sábado, 13 de julho de 2024

A "Pia Desideria", ou "Desejos Piedosos" : o I livro, de Herman Hugo, e os seus emblemas de harmonização e religação espiritual e divina. Com hermenêutica original dos XV emblemas iniciais.

Frontispício, muito simbólico, da 1ª edição da Pia Desideria, de 1624.

 A Pia Desideria, Desejos Piedosos, foi a obra religiosa emblemática mais editada no século XVII, desde que em 1624  saiu pela primeira vez  em latim, num in-12º de 414 páginas, na tipografia de Henrici Aerstiensi, em Antuérpia. A obra estava dividida em três partes ou livros e cada um continha quinze gravuras de emblemas do diálogo entre uma jovem alma e Deus, ou Jesus Cristo, ou o Amor Divino, em geral representado por um Anjo jovem, que pode ser no fundo o Anjo da guarda da alma.  Foram desenhadas e gravadas por vários artistas, tais como Boetius Bolswert (a 1ª edição, sobre cobre), Christophe van Sichem (a 3ª, sobre madeira), Antonie Wierix e outros. Debaixo de cada emblema estava inscrita em latim a legenda, que era um pequeno versículo da Bíblia, desenvolvido depois numa reflexão meditativa em forma de poema e, por fim, comentado com múltiplos excertos (referenciados) de Padres da Igreja e da Bíblia. Algumas edições mais condensadas ou pequenas continham apenas a gravura com o mote das Escrituras, o poema e uma pequena frase a servir de comentário, o que as tornava mais pequenas, legíveis, atraentes e eficazes no tocar e despertar a alma espiritual...

A gravura em cobre do emblema, com o versículo da Bíblia, e o poema que o parafraseia.

O que justificaria tal sucesso? A humanização e democratização da  via mística obtida por um texto simples e imagens tocantes, que deixava de estar indicada ou transmitida apenas em missais, bíblias e livros de horas? O facto de ter sido rapidamente traduzida para várias línguas europeias, pondo assim a obra ao dispor do grande público, e ainda por cima em edições de bolso? O conteúdo do poema, os comentários exegéticos, ou sobretudo a receptividade às imagens muito queridas dos fabulosos desenhadores e gravadores Boetius à Bolswert (1580-1633) ou Cristophe van Sichem (1581-1688)? Contaria também a experiência, sabedoria e carisma do seu sábio autor humanista e sacerdote jesuíta, que tragicamente morreria cedo, aos 49 anos, numa epidemia de peste?
Ainda hoje poderá interessar-
nos e tocar-nos interiormente, ou o sucesso dependia de um público muito crente e devoto, e carente de literatura religiosa mais dirigida ao interior de cada ser, algo que começara no século XV com a Devotio moderna, e que a Imitação de Cristo, de Thomas a Kempis e depois o Manual do cavaleiro cristão de Erasmo, tinham realizado com grande eficácia e sucesso, tal como Marcel Bataillon, na sua monumental obra Erasme et l' Espagne, dada à luz em 1937, documentou excelentemente, e como eu citei várias vezes, em 2008, no prefácio e comentários ao Modo de Orar a Deus do grande humanista.
                                                              
Outro elo importante, no sentido de uma humanização e imaginação afectiva da religiosidade e da oração, foram os famosos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loiola,  escritos sob a influência da devotio moderna do abade Garcias de Cisneros e da Imitação de Cristo de Thomas a Kempis, e publicados pela 1º vez em 1548, descrevendo os modos de oração, as vias de purificação, e com todo o dramatismo a vida e paixão de Jesus,  que as pessoas liam, contemplavam (a partir de meados do séc. XVII quando as edições começaram a ser ilustrada, tal a da tradução portuguesa de 1687) e depois imaginavam na suas almas. Foram os Exercícios uma das primeiras metodologias de oração mental realizada em retiros de cerca de um mês individualmente e em grupos e que teve grande sucesso ao ser dinamizada pela Companhia de Jesus, chegando a Goa, como Fernão Mendes Pinto vivenciou, e até aos nossos dias.
                                                               

       O exame de consciência, numa edição de Antuérpia de 1680 dos Exercitia Spiritualia.

