quinta-feira, 4 de julho de 2024

Gurudev Ranade: hermenêutica espiritual de Kabir, poeta e místico do séc. XV. Nas comemorações do aniversário de Ranade.

Kabir, mestre dos sant.

Um dos mestres espirituais que gurudev Ranade (1886-1957) mais apreciou e estudou foi o famoso poeta e místico do século XVI Kabir, dedicando-lhe várias páginas na suas obras, numa hermenêutica verdadeiramente espiritual e não meramente histórica, teórica ou esotericista. É o caso de The conception of spiritual life in Mahtama Gandi and Hindi Saints, 1956, onde no prefácio escreve: «a terceira parte deste livro é dedicada ao desenvolvimento da experiência mística em Kabir, o apóstolo da unidade espiritual, não só entre os hindus e os muçulmanos, mas entre os membros das comunidades religiosas do mundo. Se Kabir vivesse hoje, seria a primeira pessoa a pregar o evangelho da unidade espiritual universal».

Ramchandra Dattratreya Ranade.

A data do nascimento de Kabir é controversa, para uns em 1398 para outros 1440, mas a da sua morte, 1518, já é unanimemente aceite.  Varanasi, ou Kashi, a luminosa cidade gangética, foi o local sendo incertas as suas influências espirituais iniciais, tendo nascido talvez numa família Nath yogi shivaísta, possivelmente já convertidos ao Islaõ sufi mas que foi ainda discípulo do mestre Ramadas na linha dos devotos de Vishnu, o que se torma manifesto em muitos poemas que critica os Nath yogi por não desenvolverem a devoção, o amor, prembhakti.

Kabir, tecendo, cantando, ensinando.

Foi um tecelão, poeta, yogi místico e assim a inspiração brotava fortemente em poemas ricos de sentidos espirituais e paradoxais que foram musicados e cantados por milhões de seres e onde insere  críticas socio-religiosas fortes aos sacerdotes e fiéis hindus e islâmicos que se deixavam estar nos dogmas, aparências e superstições, e canta as experiências espirituais suas e dos nNath yogi e dos sadhus ou sants, seres libertos da ilusão (maya) e realizados,  orientadas pelo amor a Deus ou, talvez melhor, à Realidade Suprema, que designou por diferentes termos das várias tradições e religiões, tais como os vedânticos Brahman, Atman, Purusa, Tat, Gyan (ou Jnana, Sabedoria), Ek (o único), Niranjan (o Sem nódoa) mas também o dos avatares Ram, Hari e Govinda,  ou ainda, já na tradição do Islão, Allah, Hazrat (o Majestoso), Khuda (Deus em persa), Karim (o Dignificado).

Só no século XVII é que surgiram as compilações dos seus poemas principais, no Kabir Bijab, no Kabir Granthawalli, na escritura sikh, o Adi Khant e noutras compilações. Nos tempos modernos destacaram-se as publicações e traduções de Rabindranath Tagore, Ranade e de Charlotte Vaudeville.

Para Ranade, Kabir será sempre  um dos grande unificadores das várias religiões pelo sua boa nova ou evangelho de paz e de universalidade, e pelos ensinamentos autobiográficos espirituais que semeou, e irá destacar nele, e na obra referida, certos aspectos  valiosos para os praticantes do caminho: 

Sobre o verdadeiro mestre, ou seja, o Sat Guru, o Sadguru, diz-nos que é quem está apto a estabelecer o seu discípulo na visão de Deus para onde quer que este olhe. Não pode ser só interiormente nem só no mundo exterior. Podemos considerar tal uma realização completa, tanto pela visão interior mística como pela visão seja intelectual ou realização intuitiva da unidade  da Divindade omnipresente.

Características do sadguru são a de ensinar o discípulo a estar no sahaj samadhi, na unificação interior natural, sem depender de práticas respiratórias ou concentrativas, e dando a original imagem de se estar numa cabana sem fundo entre a terra e o céu, o que é também entre a base da coluna, ou talvez melhor o umbigo, e o cimo da cabeça, ou seja, estar mais no peito, sem contudo se deixar prender nele, nem enredar os outros, um aviso muito pertinente pois vemos constantemente como os gurus modernos prendem tanta gente afectivamente, tornando-as dependentes ou mesmo quase hipnotizadas. 

