domingo, 14 de julho de 2024

"O Anjo da Guarda", soneto de Luís de Magalhães, discípulo de Antero, e talvez inspirador de Fernando Pessoa.

Luís de Magalhães (13-IX-1859, Lisboa, a 14-XII-1935, Porto) foi um amigo de Antero de Quental, embora dezassete anos mais novo do que ele,  que se  destacou como escritor, poeta, governador civil, deputado e ministro dos Negócios Estrangeiros, sendo monárquico  e tanto apoiando e colaborando na Liga Patriótica do Norte, presidida por Antero e coadjuvada por ele, Basílio Teles e Jaime Magalhães de Lima, em 1890, contra o Ultimato do imperialismo inglês, como mais tarde com a revolta da Monarquia do Norte, em 1919, algo corajosamente pois era uma aventura quase que, no seu anti-republicanismo, condenada ab initio. Na Frota dos Sonhos, de poesia bem valiosa, a parte Os Cantos do Prisioneiro, com onze sonetos, retrata o seu profundo e indomável carácter, embora encarcerado físicamente.

Dedicatória e assinatura de Luís de Magalhães.

Filho do famosíssimo tribuno e jornalista José Estêvão (1809-1862),  tinha também o dom da palavra, escrita ou falada, e destacar-se-á ao tempo de estudante em Coimbra  fundando e colaborando em revistas e jornais, tais como A Sátira e A Província, um jornal sobretudo político fundado por Joaquim de Oliveira Martins, em 1885, e por fim na Revista de Portugal, ao lado de Antero, Eça, Moniz Barreto e outros. Publicou os seus primeiros livros de versos em 1880 e 1881, Primeiros Versos e Navegações

Embora aderindo inicialmente ao Positivismo e à escola Realista, com o tempo foi desenvolvendo a sua doutrina numa linha tradicional, patriótico-nacionalista, patente no longo poema D. Sebastião, 1898, em textos político-económicos, e nos sonetos da Frota dos Sonhos, 1924, dos quais seleccionamos um por abordar a temática angélica, o subtil e misterioso Anjo da Guarda.  Quanto à temática psico-espiritual há vários sonetos, nomeadamente nas partes Ara íntima e Em Face da Esfinge, onde a leitura e meditação de Antero de Quental está mais visível. Pareceu-nos ainda   que Fernando Pessoa terá lido o soneto, e eventualmente nele se inspirado, como aliás noutros da parte Tuba Épica, que cantam os heróis da Pátria, embora a obra Frota dos Sonhos não esteja no que resta hoje da biblioteca do autor da Mensagem.

O Anjo da Guarda

Mesmo na ausência, andas a meu lado,
Que bem te vê, amor, meu coração,
Sombra amiga, adorada aparição,
De que sou, de contínuo, acompanhado.

Fluido vulto, de etérea luz nimbado,
Tal, adiante de mim, segues então;
E assim no mundo, pela tua mão,
Perto ou longe que estejas, vou levado...

Por isso, ao abordar os precipícios
Da vida, em cujo fundo, horrendamente,
Rugem quais feras, as paixões e os vícios,

Marcho confiante, olhando o abismo em face,
Como se caminhando à minha frente
Algum Anjo da Guarda me guiasse!
 
As ideias do soneto são simples: Luís de Magalhães intui ou pressente que está sempre acompanhado por um Anjo, que é um vulto fluídico e luminoso. Aliás, confessa mesmo que é o seu coração que o vê e sente como sombra amiga, como um vulto etéreo nimbado, como uma adorada aparição que lhe dá a mão.  Com esta presença contínua pode avançar por entre os perigos da vida, os abismos dos desequilíbrios emocionais, sentindo que o Anjo  vai à frente como que abrindo-lhe o caminho.
A sua sensibilidade ao Anjo é sobretudo à sua luminosidade e forma, e exprime bastante amor e confiança, embora o terceto final seja mais fraco na transmissão de uma relação com o Anjo, pois parece confessar ser mais um acto de fé em ser guiado por algum Anjo da Guarda, do que uma vivência com o seu Anjo da Guarda, certamente algo de difícil de ser contemplado e sobretudo de ser mantido continuamente.
Já o poema de Fernando Pessoa que  publiquei pela primeira vez (in Poesia Profética, Mágica e Espiritual, 1989) dos seus inéditos no espólio da Biblioteca Nacional, é bastante mais rítmico, e se em palavras e imagens pode ter sido influenciado pelo soneto de Luís de Magalhães, ou talvez apenas poetizado sobre o mesmo campo de energias, num ou noutro aspecto Fernando Pessoa distingue-se, pois o seu Anjo da Guarda é sentido não de mão dada mas sim pelas mãos postas sobre os seu ombros,  ambos avançando confiantes: Luís de Magalhães vencendo os abismos, Fernando Pessoa sentindo a luz da aurora a raiar ao fundo. Eis a parte final do poema, datado de 9-5-34, sob o título Sup. Incognytos:
Mãos do meu Anjo da Guarda,
Que bem guiais, como dois,
O meu ser que teme e tarda,
Postas firmes nos meus ombros
Sem de que eu veja de quem sois!
 
Vou pela noite infiel
Sentindo a aurora raiar
Por detrás de alguém que me impele
Mas já adiante de mim
Vejo a luz a começar (variante: se espelhar)».

Que consigamos ver ou sentir os Anjos, tal como eles poetizaram, ou como nós merecermos! Muita luz e amor angélicos em Luís de Magalhães e Fernando Pessoa.
                                                              

sábado, 13 de julho de 2024

A "Pia Desideria", ou "Desejos Piedosos" : o I livro, de Herman Hugo, e os seus emblemas de harmonização e religação espiritual e divina. Com hermenêutica original dos XV emblemas iniciais.

