quarta-feira, 24 de julho de 2024

Das jaculatórias, aspirações ou exclamações, orações breves e intensas. Exemplos da tradição espiritual portuguesa, e da universal.

Emblema  1 da Pia Desideria, desenhada e gravada por Boetius Bolswert, em 1624. Do peito da alma partem as flechas dos desejos ígneos, piedosos, iluminantes.

Jaculatórias: Todas as exclamamos ou exprimimos, em todos nós afloram, do nosso interior brotam e desaparecem, e o que fica dos seus efeitos entretecido na nossa alma e cérebro, além da melhoria de claridade interior e transformações anímicas, pouco sabemos ao certo, apenas em alguns rasgos de clarividência se discernindo padrões e floreados atingidos ou emanados...

Certamente na vida espiritual de cada um e de cada dia há altos e baixos, tempos em que elas surgem e exclamam-se mais naturalmente e eficazmente, outros em que temos de as escolher e praticar, perseverando mesmo contra securas, desânimos, desalentos.

Como as exclamamos, ou seja como as sentimos e com que sentimentos, intenções e consciência as pronunciamos, influencia bastante o seu alcance e efeitos e por isso se não há sincera adesão, sentimento ou comunhão com elas, se não correspondem mesmo a aspirações nossas, duram pouco, desvanecem-se, afogam-se sobre as ondas incessantes dos pensamentos e preocupações.

As jaculatórias, as orações curtas, tanto abrem um caminho interior como exterior de elevação energético-consciencial e há que estar bem atentos para conseguirmos discernir o tingir ou modelar do espaço subtil e anímico.

As jaculatórias ora invocam ora afirmam um ser ou um estado de energia-consciência, e tanto o pedem, como trabalham, como  adoram, como  irradiam.

Elas correspondem em muitos casos ao japa ou repetição de mantras indianos (em geral recebidos na iniciação), ao zikr ou repetição do nomes divinos islâmicos,  e cada pessoa devia escolher algumas e cultivá-las com regularidade e perseverança, nem que seja uns minutos, para depois se poder entrar em estados mais silenciosos, contemplativos, de amor pacificante ou fortificante...

Podemos ter algumas orações breves ou jaculatórias específicas para certas ocasiões ou situações. Por exemplo, ao sair de casa, assumir-se uma e ver até se há outras que se afirmam posteriormente mais. Ou quando tomamos banho e limpamos a casa, ou peregrinamos nos campos e subimos montanhas. Ou ao deitar-nos e  ao acordarmos, alturas em que podemos observar como elas se encadeiam com outras, ou como se geram com originalidade e se desvendam.

As jaculatórias tanto nos defendem de negatividades e agitações dispersivas exteriores e reforçam certas energias ou qualidades como num dos seus níveis funcionais importantes tendem a elevar-nos a níveis mais próximos da nossa identidade ou ser íntimo, o espírito e, consequentemente ao mundo intelectivo, espiritual ou mesmo divinal e podem comparar-se, ou considerar-se, uma aproximação ao estar na presença de Deus,  ao caminhar diante de Deus, como algumas das nossas místicas antigas tanto tentavam alcançar.

A jaculatória, dirigida a qualidades, seres espirituais ou à Divindade pode ser praticada, observada ou desenvolvida ao nível do corpo, da respiração, da palavra, da mente, do intelecto, do coração e da visão, e é importante tanto o sentir ou mesmo contemplar da sua acção dentro de nós e ou acima de nós, como também o afecto, o sentimento, o amor dinamizados, já que têm a ver  com a vontade, com a intensificação sentida de todo o nosso ser e que, por vezes, no seu máximo, ressoa e desperta tanto o nosso querer mais profundo de alcançarmos o nível do que a jaculatória exprime, como também o nosso próprio ser-espírito, sobretudo se a jaculatória o exprime ou invoca mais especificamente, tal: "Viva o espírito imortal", ou a afirmação-oração-mantra dos espirituais indianos de  Sat Chit Ananda, eu sou Ser Consciência Felicidade.

Quando pronunciamos as jaculatórias com todos os níveis do nosso ser em acção a eficácia dela é maior no colorir ou qualificar a nossa aura nessa ligação ou caracterização específica, no unificarmos mais as nossas potências, no abrir-nos mais ao espírito e ao divino, em tingir-nos ou encher-nos mais das forças espirituais e divinas. E o irradiarmos tais energias, quando as proferimos em prol de pessoas com problemas ou que já desincarnaram.