 Muito mais próximos da modulação afectiva do amor místico e do tipo de imagem da Pia Desideria foram os Amorum Emblemata, do humanista e pintor Otto van Veen, ou Otto Venius (1558-1629), muito viajado e influentíssimo à escala europeia. Publicados em 1608, os Emblemas do Amor estavam mais abertos à sabedoria pagã, com muitas citações de Ovídio, do que os  publicados em 1615, Amoriis divini Emblemata, embora o estilo artístico (angélico) fosse o mesmo. Mas  outros livros de emblemata de amor existiam e foram também influentes na iconografia amorosa angélica, tais os do sábio humanista Daniel Heinsius (1580-1655), que em 1601 publicara o  Quaeris quid sit Amor, Perguntas o que seja o Amor, e em 1607 o refundira sob o nome de Emblemata amatoria, com gravuras muito belas de Jacques de Gheyn, e na base do Anjo cupido, ou Amor Divino, agente ou dialogante. E muitos outros livros de Emblemas do Amor se seguiram...

Um dos emblemas gravados por  Jacques de Gheyn no Liebestheater, de Hensius, 1601
O autor da Pia Desideria, um sacerdote belga jesuíta, Herman Hugo (1588-1629), era bem conhecido (embora não tenhamos imagens dele), pois fora professor de humanidades no colégio de Jesuítas em Antuérpia e depois prefeito no colégio de Bruxelas, além de autor de  textos sobre a origem da arte de escrever e de polémica com um teólogo Luterano e outro Calvinista. Teria ainda o dom da oratória pois fora nomeado capelão chefe dos Exércitos espanhóis  do rei D. Filipe III no sul dos Países Baixos ou Holanda, vindo a escrever acerca do cerco de Breda, batalhas e fortificações, e viajado bastante e certamente conheceu Otto Venius e Daniel Hensius, pois moveram-se nos mesmos círculos culturais e políticos de Flandres e da Europa.
Quanto ao sucesso da sua obra talvez Herman Hugo
nos pudesse dizer até que ponto as suas intenções geraram os efeitos desejados nas pessoas,  algo de que  sabemos pouco para além do grande agrado (e logo uma presumível eficácia) com que a Pia Desideria, foi recebida, contando-se cerca de quarenta e duas edições em latim no século XVII e várias reimpressões, traduções  e adaptações no séculos XVII-XVIII, inclusive  na Espanha,   Rússia  e Portugal.
A versão portuguesa, que teve duas edições em 1687 e 1688, não foi uma simples tradução,
pois são diferentes tanto as imagens como o conteúdo do poema exegético, este sendo um cântico em duas oitavas, que já não eram de Herman Hugo mas do nosso Frei António das Chagas, seguindo-se um diálogo ou "solilóquio"  entre a alma e o seu divino esposo Jesus Cristo  introduzido pelo editor e livreiro bastante religioso José Pereira Velozo, em substituição dos textos das Escrituras e dos Padres da Igreja que faziam a exegese do lema ou legenda bíblica e da meditação poética na edição original, modelo seguido pela maioria dos editores e de acordo com a estrutura tripla do emblema. Brevemente abordaremos, e sobretudo comentaremos misticamente o contributo de Frei António das Chagas nesta versão da Pia Desideria adaptada pela mentalidade do editor à contextualidade portuguesa por ele visualizada. Anote-se que José Adriano Carvalho, na notável revista Via Spiritus, nº2, de 1995, dedicou um desenvolvido e excelente artigo a esta versão ou adaptação portuguesa, propondo a sua inserção nos movimentos reformistas da época.
A obra de Herma
n Hugo já no seu título, Pia Desideria emblematis Elegiis & affectibus SS. Patrum illustrata, ou seja Desejos piedosos ilustrados por emblemas, elegias e sentimentos dos santos Padres, dedicada ao papa Urbano VIII (publicando-se mesmo as suas armas numa gravura inicial, num sinal de reconhecimento da chefia de Roma), transparece a intencionalidade psico-espiritual da obra, à qual o desenho no frontispício  aponta, pois contemplamos três planos ou níveis  que reflectem a trina divisão da obra: em baixo, Daniel na cova dos leões, e é o estado de provação, correspondente ao I livro, Gemitus Animae Poenitentis, Gemidos da alma penitente. No 2º nível vemos duas figuras,  a de Moisés e a de Salomão, e corresponderá ao II livro, cujo título é Desideria Animae Sanctae, Desejos da Alma Santa. E por fim, correspondendo ao III livro, Suspiria animae amantis, Suspiros da alma amante, observamos ao alto David a tocar harpa, conforme o dito do Salmo 41,2 «tal como o cervo deseja a fonte da água...», e provavelmente S. Paulo com a espada e a orar, ladeando um enorme coração alado, e com uma abertura ao alto para a saída das correntes ígneas do Amor, que brota ou se inflama seja da obra, da alma devota-amante ou do coração divino.