Frontispício, muito simbólico, da 1ª edição da Pia Desideria, de 1624.

 A Pia Desideria, Desejos Piedosos, foi a obra religiosa emblemática mais editada no século XVII, desde que em 1624  saiu pela primeira vez  em latim, num in-12º de 414 páginas, na tipografia de Henrici Aerstiensi, em Antuérpia. A obra estava dividida em três partes ou livros e cada um continha quinze gravuras de emblemas do diálogo entre uma jovem alma e Deus, ou Jesus Cristo, ou o Amor Divino, em geral representado por um Anjo jovem, que pode ser no fundo o Anjo da guarda da alma.  Foram desenhadas e gravadas por vários artistas, tais como Boetius Bolswert (a 1ª edição, sobre cobre), Christophe van Sichem (a 3ª, sobre madeira), Antonie Wierix e outros. Debaixo de cada emblema estava inscrita em latim a legenda, que era um pequeno versículo da Bíblia, desenvolvido depois numa reflexão meditativa em forma de poema e, por fim, comentado com múltiplos excertos (referenciados) de Padres da Igreja e da Bíblia. Algumas edições mais condensadas ou pequenas continham apenas a gravura com o mote das Escrituras, o poema e uma pequena frase a servir de comentário, o que as tornava mais pequenas, legíveis, atraentes e eficazes no tocar e despertar a alma espiritual...

A gravura em cobre do emblema, com o versículo da Bíblia, e o poema que o parafraseia.

O que justificaria tal sucesso? A humanização e democratização da  via mística obtida por um texto simples e imagens tocantes, que deixava de estar indicada ou transmitida apenas em missais, bíblias e livros de horas? O facto de ter sido rapidamente traduzida para várias línguas europeias, pondo assim a obra ao dispor do grande público, e ainda por cima em edições de bolso? O conteúdo do poema, os comentários exegéticos, ou sobretudo a receptividade às imagens muito queridas dos fabulosos desenhadores e gravadores Boetius à Bolswert (1580-1633) ou Cristophe van Sichem (1581-1688)? Contaria também a experiência, sabedoria e carisma do seu sábio autor humanista e sacerdote jesuíta, que tragicamente morreria cedo, aos 49 anos, numa epidemia de peste?
Ainda hoje poderá interessar-
nos e tocar-nos interiormente, ou o sucesso dependia de um público muito crente e devoto, e carente de literatura religiosa mais dirigida ao interior de cada ser, algo que começara no século XV com a Devotio moderna, e que a Imitação de Cristo, de Thomas a Kempis e depois o Manual do cavaleiro cristão de Erasmo, tinham realizado com grande eficácia e sucesso, tal como Marcel Bataillon, na sua monumental obra Erasme et l' Espagne, dada à luz em 1937, documentou excelentemente, e como eu citei várias vezes, em 2008, no prefácio e comentários ao Modo de Orar a Deus do grande humanista.
                                                              
Outro elo importante, no sentido de uma humanização e imaginação afectiva da religiosidade e da oração, foram os famosos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loiola,  escritos sob a influência da devotio moderna do abade Garcias de Cisneros e da Imitação de Cristo de Thomas a Kempis, e publicados pela 1º vez em 1548, descrevendo os modos de oração, as vias de purificação, e com todo o dramatismo a vida e paixão de Jesus,  que as pessoas liam, contemplavam (a partir de meados do séc. XVII quando as edições começaram a ser ilustrada, tal a da tradução portuguesa de 1687) e depois imaginavam na suas almas. Foram os Exercícios uma das primeiras metodologias de oração mental realizada em retiros de cerca de um mês individualmente e em grupos e que teve grande sucesso ao ser dinamizada pela Companhia de Jesus, chegando a Goa, como Fernão Mendes Pinto vivenciou, e até aos nossos dias.
                                                               

       O exame de consciência, numa edição de Antuérpia de 1680 dos Exercitia Spiritualia.

 Muito mais próximos da modulação afectiva do amor místico e do tipo de imagem da Pia Desideria foram os Amorum Emblemata, do humanista e pintor Otto van Veen, ou Otto Venius (1558-1629), muito viajado e influentíssimo à escala europeia. Publicados em 1608, os Emblemas do Amor estavam mais abertos à sabedoria pagã, com muitas citações de Ovídio, do que os  publicados em 1615, Amoriis divini Emblemata, embora o estilo artístico (angélico) fosse o mesmo. Mas  outros livros de emblemata de amor existiam e foram também influentes na iconografia amorosa angélica, tais os do sábio humanista Daniel Heinsius (1580-1655), que em 1601 publicara o  Quaeris quid sit Amor, Perguntas o que seja o Amor, e em 1607 o refundira sob o nome de Emblemata amatoria, com gravuras muito belas de Jacques de Gheyn, e na base do Anjo cupido, ou Amor Divino, agente ou dialogante. E muitos outros livros de Emblemas do Amor se seguiram...