As representações dos santos e santas aureolados exprimia em certos artistas a consciência que tinham dessa unificação ou plenificação anímica, desse brotar da semelhança de Deus, ou seja do corpo de Glória, o xvarnah iraniano, o augoeides grego, que todos possuímos em potencial e que nos seres mais luminosos e abnegados resplandece mais, embora certamente com o tempo tais aureolas e esplendores passaram a ser símbolos indispensáveis da representação dos santos e não correspondendo a uma intuição ou conhecimento do artista que os pintava ou desenhava. Mas ao contemplar-se o ícone e ao pronunciar-se (silenciosamnte ou não) a palavra, invocação ou jaculatória diante dele, tais estados luminosos eram mais facilmente vivenciavéis pelos fiéis.

Suponhamos esta oração ou jaculatória  brotar sentidamente de nós: - "Meu Deus, eu aspiro ardentemente a ti". Ela indica já uma certa ignicidade da alma, ou seja, o centro do coração está em acção, em irradiação, o que se vai intensificar se ela é mantida, usufruída, aprofundada. Na tradição portuguesa, embora seguindo a tradição europeia rosa cruz, um mantra desta linha ígnea foi pesquisado e afirmado por Fernando Pessoa ao parafrasear ou desdobrar as iniciais que encimavam a cruz de Jesus Cristo, INRI, como significando In nobis regnat Ignis, ou ainda In nobis ressurget Ille, ou seja, "Em nós reina o Fogo", ou "Em nós ressurge Ele", o Cristo, Deus, ou o fogo do Espírito.

Viva Deus, santo Amor, é outro mote, tal como o Non nobis, Domine, non nobis sed nomini tuo da gloriam, dos cavaleiros templários, ainda hoje operativos como jaculatórias. Mas certamente as melhores jaculatórias são as que  tendem a exclamarem-se, a suspirarem-se, a arderem de dentro de nós, por vezes para serem mantidas secretamente, apenas emanadas silenciosamente, outras vezes para serem partilhadas em cantos ou meditações e orações grupais.

Na tradição religiosa e espiritual portuguesa houve vários autores que escreveram sobre elas (tais como P. Diogo Monteiro, P. Manuel Bernardes, Frei António das Chagas) e místicas e místicos que  trabalharam mais especificamente certas jaculatórias e transmitindo-as aos seus próximos, umas vezes criando-as por si mesmas, outras vezes adaptando orações tradicionais, tal como a Soror Ignês de Jesus  que abreviara o Pai Nosso e a Avé Maria, ao rezá-las como jaculatórias, dizendo apenas "Pai Nosso que estais nos Céus" e "Avé Maria cheia de graça". Bastava-lhe tal, para em pouco tempo entrar em estados de interioridade e profundidade de  consciência, em sintonia sagrada e divina.

Por vezes as jaculatórias estabilizam-se ritmicamente seguindo a inspiração e a expiração e acalmando o mental, outras vezes entretecem-se e geram escadas ascendentes e ritmicas de sentidos e invocações fecundantes, transfigurantes,

Das jaculatórias cristãs ou portuguesas mais conhecidas poderemos relembrar ainda: "Meu Deus, eu creio, adoro, espero e amo-vos", o "Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, assim como era no princípio, agora e sempre, Amen", o "Eu amo-vos de todo o meu coração, de toda a minha alma, de todas as minhas forças", e ainda a clássica da tradição hesicasta e peregrina russa, na sua forma mais extensa (que pode ser abreviada): "Senhor Jesus Cristo, filho de Deus Vivo, tende piedade de mim que sou um pecador".

Para finalizar, oiçamos e recebamos algumas jaculatórias da seiva ardente de duas das nossas sorores místicas. Da Madre Brízida de S. António (1576-1655): "Imensa Bondade", "Eternidade para sempre, para sempre glória a Deus", "Mãe de Deus valei-me", "Meu Santo, lançai-me a vossa bênção". E da escalabitana Soror Inês de Jesus, (1641-1728):"Ó Bondade infinita, ó Pai da minha alma"  e "Ay Amor, Amor, Amor!"

Boas jaculatórias, meditações, unificações, irradiações...

                                                 

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