                                                                    
A imagem da portada do livro era verdadeiramente um apelo imediato a tentarmos imaginar e sentir a intensidade da fonte divina do Amor, ou da sua correspondência em nós, da qual andamos tão esquecidos ou descrentes em geral, mas que, de acordo com o programa do livro, após as duas fases purgatoriais de gemidos e votos, se deve desvendar e fazer sentir, gerando os suspiros e aspirações instáticos e extáticos do Amor divino em nós, e de que tantas místicas e místicos deram testemunho ao longo dos séculos.
O sucesso na época deve ser ainda conte
xtualizado com o enfrentamento forte entre católicos e protestantes nos séculos XVI e XVII e assim as escaramuças de Erasmo e Lutero, ou de Herman Hugo contra Balthasar Meisner e Henricus Brandius, permitiam aos livros e panfletos derramarem a luz filtrada pelas duas visões conflituosas no acesso a Deus e a Jesus, a Protestante bastante mais seca, baseada na fé na literalidade da Bíblia e na moral, e a Católica  provida do culto ou reverência à santos e santas, Anjos e Nossa Senhora,  valorizando  a prática da Eucaristia, das devoções, peregrinações, relíquias, imagens o  que foi intensificado com a Contra-Reforma, e em parte substancial através dos livros e imagens, como este livrinho encerra e entesoura num estilo barroco.
Anote-se, neste confronto entre católicos
e protestantes, a publicação por um pastor protestante, Philipp Jacob Spener  de outra obra religiosa com o mesmo título de Pia Desideria, em 1675, mas sem emblemas e sem a devocionalidade amorosa e angélica, destinada à reforma pietista da igreja protestante.
Será que a diminuição da noção de pecado e da necessidade de purificação, bem como do fervor devocional, ou ainda capacidade de diálogo com Deus ou com o Anjo, afectam hoje a receptividade a esta obra? Certamente, e insistir nos gemidos de arrependimento, ou de saudade já pouco diz às pessoas. Parafrasear os já ultrapassados em tantos aspectos,
e tão violentos por vezes Salmos bíblicos, uma das fontes das legendas das gravuras e dos comentários, não dirá também muito senão a evangelistas mais agarrados ou mesmo fanáticos.  Contudo, não haverá no livro alguns estímulos à transformação ou metanóia interior, e algumas compreensões dos mistérios da alma e do espírito, do amor, da Trindade e da Divindade que ainda hoje valham?
Podemos valorizar a priori a conjunção dos estados de alma, representados pelas imagens, e as curtas frases bíblicas, como um bom instrumento de contemplação e meditação, pois cada leitor sentirá uma ou outra mais luminosamente, podendo até decorar e repetir ou meditá-las com regularidade.  Algumas edições ajudam nisso (tal a 1ª), pois recompilam no fim da obra os três vezes quinze versículos (a maioria do Cântico dos Cânticos) ou frases mantricas que foram propostos nas leg
endas.
                               
Haveria pessoas que sabiam de cor e conseguiam lembrar-se de algumas imagens e mesm
o de algo das mensagens dos comentários? Certamente, num saber de cor já não só das orações mais comuns mas de imagem (e eventualmente até de algo do texto), pois qualquer pessoa que leia e veja estas tão deliciosas imagens guarda na memória mais fortemente algumas delas, as que lhe dizem mais e que afloram facilmente à sua visão interior e podendo por isso ser utilizadas na meditação ou oração mental.
Como a contemplação e c
onservação interna de cor ou na memória de alguns dos emblemas é útil,  vamos então partilhar os emblemas da Pia Desideria, com os seus versículos, quais mantras ou frases sagradas, acrescentando-lhes breves comentários, iniciando neste artigo com os 15 emblemas do I Livro.