Um dos emblemas gravados por  Jacques de Gheyn no Liebestheater, de Hensius, 1601
O autor da Pia Desideria, um sacerdote belga jesuíta, Herman Hugo (1588-1629), era bem conhecido (embora não tenhamos imagens dele), pois fora professor de humanidades no colégio de Jesuítas em Antuérpia e depois prefeito no colégio de Bruxelas, além de autor de  textos sobre a origem da arte de escrever e de polémica com um teólogo Luterano e outro Calvinista. Teria ainda o dom da oratória pois fora nomeado capelão chefe dos Exércitos espanhóis  do rei D. Filipe III no sul dos Países Baixos ou Holanda, vindo a escrever acerca do cerco de Breda, batalhas e fortificações, e viajado bastante e certamente conheceu Otto Venius e Daniel Hensius, pois moveram-se nos mesmos círculos culturais e políticos de Flandres e da Europa.
Quanto ao sucesso da sua obra talvez Herman Hugo
nos pudesse dizer até que ponto as suas intenções geraram os efeitos desejados nas pessoas,  algo de que  sabemos pouco para além do grande agrado (e logo uma presumível eficácia) com que a Pia Desideria, foi recebida, contando-se cerca de quarenta e duas edições em latim no século XVII e várias reimpressões, traduções  e adaptações no séculos XVII-XVIII, inclusive  na Espanha,   Rússia  e Portugal.
A versão portuguesa, que teve duas edições em 1687 e 1688, não foi uma simples tradução,
pois são diferentes tanto as imagens como o conteúdo do poema exegético, este sendo um cântico em duas oitavas, que já não eram de Herman Hugo mas do nosso Frei António das Chagas, seguindo-se um diálogo ou "solilóquio"  entre a alma e o seu divino esposo Jesus Cristo  introduzido pelo editor e livreiro bastante religioso José Pereira Velozo, em substituição dos textos das Escrituras e dos Padres da Igreja que faziam a exegese do lema ou legenda bíblica e da meditação poética na edição original, modelo seguido pela maioria dos editores e de acordo com a estrutura tripla do emblema. Brevemente abordaremos, e sobretudo comentaremos misticamente o contributo de Frei António das Chagas nesta versão da Pia Desideria adaptada pela mentalidade do editor à contextualidade portuguesa por ele visualizada. Anote-se que José Adriano Carvalho, na notável revista Via Spiritus, nº2, de 1995, dedicou um desenvolvido e excelente artigo a esta versão ou adaptação portuguesa, propondo a sua inserção nos movimentos reformistas da época.
A obra de Herma
n Hugo já no seu título, Pia Desideria emblematis Elegiis & affectibus SS. Patrum illustrata, ou seja Desejos piedosos ilustrados por emblemas, elegias e sentimentos dos santos Padres, dedicada ao papa Urbano VIII (publicando-se mesmo as suas armas numa gravura inicial, num sinal de reconhecimento da chefia de Roma), transparece a intencionalidade psico-espiritual da obra, à qual o desenho no frontispício  aponta, pois contemplamos três planos ou níveis  que reflectem a trina divisão da obra: em baixo, Daniel na cova dos leões, e é o estado de provação, correspondente ao I livro, Gemitus Animae Poenitentis, Gemidos da alma penitente. No 2º nível vemos duas figuras,  a de Moisés e a de Salomão, e corresponderá ao II livro, cujo título é Desideria Animae Sanctae, Desejos da Alma Santa. E por fim, correspondendo ao III livro, Suspiria animae amantis, Suspiros da alma amante, observamos ao alto David a tocar harpa, conforme o dito do Salmo 41,2 «tal como o cervo deseja a fonte da água...», e provavelmente S. Paulo com a espada e a orar, ladeando um enorme coração alado, e com uma abertura ao alto para a saída das correntes ígneas do Amor, que brota ou se inflama seja da obra, da alma devota-amante ou do coração divino.

                                                                    
A imagem da portada do livro era verdadeiramente um apelo imediato a tentarmos imaginar e sentir a intensidade da fonte divina do Amor, ou da sua correspondência em nós, da qual andamos tão esquecidos ou descrentes em geral, mas que, de acordo com o programa do livro, após as duas fases purgatoriais de gemidos e votos, se deve desvendar e fazer sentir, gerando os suspiros e aspirações instáticos e extáticos do Amor divino em nós, e de que tantas místicas e místicos deram testemunho ao longo dos séculos.
O sucesso na época deve ser ainda conte
xtualizado com o enfrentamento forte entre católicos e protestantes nos séculos XVI e XVII e assim as escaramuças de Erasmo e Lutero, ou de Herman Hugo contra Balthasar Meisner e Henricus Brandius, permitiam aos livros e panfletos derramarem a luz filtrada pelas duas visões conflituosas no acesso a Deus e a Jesus, a Protestante bastante mais seca, baseada na fé na literalidade da Bíblia e na moral, e a Católica  provida do culto ou reverência à santos e santas, Anjos e Nossa Senhora,  valorizando  a prática da Eucaristia, das devoções, peregrinações, relíquias, imagens o  que foi intensificado com a Contra-Reforma, e em parte substancial através dos livros e imagens, como este livrinho encerra e entesoura num estilo barroco.
Anote-se, neste confronto entre católicos
e protestantes, a publicação por um pastor protestante, Philipp Jacob Spener  de outra obra religiosa com o mesmo título de Pia Desideria, em 1675, mas sem emblemas e sem a devocionalidade amorosa e angélica, destinada à reforma pietista da igreja protestante.
Será que a diminuição da noção de pecado e da necessidade de purificação, bem como do fervor devocional, ou ainda capacidade de diálogo com Deus ou com o Anjo, afectam hoje a receptividade a esta obra? Certamente, e insistir nos gemidos de arrependimento, ou de saudade já pouco diz às pessoas. Parafrasear os já ultrapassados em tantos aspectos,
e tão violentos por vezes Salmos bíblicos, uma das fontes das legendas das gravuras e dos comentários, não dirá também muito senão a evangelistas mais agarrados ou mesmo fanáticos.  Contudo, não haverá no livro alguns estímulos à transformação ou metanóia interior, e algumas compreensões dos mistérios da alma e do espírito, do amor, da Trindade e da Divindade que ainda hoje valham?
Podemos valorizar a priori a conjunção dos estados de alma, representados pelas imagens, e as curtas frases bíblicas, como um bom instrumento de contemplação e meditação, pois cada leitor sentirá uma ou outra mais luminosamente, podendo até decorar e repetir ou meditá-las com regularidade.  Algumas edições ajudam nisso (tal a 1ª), pois recompilam no fim da obra os três vezes quinze versículos (a maioria do Cântico dos Cânticos) ou frases mantricas que foram propostos nas leg
endas.
                               
