Impressa três anos antes do seu autor (1679-1749) deixar a Terra, a Instrução que o 2º Marquez de Valença Francisco de Paula de Portugal e Castro, 8.º conde de Vimioso; deu ao seu filho... é obra que transparece o seu carácter e vida, e está animada pelo seu amor à sabedoria e à virtude, com uma boa escolha de exemplos antigos sobre os vícios e as virtudes, com conselhos na forma de ditos que se assimilam facilmente, mas não se destina a gerar grandes sentimentos ou entusiasmos, mas antes transmitir uma súmula sábia da sua vasta leitura e experiência. Lemo-la já na sua 2ª edição, um in-12º de 93 páginas, de Lisboa, de 1756, Instrução que o Marquez de Valença D. Francisco de Portugal, do Conselho de Sua Majestade, dá a seu filho segundo D. Miguel Lúcio de Portugal e Castro, Cónego da Santa Igreja de Lisboa, e se consultarmos a Biblioteca Lusitana de Diogo Barbosa de Machado apercebemo-nos melhor como D. Francisco de Portugal sentiu a obrigação de redigir um testamento anímico, que aliás já escrevera para o seu primogénito, pois era da nobreza culta palaciana dando ao estudo diariamente seis horas, dominando várias línguas e o manejo do cavalo, sendo ainda um hábil e sábio orador na Academia Real da História Portuguesa (1720-1776) ou mesmo no Paço Real, pronunciando por obrigação dezenas de orações e elogios e manifestando plenamente ser um benemérito e estoico cortesão e pensador.
Também encontramos informações sobre ele no investigador portuense José Adriano de Freitas Carvalho, que recentemente lhe dedicou um estudo valioso bio-bibliográfico, algo compacto, que está em rede, contextualizando-o até com o movimento de reforma e conversão interior denominado então Jacobeia, e que incidiria também nesta Instrução e na outra para o seu primogénito.
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O frontispício da 2ª edição da obra.
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A obra valoriza acima de tudo o amor a Deus (transcendente e imanente) e em segundo o amor ao próximo, exemplificado sobretudo na partilha dos bens e na esmola («se tiveres muito, dá com largueza; se pouco, procura dá-lo de boa vontade») e segue uma linha de aproximação das virtudes e vícios («a soberba é vício tão poderoso que arruinou os Anjos: vede que estrago fará nos homens!», exemplificando-os com figuras e textos da Bíblia e de autores cristãos, a que junta ainda muitos casos exemplares e citações de gregos e romanos. E se sabemos que durante dezenas de anos se especializou na leitura dos grandes autores latinos, tais como Cícero, Séneca e Plínio, devido ao seu interesse na filologia, retórica e ética, já não temos a certeza se terá compulsado algum dos manuais de sabedoria e de provérbios da época, tais os Adágios de Erasmo (1466-1536), ou a Officina de Joannes Ravisius Textor (1492/3-1522).
Claro que a sabedoria normal do Cristianismo corre com abundância na obra, e até se pode estranhar serem tão poucas as citações de Jesus e as duas de S. Paulo, ou mesmo dos padres da Igreja, pois só uma ou duas vezes surgem S. Jerónimo e Agostinho. Será que destinando-se a um filho religioso, familiar com tais veios tentou alargar a sua visão aos sábios anteriores da Grécia e Roma? Com interesse nacional são as citações de ditos ou feitos dos reis portugueses, ou o que deixa de transparecer em relação aos reis portugueses e à casa de Bragança.
Os conselhos de ética e moral reflectem os valores de honestidade, honra, sobriedade, justiça, discrição, prudência e piedade. E estão divididos em duas partes, a primeira geral, para todos os seres, até à página 62, e concluída assim:«Meu
filho matam-se os pais, por muitos modos. Não só se matam com o punhal e
o veneno, como também se matam com os desgostos, e com as injúrias. Tirar a vida natural o filho ao pai é grande desatino, mas tirar um filho a um pai honrado a vida da fama é maior impiedade. A vida natural acaba em breves anos, a vida da fama acabará com o mesmo mundo. Imitai pois a obediência, o respeito, a submissão, o amor, a ternura, a fidelidade que se deve aos pais, trazendo sempre diante dos olhos, impresso na memória, estampado no coração, gravado nas palavras, esculpido nas obra a inaudita veneração, e incomparável afecto dos nossos suavíssimos príncipes para seus augustos pais [Reis], mas de tais pais tais filhos se esperavam, porque as águias não geram pombas».
