quarta-feira, 10 de julho de 2024

As aves e a sacralidade da Natureza, no Bom Jesus do Monte em Braga. Extraído dum diário dos anos 90 e agora levemente melhorado.

                                        
                                    No Bom Jesus do Monte.
Quantos cantos diferentes,
 uns mais simples, outros mais intensos, uns mais alegres, outros mais rápidos, uns mais subtis, outros mais familiares. E quem os consegue entender? São eles acções de graças vitais, vozes de amor, ou entusiasmos pela beleza e as maravilhas de Vida que os envolvem? 
Ai os pássaros, esses místicos incompreendidos... 
Horas e horas a fio a purificarem os ares com os seus sons perfeitos. Dom Rouxinol, hierofante máximo, apoiado pelos nobres guerreiros melros, hierarquizam ainda uma natureza que se conserva em alguns sectores, e mais do que supomos, medieval, renascentista. E se bem que por vezes, por curiosidade, ou por distração, as asas latejam e dirigem-se numa descida quase a pique até a cidade de Braga, é aqui neste alto cheio de árvores e penedos que as forças naturais e espirituais se conservam e geram um monte sagrado, que leva agora o nome do Bom Jesus ainda que antes o de outros bons deuses tenha tido. 
As aves, essas são politeístas. Já lavraram os ares nos templos dos lusitanos ou dos romanos e mesmo dentro do Cristianismo não aceitaram o comando divina de uma pomba. É certo que com a idade, elas se tornam mais responsáveis, mais compassivas, como as abadessas de mosteiros remotos pelas distâncias e o peso dos anos, das orações  e dos sacrifícios, almas tornadas tão tolerantes como a manteiga amolecida ao gume da faca, ou as faces avermelhadas de uma avozinha provinciana. Mas daí a serem Deus ou deuses vai muito. 
Quem reconheceu em S. Francisco, um deus, um novo Cristo ou ungido, senão os pássaros mais simples e diferentes que viam e sentiam a Divindade encher de tal modo esse ser que ele era um poço de Alegria, uma ramada de Bem-aventurança, a Fonte da Vida a jorrar simples e para todos. E deificaram-no, tal como o bando dos pardais que se chamou os frades menores, ou os franciscanos espirituais, que também como um enxame de abelhas se lançou a butinar quantas florezinhas viam pelos caminhos mais íngremes e pobres do coração e conservaram o culto fraterno do Senhor antigo Jesus e ao novo senhor Francisco, também ele desperto e vibrante numa consciência tão cristalina e de amor que via irmãos nos burros, irmãs na lua e se calhar nas fadas e magas, ainda que isto não pudesse ser dito porque o proibiam os representantes ou continuadores dos deuses ciumentos e despóticos, que sempre os houve cegando os dirigentes mais ambiciosos.

Assim entre uma natureza tão bruta e pura como as pedras, as rochas e as árvores por um lado, e os homens, os deuses e a divindade por outro lado, foram sobretudo as aves e pássaros que conservaram a sua liberdade de expressão por mais cadeias que lhes fizessem, fossem gaiolas de ouro para pássaros azuis, fossem armadilhas de rústicos. E por isso os homens e mulheres do utópico reino do Espírito santo no dia do ciclo litúrgico que o comemoravam não só abriam as cadeias e prisões humanas mas também desejavam abrir as de todas as gaiolas e jaulas da natureza...

Mas até chegar tal dia ou idade do Espírito santo esses poetas e místicos, panteístas e futurista têm de limitar-se a ir até aos bosques, outrora sagrados e agora envolvidos ora numa cortina de espinhos do pecado original ora nas modernices do controle social, contemplar a santa natureza e os seus hierofantes, os pássaros das mais diversas plumagens e auras, e comunicarem entre si em círculos de poesia ou em noites claras. Foi assim desde os séculos antigos até hoje em Portugal, aos pastores e zagalos dos campos e montados se juntando os viandantes e peregrinos da criatividade e liberdade, da independência do sobrenatural universal, fiéis do Amor. 
Assim cada vez mais na Natureza, nos pássaros, animais e seus amantes, se acantonam as verdadeiras forças religiosas, ou seja, aquelas que religam o céu e a terra conscientemente pelo trabalho e a receptividade, a acção criativa de graças,  observação, a escuta, o diálogo, o amor, e frutificando pela palavra, a escrita, a transmissão, a celebração.

A Natureza tornou-se hoje o templo mais vivo de Deus, face à confusão das cidades, pesem ainda nestas as suas catedrais e jardins, monumentos e bibliotecas, onde o sopro do espírito passa e a inteligência divina se vê e se pode consultar ou cultuar. Mas as melhores imaginações e inspirações, intuições e comunhões, essas pérolas e cristais da Natureza e da Humanidade, essas florescem mais  nos bosques e serras, campos e montes, por entre penedos e covas, arbustos e canaviais, riachos e árvores, desafiando-nos constantemente ainda que silenciosamente a não nos deixar alienar e artificializar nas malhas da comunicação digital e redes sociais, e antes regressarmos mais ao contacto e comunhão com a Natureza pura e seus seres, visíveis e invisíveis...

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