Haveria pessoas que sabiam de cor e conseguiam lembrar-se de algumas imagens e mesm
o de algo das mensagens dos comentários? Certamente, num saber de cor já não só das orações mais comuns mas de imagem (e eventualmente até de algo do texto), pois qualquer pessoa que leia e veja estas tão deliciosas imagens guarda na memória mais fortemente algumas delas, as que lhe dizem mais e que afloram facilmente à sua visão interior e podendo por isso ser utilizadas na meditação ou oração mental.
Como a contemplação e c
onservação interna de cor ou na memória de alguns dos emblemas é útil,  vamos então partilhar os emblemas da Pia Desideria, com os seus versículos, quais mantras ou frases sagradas, acrescentando-lhes breves comentários, iniciando neste artigo com os 15 emblemas do I Livro.

- Ó Deus, conheceis bem os meus desejos e gemidos. Faz com que brotem de mim mais setas de amor ardente para ti, exclama a alma na demanda... Emblema 0 ou imagem da matéria prima anímica.

- Quando acordo de noite, procuro a tua luz e desejo-te mais: Vem, ilumina-me!
- Oh Deus, esquece as minhas ignorâncias e distrações e estabiliza-me mais na interioridade silenciosa, na respiração, no espírito, em Ti.
- Oh Deus, ó Anjo da Guarda, dai-me a mão, libertai-me dos erros, curai-me.
- Sempre apanhada na roda do karma ou devir causal está a minha alma: dá-me forças para aguentar as dores e ainda assim avançar e aspirar a ti.
 -Corta os meus defeitos, mas mantêm-me na tua amizade e vizinhança, como orava Erasmo.
- Oh Deus, deixa-me contemplar a Tua face, nem que seja no Anjo...
- Quem me impulsionará os sentimentos que regarão e purificarão a minha alma, senão tu ó Divindade, Deus-Deusa, providência purificadora, harmonizadora e sábia?

- Ó Deus, ó Anjo, não me deixeis preso nos laços dos erros e ignorância, da morte e do mal.
- Ó Providência Divina, não sejas demasiado rigorosa e acede às nossas lágrimas, arrependimentos, purificações, orações e aspirações.
- Não me deixes soçobrar ou afogar nos remoinhos astrais, e que os teus anjos e guias me salvem e guiem.
- Não me deixes cair nas tentações que escandalizam e ferem os teus anjos e amigos e amigas.
- Ó Deus, dizem os astros que a minha vida termina, e o chorar e arrepender-me agora servirão de muito? - Não receies, não te afastes de mim, cultiva a oração e a meditação, e receberás a luz e o amor meus.
- Na passagem para o mundo espiritual terás de enfrentar o guardião do umbral. Prepara-te em vida, revendo à noite o que fizeste em cada dia e, através desta psicostasia pitagórica, melhorarás e abrirás os canais para as correntes superiores.
- Ó Deus, ó Anjo, afastai a hora da dona morte até eu ter cumprido a minha missão de luz e amor o mais possível, para que a minha alma espiritual se eleve grata e consciente até Vós.

E assim termina e conclui o I livro, intitulado Gemidos da Alma Penitente, constituído pelos quinze emblemas que comentamos livre, breve e rapidamente, esperando continuar com o II e III livros. Este texto é também uma pequena homenagem aos notáveis autores e artistas dos maravilhosos livros de emblemas, e à sua Sabedoria divina, hagia Sophia, e que estão hoje acessíveis digitalmente. Lux! Pax! Amor!

Um belo cul-de lampe, algo renascentista das oficinas de Antuérpia, numa das edições da Pia Desideria: filigranas do Amor Divino.

sexta-feira, 12 de julho de 2024

Místicas portuguesas. Um postal inédito do Padre Mário Martins a Dalila Pereira da Costa, em 1984.

"Devemos empenhar-nos com todas as forças em desterrar para longe de nós todo o temor ue nos possa desviar da confiança absoluta em Deus", eis um dito, algo titânico ou de absoluto, como era do timbre algo de extremos de S. Inácio de Loiola (e que por isso não recomendava as obras do livre pensador Erasmo, pois esfriavam a fé), o fundador da Companhia de Jesus, à qual pertencia o P. Mário Martins, que aliás residia numa residência dela na Lapa e onde funcionava a revista Brotéria, com uma boa biblioteca que volta meia fazia algumas limpezas, vendendo-as a António Silva, livreiro alfarrabista, muito próximo, na rua Garcia de Orta e que apesar de espaço exíguo permitia algumas tertúlias.

Resolvendo revisitar postais que me foram endereçados, para trazer à luz alguns com mais interesse, seja pelo conteúdo seja pelas almas amigas que mos enviaram, e que em geral desapareceram da minha vista e conhecimentos, encontrei também uma dúzia de escritos por mim e não enviados, ou então recuperados dos familiares a quem os dirigira, e dois ou três escritos por outros e para outras pessoas, um deles mais valioso e que nem sei como me chegou às mãos, mas que só pode ter sido dado pela Dalila, ou estar dentro de algum livro que a Dalila me deu, ou que me retornou, já que ora lhe dei ora lhe emprestei alguns

Como é um postal com conteúdo relevante do tão humano padre e investigador de cultura, religião e mística portuguesa Mário Martins e dirigido à Dalila Pereira da Costa, que era sua amiga e que me apresentou a ele, resolvi transcrevê-lo e assim preservá-lo com o que ele contém da personalidade de Mário Martins e sobretudo da sua compreensão das místicas portuguesas.