Na segunda parte, mais pequena e endereçada especificamente ao filho enquanto sacerdote, escrita de igual modo numa forma quase de aforismos ou ditos sábios, destacaremos o "não só evitar escândalos, mas dar bons exemplos", "os justos caiem sete vezes ao dia mas logo se levantam", «um sacerdote não só há-de ser virtuoso, mas parece-lo. Esquece-me o nome da virgem Vestal, que foi castigada, porque os seus exteriores não concordavam com a modéstia que professava», o ser-se dedicado à religião ou «ao templo, não consiste só no hábito Clerical, se não nos hábitos das virtudes» e aqui D. Francisco de Portugal ecoa o o famoso e pouco apreciado dito de Erasmo monachus non est virtus, isto é, ser-se monge, ou usar as suas indumentárias, não significa que se é virtuoso, esta dependendo de uma douta piedade vivida e perseverada.
Criticando a vida profana seja dissoluta seja delicada, realçará a sobriedade e dirá que a comida é para sustentar o corpo e não para o regalar, e que está-se em erro se é «uma livraria mais preciosa pelas encadernações, e estantes, que pela escolha dos livros. E os livros mais para entreter o tempo, que para regular as paixões».
Nestes tempos de tanta quantificação, de tanto viral, de tanta manipulação, alienação, vulgarização e massificação valerá a pena cogitarmos bem o que nos transmite: «Não vos governeis pelo que vedes fazer a muitos, antes pelo que fazem os poucos, que costumam ser os melhores. Os poucos na língua Latina valem o mesmo que escolhidos. Há mais ferro do que ouro, há mais cristais que diamantes», e umas linhas mais à frente continua a escrever para os dias de hoje: «É mui diferente o que agrada aos olhos do que agrada à razão, o que aprova o vulgo do que aprovam os sábios. Aparelhai-vos para ouvir trocar os nomes às coisas, e não vos atemorize esta troca: assim começou o mundo, assim há-de acabar a sua carreira. Ouvireis chamar hipócrita à virtude, miséria à moderação, insensibilidade ao sofrimento, grosseria à temperança, altivez ao respeito e rigor à gravidade. As virtudes em toda a parte são estimadas dos bons, e em todo o tempo odiosas aos maus.»
Relembrará o símbolo pitagórico "nada em excesso", a que chamara «a sentença de Sócrates celebrada por todos os Filósofos», a necessidade de se aconselhar sempre antes de se tomarem decisões ou acções importantes e o valor da perseverança, pois «não basta começar bem, se não continuares, e acabares melhor», concluindo a sua obra assim: «Perseverai pois nas virtudes, que Deus vos deu para lhe seres grato, e agradecido, e para lhe mereceres a liberalidade de outras maiores, para responderes às muitas, que exercitaram os vossos antepassados, para servires a vossa pátria, para agradares aos nossos Príncipes, para consolares a vossos pais vendo bem lograda a sua doutrina, premiados os seus trabalhos, cumpridos os seus desejos na perpetuidade da vossa boa fama.»
Seguem-se após o "Fim", as oito páginas de três licenças de Censura: a do Santo Ofício, a do Paço e a do Ordinário, destacando-se um dos censores por chamar à obra "enchiridica", uma
palavra raramente empregada entre nós e que provém do latim enchiridion, que significa tanto manual como punhal e que foi utilizada celebremente por Erasmo, quando escreveu o Enchiridion milites Christiani, o Manual do Cavaleiro (ou do soldado) cristão e
que teve um sucesso na época enorme, chegando a ser traduzido e
publicado em Espanha e em Portugal, quando as forças mais ortodoxas e
reacionárias da Igreja, em especial dos dominicanos e de Zuniga, atacavam e
tentavam proibir a leitura das suas obras. Será que esse censor, Manuel
dos Campos, jesuíta e membro da Academia Real, que assina o seu parecer datado de 4-VII-1745, na
casa professa de S. Roque, teria simpatias erasmianas?
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Erasmo num pequeno altar devocional ou invocativo lisboeta, quando eu escrevia sobre ele no seu Modo de Orar a Deus.