- Ó Deus, conheceis bem os meus desejos e gemidos. Faz com que brotem de mim mais setas de amor ardente para ti, exclama a alma na demanda... Emblema 0 ou imagem da matéria prima anímica.

- Quando acordo de noite, procuro a tua luz e desejo-te mais: Vem, ilumina-me!
- Oh Deus, esquece as minhas ignorâncias e distrações e estabiliza-me mais na interioridade silenciosa, na respiração, no espírito, em Ti.
- Oh Deus, ó Anjo da Guarda, dai-me a mão, libertai-me dos erros, curai-me.
- Sempre apanhada na roda do karma ou devir causal está a minha alma: dá-me forças para aguentar as dores e ainda assim avançar e aspirar a ti.
 -Corta os meus defeitos, mas mantêm-me na tua amizade e vizinhança, como orava Erasmo.
- Oh Deus, deixa-me contemplar a Tua face, nem que seja no Anjo...
- Quem me impulsionará os sentimentos que regarão e purificarão a minha alma, senão tu ó Divindade, Deus-Deusa, providência purificadora, harmonizadora e sábia?

- Ó Deus, ó Anjo, não me deixeis preso nos laços dos erros e ignorância, da morte e do mal.
- Ó Providência Divina, não sejas demasiado rigorosa e acede às nossas lágrimas, arrependimentos, purificações, orações e aspirações.
- Não me deixes soçobrar ou afogar nos remoinhos astrais, e que os teus anjos e guias me salvem e guiem.
- Não me deixes cair nas tentações que escandalizam e ferem os teus anjos e amigos e amigas.
- Ó Deus, dizem os astros que a minha vida termina, e o chorar e arrepender-me agora servirão de muito? - Não receies, não te afastes de mim, cultiva a oração e a meditação, e receberás a luz e o amor meus.
- Na passagem para o mundo espiritual terás de enfrentar o guardião do umbral. Prepara-te em vida, revendo à noite o que fizeste em cada dia e, através desta psicostasia pitagórica, melhorarás e abrirás os canais para as correntes superiores.
- Ó Deus, ó Anjo, afastai a hora da dona morte até eu ter cumprido a minha missão de luz e amor o mais possível, para que a minha alma espiritual se eleve grata e consciente até Vós.

E assim termina e conclui o I livro, intitulado Gemidos da Alma Penitente, constituído pelos quinze emblemas que comentamos livre, breve e rapidamente, esperando continuar com o II e III livros. Este texto é também uma pequena homenagem aos notáveis autores e artistas dos maravilhosos livros de emblemas, e à sua Sabedoria divina, hagia Sophia, e que estão hoje acessíveis digitalmente. Lux! Pax! Amor!

Um belo cul-de lampe, algo renascentista das oficinas de Antuérpia, numa das edições da Pia Desideria: filigranas do Amor Divino.

2 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns Pedro! Excelente notícia e reflexão! A adaptação portuguesa que referes também é ilustrada? Se sim quem sao os artistas ?

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Graças, Miguel. A versão portuguesa é ilustrada e, tal como o texto, com bastantes diferenças em relação às gravuras em cobre e em madeira das primeiras versões de Antuérpia. O José Adriano de Carvalho teve acesso a um exemplar da raríssima 1ª edição de 1687 (e explica-o no "Via Spiritus", nº2, 1995), onde numa gravura inicial se encontram as iniciais C.B., que o Ernesto Soares identificara já como Clemente Bilingue, já que descreve no "Inventário da Colecção de Registos de Santos", 1955, numa gravura de S. Filipe de Nery a assinatura "Clem.te B.", e num sagrado Coração de Jesus o "C.B", esta gravura contendo alguns anjos parecidos de facto com os da "Pia Desideria" portuguesa. Também na sua "História da Gravura Artística em Portugal, os Artistas e as suas Obras" descreve 24 participações de Clemente Bilingue em livros(e alguns bem importantes ou impactantes) ou em gravuras singulares, duas destas sendo de Frei António das Chagas. E refere, claro, as gravuras para os "Desejos Piedosos", a "Pia Desideria" portuguesa.