O místico poeta Frei Agostinho da Cruz, num azulejo do séc. XVII-XVIII do convento da Arrábida, fotografado por mim, e reproduzido com autorização do conde da Póvoa.

Anote-se que nos anos circundantes do postal, Dalila Pereira da Costa investigava e escrevia uma obra importante sobre os espirituais  portugueses, que saiu em 1986, na Lello, no Porto,  com o título Místicos Portugueses do século XVI e que levava a dedicatória inicial: «Ao Padre Dr. Mário Martins, S. J., a quem devo o pedido de escrever sobre os místicos portugueses do século XVI», e em cujo prefácio agradecia ao P. Mário Martins os seus estudos sobre Frei Sebastião Toscano e D. Manuel de Portugal, a Quirino Catita a indicação de escritos inéditos da freira carmelita Maria Perpétua da Luz existentes na Biblioteca Municipal de Beja, e a mim por lhe ter emprestado quatro livros antigos de mística portuguesa, três deles biográficos das freiras Soror Isabel de Menino Jesus, Soror Maria Joana e Soror Brízida de Santo António, e sobre as quais, com mais outras, recentemente escrevi um artigo para o I Congresso Internacional de Espiritualidade e Mística realizado no sacromonte do Bom Jesus, em Braga.

Pela adjectivação dos peregrinos da via mística que a Dalila faz na dedicatória do exemplar que me ofereceu, vale a pena transcrevê-la:«Ao amigo Pedro, com toda a amizade, estas imperfeitas páginas, sobre estes "admiráveis homens" do espírito português. Porto, 22-X-1986, Dalila...»... Muita luz e amor divinos nela!

                                                           

É natural que ela tenha lido o livro recomendado pelo P. Mário Martins, a Autobiografia (1652-1717) da madre Antónia Margarida de Castelo Branco, saído à luz pela 1ª vez apenas  em 1984 em Lisboa, bem apresentada por João Palma Ferreira, o qual embora não fosse um espiritual ou um místico e passasse ao lado dos aspectos mais espirituais da obra, mesmo assim inquiria antropológica e sociologicamente a verdade e seus contextos bem. 

No breve postal o Padre Mário Martins mostra a sua preferência por uma mística equilibrada da elevação das capacidades anímicas cognitivas e afectivas para com Deus, embora tendo eu lido a obra tenha sentido alguma pusinamilidade, uma certa desconfiança exagerada de si próprio e logo dependência dos confessores. Quanto à menor predileção de Mário Martins pelo visionarismo, sem dúvida que algumas foram vítimas da imaginação emocional e projectiva, enquanto outras não: simplesmente viram com o seu olho espiritual...

«24//4//1894.         Dalila:

Agradecido e Boas Festas da Páscoa. Antes que me esqueça: Aí no Porto, devem estar à venda as edições da Biblioteca Nacional de Lisboa. Entre elas, vem lá uma obra que tem logo ao cimo na capa: Autobiografia... Não o tenho aqui, mas é uma autobiografia notável (embora já posterior ao séc. XVI) de mística serena e sem visionarismos. E dramática. Essa senhora nobre separou-se do marido e fez-se freira. O marido converteu-se depois e fez-se frade. Mas ela fala pouco do marido. Não é uma exaltada. É uma vida mística, serena e sem imaginação no mau sentido da palavra. Eu li-a num dos 2 manuscritos (o melhor) que vendi depois à Biblioteca Nacional. Adeus e reze por mim, Mário Martins.»

Que a Dalila e oP. Mário Martins, e os místicos e místicas referidos, possam estar muito activos na Luz e Amor da Divindade e, com os seus espíritos celestiais, nos possam inspirar e fortalecer! Aum, Amen, Amin!



quarta-feira, 10 de julho de 2024

As aves e a sacralidade da Natureza, no Bom Jesus do Monte em Braga. Extraído dum diário dos anos 90 e agora levemente melhorado.

                                        
                                    No Bom Jesus do Monte.
Quantos cantos diferentes,
 uns mais simples, outros mais intensos, uns mais alegres, outros mais rápidos, uns mais subtis, outros mais familiares. E quem os consegue entender? São eles acções de graças vitais, vozes de amor, ou entusiasmos pela beleza e as maravilhas de Vida que os envolvem? 
Ai os pássaros, esses místicos incompreendidos... 
Horas e horas a fio a purificarem os ares com os seus sons perfeitos. Dom Rouxinol, hierofante máximo, apoiado pelos nobres guerreiros melros, hierarquizam ainda uma natureza que se conserva em alguns sectores, e mais do que supomos, medieval, renascentista. E se bem que por vezes, por curiosidade, ou por distração, as asas latejam e dirigem-se numa descida quase a pique até a cidade de Braga, é aqui neste alto cheio de árvores e penedos que as forças naturais e espirituais se conservam e geram um monte sagrado, que leva agora o nome do Bom Jesus ainda que antes o de outros bons deuses tenha tido. 
As aves, essas são politeístas. Já lavraram os ares nos templos dos lusitanos ou dos romanos e mesmo dentro do Cristianismo não aceitaram o comando divina de uma pomba. É certo que com a idade, elas se tornam mais responsáveis, mais compassivas, como as abadessas de mosteiros remotos pelas distâncias e o peso dos anos, das orações  e dos sacrifícios, almas tornadas tão tolerantes como a manteiga amolecida ao gume da faca, ou as faces avermelhadas de uma avozinha provinciana. Mas daí a serem Deus ou deuses vai muito. 
Quem reconheceu em S. Francisco, um deus, um novo Cristo ou ungido, senão os pássaros mais simples e diferentes que viam e sentiam a Divindade encher de tal modo esse ser que ele era um poço de Alegria, uma ramada de Bem-aventurança, a Fonte da Vida a jorrar simples e para todos. E deificaram-no, tal como o bando dos pardais que se chamou os frades menores, ou os franciscanos espirituais, que também como um enxame de abelhas se lançou a butinar quantas florezinhas viam pelos caminhos mais íngremes e pobres do coração e conservaram o culto fraterno do Senhor antigo Jesus e ao novo senhor Francisco, também ele desperto e vibrante numa consciência tão cristalina e de amor que via irmãos nos burros, irmãs na lua e se calhar nas fadas e magas, ainda que isto não pudesse ser dito porque o proibiam os representantes ou continuadores dos deuses ciumentos e despóticos, que sempre os houve cegando os dirigentes mais ambiciosos.