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Oiçamos a sua aprovação, transcrita após as licenças do qualificador do Santo Ofício (ou
Inquisição) Frei Bernardo do Desterro e, pelo Desembargador do Paço, o Padre Joseph Barbosa,
Académico de número da Casa Real e cronista da Sereníssima Casa de
Bragança:
«É
pois esta Instrução uma Ética abreviada, e um como novo livro dos
Provérbios (se não canónico, de suma autoridade) em que se acham todos
os ditames morais, e políticos, que se podem desejar em um Cavalheiro
Eclesiástico: e sendo tanta a importância da obra, concorrem nela tantas
circunstâncias para a fazer familiar, e enchiridica, como são a
elegância do estilo, a pureza da língua, a escolha dos exemplos, a
energia das reflexões, o toque oculto das mais recebidas autoridades, e
sobre tudo a brevidade, e clareza, que totalmente alivia os mais
senhores de seguir outro método, ou buscar outra arte de educação, mais
que fazer decorar esta tão adequada para o intento», e anote-se que
melhor do que "decorar" seria ter escrito "compreender, assimilar e
vivenciar"...
Poderemos interrogar-nos se D. Francisco de Portugal dera ao filho ao longo da vida alguns destes conselhos, ou lhe falara do seu projecto e se este correspondeu frutiferamente a tais instruções. Mas parece que sim, pois no fim são inseridos seis sonetos do seu filho Miguel, com uma interessante e erudita apresentação anónima (iniciais ER.M.), que pode ser de alguém ligado ou representando o Colégio de Jesus de Meninos Órfãos, de Lisboa, que recebera os direitos do livro, o jovem sendo ao lado do pai bem elogiado e até através da tradição pagã: «Em quanto não recordamos a lição desta eruditissima e elevadíssima obra, nunca cabalmente louvada, vejamos o talento do segundo génito de Sua Excelência na Instrução, que lhe pertence; observaremos que é filho da Águia, porque fitando no sol Apolíneo se sublimou, e exorna com esplendor singular de Artes e Ciências, e valido do mesmo Apolo, lisonjeando [ou cultuando e invocando as inspirações subtis] as Musas, bebe na [fonte, tão celebrizada pelos poetas inspirados] Castália, cujas cristalinas [ou subtis e espirituais vibrações e] águas lhe incitam tão preclaras poesias, que sabe aplicar aos mais soberanos assuntos, repetindo o seu excelso e inacessível voo até se remontar na imortal fama».
Após este belo voo às fontes da inspiração seguem-se seis sonetos de D. Miguel Lúcio de Portugal e Castro e, para acolhermos o seu lado poético e
algumas metáforas valiosas fotografamos o soneto platonicamente dedicado à um retrato da Sereníssima Rainha de Hungria,
depois de vários sucessos gloriosos na guerra, e à sua formosura imortal, e um outro a S. João Baptista e ao rei D. João V. Anote-se antes porém que Barbosa Machado no IV volume da sua Biblioteca Lusitana, de 1759, biografa Miguel Lúcio, `nascido a 13-XII-1722, indicando o seu grau de Mestre em Artes, em 1742 na Universidade de Évora, e seu doutoramento em Direito Pontifício em Coimbra, em 1746, e registando como dados à luz um elogio fúnebre de D. João V, recitado na Academia dos Ocultos, uma oração panegírica à coroação de D. José, e umas coplas à Marquesa de Távora ao acompanhar o marido na viajem para a Índia, onde ele serviria como Vice-Rei.
Podemos considerar que a obra não aprofunda especulativa ou hermeneuticamente muito mistérios religiosos, filosóficos ou
espirituais, e que é mais um condensado de sabedoria moral e ética, assente numa boa
compreensão psicológica dos seres e das suas psiques, em tempos e meios sociais
diversos mas na unidade do género humano. Mas, tal como para muitos sábios humanistas, de Marsilio Fino a Erasmo,
a religião era sinónimo de sapiência, ela bem merece ser lida e meditada,
tanto mais que nos nossos dias, no meio da desinformação e desnorte dominantes, muitos
conceitos e comportamentos errados ou nocivos ao corpo e alma são vistos como
acertados ou tornam-se mesmo as narrativas oficiais e as mentalidades vigentes, pelo que as considerações suas ou os ditos de antigos, plenos de sabedoria moral ou ética, valem bastante ao ajudar à harmonização da personalidade, à religação espiritual e divina e a uma melhor vida na terra e nos mundos subtis do além. Oiçamos então alguns sábios e ditos:
Do sábio Lactâncio (240-320), que se convertera da filosofia pagã à cristã:«Em que difere o justo e o sábio dos maus e ignorantes, senão em que aqueles tem uma invencível paciência, que falta aos estultos, e em que sabem governar-se, e moderar a sua ira, e estes não podem refreá-la, porque carecem de virtude. O certo é, que os vingativos imitam os animais, e as feras, que se as provocam, ofendem com as armas que lhe deu a natureza».
