviso muito pertinente pois vemos constantemente como os gurus modernos prendem tanta gente afectivamente, tornando-as dependentes ou mesmo quase que hipnotizadas.
O centro (chakra) do coração é anahat, e anahata é o som interior espiritual que se pode ouvir nas práticas mais profundas de meditação mas que segundo Kabir deve ser subordinado a Shabda, a Palavra ou som, que é tanto a característica ou qualidade do espaço, como um dos dez sons que se podem ouvir interiormente, nomeadamente nos canais subtis, como ainda a primordialidade divina, o Espírito, e que repetida, ouvida ou meditada, por exemplo, como Om, ou como Ram, nos pode levar até à Divindade.
Outra característica do verdadeiro guru é a enunciada na Bhagavad Gita. IV. 18: «Aqueles que veem a ação na inação e a inação na ação são verdadeiramente sábios entre os humanos. Embora realizem todo o tipo de acções, são yogis e mestres de todas as suas acções», ou seja, observamos um elogio da capacidade de não se estar ansioso ou dependente dos resultados, mas desprendido e permanecendo em paz e felicidade mesmo na acção.
Outro aspecto destacado por Ranade em Kabir é a importância da prática da meditação em Deus utilizando-se o mantra ou nome (nama) de Deus dado pelo guru ao discípulo na iniciação. Alerta contudo que para Kabir não é este nome, nem menos ainda o que uma pessoa escolhe para si, que é o verdadeiro Nome, o qual é Ajara e Amara, imutável e imortal: «Quando estamos a meditar, diz Kabir, há um nome celestial que se revela ou desdobra a si próprio ao nosso sentido auditivo, no estado mais elevado da meditação. Tal nome é Ajara e Amara. Quando uma pessoa entra na posse ou fruição deste Nome, o seu caminho para a Divindade fica claro, limpo.»
Esta repetição do Nome de Deus deve ser contudo silenciosa, pois nos quatro níveis da fala ou voz: vaikharii, a física, madhyamma, a mental e que pensamos antes de pronunciar, pashyanti, a que se vê ou se compreende inicialmente, e a para, a transcendente e silenciosa, esta é a do nível mais elevado e embora difícil de se realizar dela nos aproximamos ao tentarmos transcender os outros níveis e ao meditar em silêncio íntimo receptivo.
Em termos de fisiologia interna, a meditação ganha em ser realizada pela abertura da janela existente nos ventrículos do cérebro e em seguida pelo voo ascendente do espírito até ao Triveni Samgama, a confluência das três correntes ou rios no olho espiritual, onde se poderá então receber a visão de Deus.
Para isto acontecer Kabir recomenda a concentração forte na Divindade, desprendimento do mundo exterior (para diminuir ou extinguir-se a ondulação mental), intensidade de aspiração e sermos na vida, na linha pitagórica (refere até Ranade, já que conhecia bem a filosofia e tradição grega), espectadores ou viajantes que não se carregam de pesos nem de envolvimentos desnecessários.
Uma das boas imagens da meditação (e que deveremos cogitar) dada por Kabir é a de que a sua mente ou alma é o pavio, o Nome de Deus o óleo e a Divindade em si mesma o fogo que acende o pavio. Quando tal acontece a luz interior cintilante manifesta-se dentro do tabernáculo do coração, e então devemos consagrar-nos (nyochhavar) mais a Deus, tornar a nossa vida mais dedicada a Ele, até para que haja crescimento espiritual e aconteçam experiências interiores que nos elevem à Divindade.
Quais são as mencionadas por Kabir na sua poesia? Sobretudo os sons interiores, as visões da Divindade, ou então dos avatares (tal Rama e Krishna), o sentido da eternidade bem como do poder infinito de Deus, dando uma valiosa pista de de prática interna dos iniciados yogis nas técnicas denominadas de luz, som e néctar: após a concentração no nome de Deus, quando o extracto doce ou néctar (amrita) escorre das células para os ventrículos laterais cerebrais, então o som interior tanto se eleva para o céu como permite encher mais o lago do 3º olho e ventrículo da beatífica sensação-sabor de amrita, numa dupla ou recíproca causalidade entre o som e o néctar, estado interior que diz ele pode chegar a absorver ou atrair a si a comunhão com o Oceano da Divindade, na Índia tão cultuado como Narayana.
Fiquemos com o excerto inicial de um poema de Kabir, numa tradução a partir do francês da sábia orientalista Charlotte Vaudeville:
«Ó Kabir, o resplendor do Eterno é como o nascer de toda uma sucessão de sóis.
Perto do marido, a mulher despertou e diante dela um espectáculo maravilhoso se formou.
Ela contemplou o espectáculo sem os olhos do corpo e, sem o Sol e sem a Lua, a Luz brilhou,
O servidor está absorto no serviço do Mestre e não se preocupa com nada mais.
A Majestade do Senhor Supremo está para além de toda a imaginação.
A sua beleza é indizível. É preciso contemplá-la.
Ao inacessível, ao invisível não há qualquer acesso, lá brilha a Luz; lá onde Kabir prestou as suas homenagens nem o pecado nem o mérito podem chegar.
Esse lótus que floresce sem flor, só os íntimos (da Divindade, Rama) podem contemplar.»
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