Assim entre uma natureza tão bruta e pura como as pedras, as rochas e as árvores por um lado, e os homens, os deuses e a divindade por outro lado, foram sobretudo as aves e pássaros que conservaram a sua liberdade de expressão por mais cadeias que lhes fizessem, fossem gaiolas de ouro para pássaros azuis, fossem armadilhas de rústicos. E por isso os homens e mulheres do utópico reino do Espírito santo no dia do ciclo litúrgico que o comemoravam não só abriam as cadeias e prisões humanas mas também desejavam abrir as de todas as gaiolas e jaulas da natureza...

Mas até chegar tal dia ou idade do Espírito santo esses poetas e místicos, panteístas e futurista têm de limitar-se a ir até aos bosques, outrora sagrados e agora envolvidos ora numa cortina de espinhos do pecado original ora nas modernices do controle social, contemplar a santa natureza e os seus hierofantes, os pássaros das mais diversas plumagens e auras, e comunicarem entre si em círculos de poesia ou em noites claras. Foi assim desde os séculos antigos até hoje em Portugal, aos pastores e zagalos dos campos e montados se juntando os viandantes e peregrinos da criatividade e liberdade, da independência do sobrenatural universal, fiéis do Amor. 
Assim cada vez mais na Natureza, nos pássaros, animais e seus amantes, se acantonam as verdadeiras forças religiosas, ou seja, aquelas que religam o céu e a terra conscientemente pelo trabalho e a receptividade, a acção criativa de graças,  observação, a escuta, o diálogo, o amor, e frutificando pela palavra, a escrita, a transmissão, a celebração.

A Natureza tornou-se hoje o templo mais vivo de Deus, face à confusão das cidades, pesem ainda nestas as suas catedrais e jardins, monumentos e bibliotecas, onde o sopro do espírito passa e a inteligência divina se vê e se pode consultar ou cultuar. Mas as melhores imaginações e inspirações, intuições e comunhões, essas pérolas e cristais da Natureza e da Humanidade, essas florescem mais  nos bosques e serras, campos e montes, por entre penedos e covas, arbustos e canaviais, riachos e árvores, desafiando-nos constantemente ainda que silenciosamente a não nos deixar alienar e artificializar nas malhas da comunicação digital e redes sociais, e antes regressarmos mais ao contacto e comunhão com a Natureza pura e seus seres, visíveis e invisíveis...

terça-feira, 9 de julho de 2024

O Anjo da Guarda na tradição pérsica ou do Irão: a Daena, e o seu encontro connosco. O ensinamento de Raymond Kuntzmann.

O conceito de Daena, ou Den na tradição espiritual persa teve  vários sentidos cognatos tais como sabedoria, consciência, eu, essência, mente, e sobretudo personificação do espírito tutelar ou anjo da Guarda  mas embora bem valioso e estudado por alguns, não conseguiu entrar na mentalidade e cultura religiosa ocidental, nem sequer nas correntezas do New Age angélico, em que pelo contrário foram as cabalices dos 360 nomes dos Anjos a tomarem conta da maioria dos best-sellers da mistificação angélica moderna. E contudo as obras de Henry Corbin (principalmente), Louis de Massignon e G. Widengren cumprem as melhores exigências.
Henry Corbin foi o que mais aprofundou a temática dos mundos e seres espirituais da longa tradição iraniana e numa das suas obras mais originais  Corpo espiritual e Terre Celeste. De l'Iran Mazdéen à l'Iran shi'ite correlaciona abundantemente tal continuidade, afirmando logo no prefácio: «Há no Madzeísmo e em Sohrawardi os Anjos da Terra, com Spenta Armaiti e Daêna, figuras da Sofia eterna, e há na gnose shi'ita, a pessoa de luz de Fátima, filha do profeta [e casada com Ali, o 1º Iman shi'ita e a fonte dos outros], ela mesma figura da Sofia e da Terra Celeste». E em várias outras páginas elucidará magnificamente estas entidades e mundos espirituais:«Daêna é com efeito o Anjo feminino que tipifica o Eu transcendente ou celeste; ela aparece à alma na aurora que sucede à terceira noite após a sua partida da Terra, ela é a sua Glória e seu Destino, seu Aion».