O centro (chakra) do coração é anahat, e anahata, é o som interior espiritual que se pode ouvir, nas práticas mais profundas mas que deve ser subordinado a Shabda, a Palavra ou som, que é tanto a característica ou qualidade do espaço, como um dos dez sons que se podem ouvir interiormente, nomeadamente nos canais internos, como ainda a primordialidade divina,  o Espírito, e que repetida, ouvida ou meditada como Om, ou como Ram, nos pode levar até à Divindade.

Também é característica do verdadeiro guru a  enunciada na Bhagavad Gita. IV. 18: «Aqueles que veem a ação na inação e a inação na ação são verdadeiramente sábios entre os humanos. Embora realizem todo o tipo de acções, são iogis e mestres de todas as suas acções», ou seja, capacidade de não se estar ansioso ou dependente dos resultados, mas desprendido, e agir permanecendo em paz e felicidade.

Outro aspecto que Ranade destaca em Kabir é a importância da prática da meditação em Deus utilizando o mantra ou nome (nama)  de Deus dado pelo guru ao discípulo na iniciação. Contudo para Kabir não é este nome, nem menos ainda  que uma pessoa escolhe para si, que é o verdadeiro nome o qual é Ajara e Amara, imutável e imortal: «Quando estamos a meditar, diz Kabir, há um nome celestial que se revela ou desdobra a si próprio ao nosso sentido auditivo, no estado mais elevado da meditação. Tal nome é Ajara e Amara. Quando uma pessoa entra na posse ou fruição deste Nome, o seu caminho para a Divindade fica claro, limpo.»

Esta repetição do nome de Deus deve ser contudo silenciosa, pois nos quatro níveis de fala ou voz: vaikharii, a física, madhyamma, a mental e  que pensamos antes de pronunciar, pashyanti, a que se vê ou se compreende inicialmente, e a para, a transcendente e silenciosa, esta é que é o nível mais elevado, difícil de se realizar, mas do qual nos aproximamos ao tentarmos transcender os outros níveis e ao meditar em silêncio íntimo receptivo.

Em termos de fisiologia interna a meditação ganha em ser realizada pela entrada na janela existente nos ventrículos do cérebro e em seguida pelo voo ascendente do espírito até ao Triveni Samgama, a confluência das três correntes ou rios no olho espiritual, onde poderá então receber a visão de Deus.

Para isto acontecer Kabir recomenda concentração forte na Divindade, desprendimento do mundo exterior (para diminuir ou extinguir-se a ondulação mental) , intensidade de aspiração e sermos na vida, na linha pitagórica (refere Ranade) espectadores ou viajantes que não se carregam de pesos nem de envolvimentos desnecessários. 

Uma das boas imagens dadas por Kabir é a de que a sua mente ou alma é o pavio, o nome de Deus o óleo e a Divindade em si mesma o fogo que acende o pavio. Quando tal acontece a luz interior cintilante manifesta-se dentro do tabernáculo do coração, e então devemos consagrar-nos (nyochhavar) mais a Deus, tornar a nossa vida mais dedicada a Ele, até para que haja crescimento espiritual, mais experiências espirituais que nos elevem à Divindade. 

Quais em Kabir? Sobretudo os sons interiores, as visões da Divindade, ou então dos avatares (tal Rama e Krishna), o sentido da eternidade e o do poder infinito de Deus, dando uma valiosa pista de ascensão interna: quando o sumo doce ou nectar (amrita) escorre das células para os ventrículos laterais cerebrais então o som tanto se eleva para o céu como permite encher mais o lago do 3º olho e ventrículo dessa beatitude de amrita, numa dupla ou recíproca causalidade entre o som e o néctar, estado interior que pode chegar a absorver ou atrair a si a comunhão com o Oceano da Divindade, na Índia tão cultuado em Narayana.

Fiquemos com o excerto inicial de um poema de Kabir, numa tradução do francês da sábia orientalista Charlotte Vaudeville:

«Ó Kabir, o resplendor do Eterno é como o nascer de toda uma sucessão de sois.
Ao pé do marido, a mulher despertou e um espectáculo maravilhoso apareceu diante dela.
Ela contemplou o espectáculo sem os olhos do corpo, e sem o sol e sem a lua a luz brilhou,
O servidor está absorto no serviço do Mestre e não se preocupa com mais nada.
A Majestade do Senhor Supremo está para além de toda a imaginação.
A sua beleza é indizível. É preciso contemplá-la.
Ao inacessível, ao invisível não há qualquer acesso, lá brilha a luz; lá onde Kabir prestou as suas homenagens nem o pecado nem o mérito podem chegar.
Esse lótus que floresce sem flor, só os íntimos (da Divindade, Rama) podem contemplar.»

                                                           

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