domingo, 14 de julho de 2024

"O Anjo da Guarda", soneto de Luís de Magalhães, discípulo de Antero, e talvez inspirador de Fernando Pessoa.

Luís de Magalhães (13-IX-1859, Lisboa, a 14-XII-1935, Porto) foi um amigo de Antero de Quental, embora dezassete anos mais novo do que ele,  que se  destacou como escritor, poeta, governador civil, deputado e ministro dos Negócios Estrangeiros, sendo monárquico  e tanto apoiando e colaborando na Liga Patriótica do Norte, presidida por Antero e coadjuvada por ele, Basílio Teles e Jaime Magalhães de Lima, em 1890, contra o Ultimato do imperialismo inglês, como mais tarde com a revolta da Monarquia do Norte, em 1919, algo corajosamente pois era uma aventura quase que, no seu anti-republicanismo, condenada ab initio. Na Frota dos Sonhos, de poesia bem valiosa, a parte Os Cantos do Prisioneiro, com onze sonetos, retrata o seu profundo e indomável carácter, embora encarcerado físicamente.

Dedicatória e assinatura de Luís de Magalhães.

Filho do famosíssimo tribuno e jornalista José Estêvão (1809-1862),  tinha também o dom da palavra, escrita ou falada, e destacar-se-á ao tempo de estudante em Coimbra  fundando e colaborando em revistas e jornais, tais como A Sátira e A Província, um jornal sobretudo político fundado por Joaquim de Oliveira Martins, em 1885, e por fim na Revista de Portugal, ao lado de Antero, Eça, Moniz Barreto e outros. Publicou os seus primeiros livros de versos em 1880 e 1881, Primeiros Versos e Navegações

Embora aderindo inicialmente ao Positivismo e à escola Realista, com o tempo foi desenvolvendo a sua doutrina numa linha tradicional, patriótico-nacionalista, patente no longo poema D. Sebastião, 1898, em textos político-económicos, e nos sonetos da Frota dos Sonhos, 1924, dos quais seleccionamos um por abordar a temática angélica, o subtil e misterioso Anjo da Guarda.  Quanto à temática psico-espiritual há vários sonetos, nomeadamente nas partes Ara íntima e Em Face da Esfinge, onde a leitura e meditação de Antero de Quental está mais visível. Pareceu-nos ainda   que Fernando Pessoa terá lido o soneto, e eventualmente nele se inspirado, como aliás noutros da parte Tuba Épica, que cantam os heróis da Pátria, embora a obra Frota dos Sonhos não esteja no que resta hoje da biblioteca do autor da Mensagem.

O Anjo da Guarda

Mesmo na ausência, andas a meu lado,
Que bem te vê, amor, meu coração,
Sombra amiga, adorada aparição,
De que sou, de contínuo, acompanhado.

Fluido vulto, de etérea luz nimbado,
Tal, adiante de mim, segues então;
E assim no mundo, pela tua mão,
Perto ou longe que estejas, vou levado...

Por isso, ao abordar os precipícios
Da vida, em cujo fundo, horrendamente,
Rugem quais feras, as paixões e os vícios,

Marcho confiante, olhando o abismo em face,
Como se caminhando à minha frente
Algum Anjo da Guarda me guiasse!
 
As ideias do soneto são simples: Luís de Magalhães intui ou pressente que está sempre acompanhado por um Anjo, que é um vulto fluídico e luminoso. Aliás, confessa mesmo que é o seu coração que o vê e sente como sombra amiga, como um vulto etéreo nimbado, como uma adorada aparição que lhe dá a mão.  Com esta presença contínua pode avançar por entre os perigos da vida, os abismos dos desequilíbrios emocionais, sentindo que o Anjo  vai à frente como que abrindo-lhe o caminho.
A sua sensibilidade ao Anjo é sobretudo à sua luminosidade e forma, e exprime bastante amor e confiança, embora o terceto final seja mais fraco na transmissão de uma relação com o Anjo, pois parece confessar ser mais um acto de fé em ser guiado por algum Anjo da Guarda, do que uma vivência com o seu Anjo da Guarda, certamente algo de difícil de ser contemplado e sobretudo de ser mantido continuamente.
Já o poema de Fernando Pessoa que  publiquei pela primeira vez (in Poesia Profética, Mágica e Espiritual, 1989) dos seus inéditos no espólio da Biblioteca Nacional, é bastante mais rítmico, e se em palavras e imagens pode ter sido influenciado pelo soneto de Luís de Magalhães, ou talvez apenas poetizado sobre o mesmo campo de energias, num ou noutro aspecto Fernando Pessoa distingue-se, pois o seu Anjo da Guarda é sentido não de mão dada mas sim pelas mãos postas sobre os seu ombros,  ambos avançando confiantes: Luís de Magalhães vencendo os abismos, Fernando Pessoa sentindo a luz da aurora a raiar ao fundo. Eis a parte final do poema, datado de 9-5-34, sob o título Sup. Incognytos:
Mãos do meu Anjo da Guarda,
Que bem guiais, como dois,
O meu ser que teme e tarda,
Postas firmes nos meus ombros
Sem de que eu veja de quem sois!
 
Vou pela noite infiel
Sentindo a aurora raiar
Por detrás de alguém que me impele
Mas já adiante de mim
Vejo a luz a começar (variante: se espelhar)».

Que consigamos ver ou sentir os Anjos, tal como eles poetizaram, ou como nós merecermos! Muita luz e amor angélicos em Luís de Magalhães e Fernando Pessoa.
                                                              

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