Aos autores aludidos podemos juntar Raymond Kuntzmann, no seu Le Symbolisme des Jumeaux au Proche-Orient Ancien, de 1983, pois dá também contributos, tal o de apontar a provável dupla etimologia de Daêna, seja de day - ver, seja de dhena - alimentar, e o de lembrar que no texto pré-zoroastriano Hâdoxt Nask, na viagem da alma no post-mortem para o céu, esta «reencontra a sua daêna, a sua personalidade espiritual que permaneceu no céu e com a qual se deve unir para reformar o ser humano total», anotando que tal conceptualização, segundo a hermenêutica de Widengren n'As Religiões do Irão, pode ter derivado da muito cultuada Deusa das Águas ou Deusa Mãe Anahita, e realçando que tal contraparte celestial não está num estado supra-humano e de pureza imutável, já que depende das acções da alma humana, que a podem tornar bela ou feia e que tal tem portanto consequências fatais ou definitivas (ou melhor, purgativas e demoradas) para o ser humano. E sabemos que vários sábios e estudiosos têm realçado, nessa mesma linha, que  as entidades benéficas ou assustadoras, deuses ou demónios que ao morrer possamos ver ou atrair dependem muito dos conteúdos psíquicos nossos, mais ou menos harmoniosos ou integrados, ou seja, do estado da nossa alma.

Raymond Kuntzmann escreverá mesmo que «a daêna, quando ela é bela, tem a forma ideal de uma jovem rapariga de quinze anos [idade que não é afirmada nos textos sagrados], que o Zoroastrismo valoriza como o «eu» superior da alma humana, esta própria idealizada sob a forma de um jovem. A alma pede à Daêna que ela serve. E esta responde-lhe que ela é a sua daêna [a sua contraparte angélica], e que a sua beleza provém das suas boas acções feitas na Terra; depois deste diálogo, as duas unem-se no paraíso».  
Nesta forma simplificada de descrever o percurso no mundo espiritual da alma. indica-se que ela pode ficar unificada com a sua dimensão transcendente, a sua contraparte angélica e assim viver e movimentar-se nos keshvars ou mundos-orbes espirituais, no seu corpo glorioso, augoeides e doxa, na tradição grega e de certo modo o duplo luminoso, barzak, onde se manifesta mais o estado beatífico ou de farah, na tradição sufi iraniana.

Este contributo de Raymond Kuntzmann é valioso quando é consciencializado, pois sendo o Belo ou a beleza para cada vez mais pessoas um bem ou valor importante, seja nos outros seja nelas, podem a tornar-se mais atentas aos efeitos dos seus comportamentos, sentimentos e pensamentos na alma em vida e após a morte, sabendo que de tal dependerá o estado do ser angélico que se receberá, e na tradição ao atravessar-se a ponte (de Chinvat) ou túnel para os mundos subtis e espirituais.

A pluridimensional e de certo modo pouco definida (pela sua subtilidade) concepção ou visão da Daena é focada por Kuntzmann segundo a tradição zoroastrica muito praticamente, como que nos dizendo: - Quando morreres não penses que tens garantido uma contraparte angélica muito bela e doce, pois tudo depende do que fizeste ao longo da tua vida. Toma cuidado em cada dia e acto, pois cada má, mentirosa ou desequilibrada acção, pensamento ou sentimento, deixa marcas não só em ti, mas também na tua daêna. E assim se agiste mal, em vez de uma santa, musa ou amada podes encontrar uma alma desgrenhada e algo assustadora, como aparece nas tradições russas (conforme a pintura, baseada no folclore da alma russa, de Bilibin) ou tibetanas.

segunda-feira, 8 de julho de 2024

Feliciano Soares (Aveiro, 1886 - Funchal, 1952). O pedagogo, místico e ensaísta espiritual, no livro "Preocupações".

                                     

Feliciano José Soares em 1926 publicava um livro, Preocupações, no qual, profundamente impregnado da fé no mestre Jesus e no Cristianismo, partilha as suas sentidas e elevadas reflexões e meditações, seja sobre os modos de vida mais harmoniosos seja sobre o caminho espiritual de purificação, auto-conhecimento, caridade-amor e ascensão mística para Deus.
Narra-nos aspectos d
as vidas dos santos e santas, dos convertidos recentes e das suas lutas com a natureza, os instintos e a sociedade, mostrando que é pela dor que se aperfeiçoam e que é pela fé que se governam e avançam, realçando que quando o amor a Deus brota mais então as pessoas aspiram mesmo a Deus e fazem os sacrifícios necessários para romperem as limitações que obscurecem as suas almas. E lembra que as pessoas mais desafogadas dificultam a sua missão específica ao sobrecarregarem-se materialmente, tanto mais que a liberdade é sobretudo a renúncia às paixões doentias, às superficialidades, às tentações, ao que nos desvia do nosso ser verdadeiro e luminoso.

                                

Depois de lermos os vinte e três capítulos que estruturam as duzentas e cinco páginas, damo-nos conta que Feliciano Soares, sem ser conhecedor de mistérios gnósticos ou iniciáticos, pela sua sensibilidade e aspiração mística ao sagrado e ao Divino, consegue erguer-se a intuições elevadas e próximas da realidade subtil e espiritual, não só quando aborda as almas de santos ou santas, tais como a pequena Teresa de Lisieux, Angela de Foligno, S, João de Deus, Santa Mónica  Elisabeth Leseur, ou mesmo Jesus, mas também a Natureza, dos trigais e eiras às vinhas e lagares, as relações humanas, os monumentos sagrados (tal a casa do Capítulo, na Batalha), ou ainda e sobretudo a Morte. 