«Horácio bem desenganou os negligentes, dizendo, que nada se deu aos mortais sem grande trabalho da vida»
«Diz no Plínio no seu Panegírico, que Trajano nunca despedia as pessoas, com quem conversava; que elas, e não ele eram as que punham o termo à sua prática. Mais fez António Pio para ostentar a sua urbanidade, quando vendo a casa de um seu vassalo ornada de excelentes colunas, lhe perguntou onde as achara. A resposta foi: Quando fordes às casas alheias, sede surdo e mudo. E não conta, que este Imperador o castigasse por tal ousadia.» p. 19.
«Em quanto Alexandre [da Macedónia] foi sóbrio, foi herói, tanto que foi delicioso, e cuidou nos regalos da Ásia, logo fez acções indignas de um homem particular, e alheias de um Príncipe soberano. Quem mais sóbrios moderados, que Cúrio, Fabrício e Catão, que colhiam com as suas mãos as hortaliças, e as comiam em pratos de barro e não de ouro? Augusto César senhor do mundo só admitia na sua mesa iguarias vulgares. Diz Ovídio falando dos tempo, em que reinava a parcimónia, e não a gula: "Ainda o peixe nadava sem engano, e os mariscos estavam seguros nas suas conchas". A Escritura nos recomenda, que não queiramos ser apetitosos de todas as iguarias, porque nas muitas está a enfermidade, e continua; pelo excesso de comer muitos morrerão, mas quem é parco dilatará a vida». p. 32
A diferença entre a liberalidade justa e a prodigalidade é bem afirmada por D. Francisco de Portugal, e certamente continua a ser de grande actualidade e necessidade face ao esbanjamento absurdo do dinheiro público: «A prodigalidade quase merece o mesmo ódio, que a miséria, e avareza, por impedir o heróico exercício da liberalidade. É vício, que o não parece, e por esta causa mais difícil de remediar, como são todos os que têm aparência de virtude. Destrói a caridade bem ordenada, pois por enriquecer os outros se empobrece cada um a si mesmo. Como é vício proveitoso para muitos, há poucos, que o condenem, e fica o vicioso sem emenda, e às vezes com a vaidade da mesma culpa. Nem se compadece com um ânimo liberal dar de tal sorte o preciso, que se venha a pedir o necessário, sendo favorável aos estranhos para ser cruel com os domésticos.»
E como foi sobretudo um grande estudioso, finalizemos esta homenagem a tradição moral e espiritual portuguesa na pessoa de D. Francisco de Portugal, transcrevendo alguns parágrafos da sua súmula sábia acerca do estudo:
«Os grandes filósofos andaram pelo mundo consultando os maiores sábios do seu tempo. Parece-me, que diz Séneca, que a causa porque os homens se não adiantam no saber, é, porque logo se persuadem, que tem sabido. O certo é, que o que se ignora, é muito mais, que o que sabe. Daqui nasceu, que os sábios antigamente se intitulavam só Filósofos, que vêm a ser amantes da Sabedoria, para mostrarem, que a amavam, e não que a possuíam.»...
Saibamos pois ser Filósofos, conceito e palavra nascido publicamente com Pitágoras, Aamigos da Sabedoria, isto é, procurando viver em harmonia e despertando mais a alma espiritual e a sua comunhão com santo Graal do Bem, do Amor, da Justiça, da Tradição Espiritual Portuguesa e Perene, dos Mestres e Anjos, do Céu e do Cosmos e da Divindade.
O santo Graal, no frontispício dos Adágios de Erasmo e sobre a empresa Festina Lenta, Apressa-te lentamente, do sábio impressor veneziano Aldo Manutio.