Feliciano Soares, nascera em 1886 em Aveiro, e publicara o seu 1º livro em 1915, Crucificadas, a que se seguiu Terra! Terra! de colaboração com Emanuel Ribeiro, e em 1923, já no Funchal,  O que vi e pensei. Educação - Mística - Viagens - Livros,  em 1926 as Preocupações, em 1935 O mais rico dos pobres e em 1941 Uma hora d'anto, publicado no Funchal, onde residia. Em 1953, saiu no Funchal uma obra póstuma, Epístolas a quem ensina, e no Porto   a homenagem biográfica que o professor e musicógrafo Bertino Daciano lhe consagrou.

Viveu e foi jornalista na Madeira, chegando a dirigir o Diário de Notícias do Funchal,   onde trabalhava como coordenadora do suplemento Notícias Infantil a sua mulher Laura Veridiana Castro e Almeida  (1870-1964), que usou o pseudónimo Maria Francisca como autora de três livros para crianças, na linha dos que a sua prima Virgínia Castro e Almeida escrevia.
Feliciano José Soares
pertenceu ao Instituto de Coimbra, uma prestigiada instituição académica cientifica, literária e artística que viveu ou funcionou entre 1852 e 1982, com valiosos membros e com a sua prestigiada revista Instituto onde colaboraram tantos notáveis escritores e cientistas.

                                                  
Tal como no seu livro O que eu vi e pensei, dividido em Educação, Mística, Viagens, Livros, a parte Mística subdivide-se em Lourdes, Missa da Meia Noite, Cartas (com algumas dramáticas de amor-compaixão) e Vaticano, Feliciano Soares escreve como essencialmente um católico e, embora na verdade seja um místico e muito sensível animicamente,  todavia tem pouco conhecimento e logo escassa abertura às outras religiões. Marcado também pelo seu tempo tem ainda algumas linhas de oposição ao socialismo marxista e ao materialismo.
Transcrevamos então alguns dos melhores contributos educativos e espirituais que Feliciano Soares cogitou e escreveu no I cap. Autobiografia de uma mulher inteligente:
«Vê-se, antes de tudo, qu
e o programa estabelecido para a formação do espírito educanda, faliu redondamente. Esse programa teve, apenas, em vista, colar na inteligência da criança, conhecimentos inertes, diga-se assim, para não servirmos da denominação de Bossuet que lhes chamaria estéreis sem interessarem fundamente a inteligência. Sem interesse, não pode haver emoção. E não podia haver interesse desde que antes de serem ministrados esses conhecimentos, não se pesquisou se havia aptidões, disposição, vocação para eles, como, realmente, não havia.»
«O espírito de sacrifício deve ser cultivad
o e desenvolvido. Viver é sacrificar-se. Quem não tem disposições para o sacrifício, não tem disposições para a Vida. Não sabe viver. (...) Sentir a efémera vida material, não é viver. Só vive dignamente, verdadeiramente, quem põe nos mais insignificantes detalhes da sua Vida, um alta intenção espiritual».
O III ca
pítulo Adentro das Naves, a propósito de um livro de Madeleine Brunon Gnardin, Dans l'ombre des clochers, caracteriza-a muito bem, e tece em seguida um belo elogio às catedrais e aos que as sabem sentir e nelas se elevar, exemplificando com Paul Claudel e o pintor Willibrord Verkade na Notre Dame de Paris,  Manuel de Ribeiro na Sé de Lisboa, e J. K. Huysmans, tentando também numa elevar-se, mas «para se chegar à Região Azul, é necessário ter o coração ao alto, tão alto que toque no Infinito. E, só assim, a Catedral é Rainha, e é Mãe e é a Porta da Eternidade».

Gravura de Charles Jouas para o frontispício da Cathédrale, de J. K. Huysmans. 1909.
Nos seus dois capítulos sobre a morte, o Sino dos Mortos, Mês de Novembro: Meditação sobre a Morte, encontramos naturalmente pensamentos bem sentidos, próprios da sua impregnação cristã e dos seu amor à vida e aos seres, desafiantes mesmo e quem sabe se  intuitivamente certos, tal como estes:«A Morte não separa senão os que, em vida, já eram separados. Pelo contrário. A Morte une mais ainda. A união é mais clara e mais pura. O espírito, libertado, não sofre as influências maléficas da terra. E os que ficam para trás, purificam-se também, no contacto espiritual com os que oram. [Talvez haja uma excessiva glorificação dos que morrem e do que elas influenciam os que estão vivos, excepto se pensarmos em almas já muito evoluídas.]
Não se fala com eles? Ora-se com eles. E a prece purifica. Na prece vive Deus [ou o espírito divino em nós intensifica-se para a nossa consciência]. A confraternização com o Além, por meio da prece - único traço d'união com o Céu, santifica. Meditar é também orar. Trabalhar é orar, também. E, assim, o homem, meditando, trabalhando, erguendo, ao alto, o coração, vive perto de Deus, vive do outro lado da Morte. E vive perto dos que já transpuseram o grande Limiar», mas de certo modo um "viver perto" relativo, já que o envolvimento no que se passa no mundo é mais forte nos nossos dias, pelo que o sentir e escutar interior enfraqueceu...
Fotografamos duas valiosas páginas desta sua
Meditação sobre a Morte, onde não menciona Antero de Quental, embora tenha pensamentos anterianos onde equaciona a irmã morte libertadora mais com Infinito, a Eternidade e Divindade do que com o Não ser:

Citações de Lamartine, Goethe e Victor Hugo exemplificadoras da aspiração mística que sentiam perante a morte e a libertação.

 Ao finalizar esta abordagem à alma e escrita de Feliciano Soares, saudamo-lo no corpo místico crístico e universal e que ele possa do Alto e íntimo co-inspirar e guiar almas amigas recentemente partidas e pelas quais oramos...