terça-feira, 20 de setembro de 2022

Soares dos Passos: o "Noivado do Sepulcro", lido e comentado por Pedro Teixeira da Mota. Com o elogio por Antero de Quental.

Este poema, o Noivado do Sepulcro, foi um dos que, em jovem de 12 ou 13 anos, me impressionou suficientemente para ficar como um mito poético dentro de mim para sempre. Passadas algumas décadas, há dias, li-o de novo pela 1ª vez e gravei tal leitura, brevemente comentando-a, e poderá ouvi-la na ligação ao Youtube. Destacarei agora só a beleza perene, goticizante ou ultra-romântica, com que o poeta portuense Soares dos Passos  cria um ambiente inicial de culto da grande paz entre a noite e a morte, num silencioso cemitério à meia noite e sob os eflúvios da lua e do piar dos mochos, e  justifica-o animicamente e ritmiza-o com a antítese da vida instável com os seus vaivéns da sorte e a paz tranquila de quem ali descansa, se não for movido pelo Amor todo poderoso, que Dante com Beatriz sentiu em si e entreviu na Anima Mundi ou no Cosmos divino...

 Contudo, alguém admitido no seio do mundo das sombras, parece estar sofrendo pois, depositado o seu corpo há três dias na tumba, ainda não foi a sua alma alentada com a visita da amada viva, pelo que fantasma se ergue, caminha e se lamenta, quase chorando, da fugacidade ilusória do amor e das suas promessas...      
Esta balada de encantar do amor que vence a morte, que ressoa os rimances populares antigos, foi glosada por muitos poetas, em sucessivas escolas e épocas, e mencionaremos como dos mais brilhantes Antero de Quental, e foi recriada por Soares dos Passos, um poeta que, tuberculoso desde novo, foi levado a sentir mais fortemente a tragédia dos amores que não se concretizam na terra e nos corpos, e compôs alguns poemas sobre a superação de tal dilaceramento, o mais notável sendo este. 
Certamente que os sonetos de Antero de Quental receberão bastante maior fortuna imortalizadora, sendo ainda hoje estudados nas escolas públicas. E contudo, Soares dos Passos, igualmente fino poeta amante da noite e da morte, e ainda do amor que se sente e deseja imortal, morrera ainda mais novo que Antero, com  33 anos apenas, qual outro Cristo, embora sem a vasta genialidade de Antero que ainda chegou aos 7x7, 49 anos, ultimando a sua obra poética e filosófica, e finalizando-a com o selo de mártir, insatisfeito no suicídio.
Soares dos Passos (27.XI.1826-1860) formara-se em Direito em Coimbra, era de uma família de liberais (versus absolutistas), e sentia fortemente os ideais do conhecimento, da liberdade, do amor da fraternidade, tudo como Antero de Quental, e colaborara em algumas publicações periódicas literárias, tais como o Bardo, a Grinalda, o Novo Trovador,  dando à luz em 1861 o seu único livro, Poesia. Três anos depois apenas,  a Parca cortou-lhe o fio de prata do corpo e enviou a sua alma ultra-sensível para o além, no qual ele acreditava e para o qual se preparara e onde chegou jovem mas,, certamente, luminosamente

Ora Antero de Quental, na sua genialidade e excentricidade tão real e activa como legendária e mítica, provavelmente consciente das sensibilidades e afinidades que os uniam, soube já no fim da sua vida, a uns meses de partir (Setembro de 1891), escrever um elogio bem merecido de Soares de Passos, em cuja obra perpassa claramente a fraternidade poética, romântica e até revolucionária, bem patente noutros poemas nos quais canta com a lira da justiça e do amor, a irmandade, a revolução, o novo mundo.

A carta onde encontramos manifestado o elo de amor dos dois poetas, plenos de sensibilidade, idealismo, é dirigida ao tradutor sueco Göran Bjorkmann, que lhe pedira informações sobre a literatura contemporânea portuguesa, e foi escrita em francês a 12 de Abril de 1891, da Rua da Fé, nº12, Lisboa. Dela  traduzimos este excerto: «Vou-lhe indicar os nomes e as obras mais notáveis. O poeta por excelência é João de Deus:os seus dois volumes intitulam-se Flores do Campo e Campos de Flores. Depois, vem Tomás Ribeiro, que conheceis: além D. Jaime, publicou vários volumes de versos, mas D. Jaime é sem dúvida o que fez de melhor. Depois vem Guerra Junqueiro: a sua obra Morte de D. João é muito desigual, mas é contudo bem notável, e, no meu sentir, superior à sua outra obra Velhice do Padre Eterno, onde imita muito Victor Hugo, no que Victor Hugo tem de pior. Um poeta encantador e original, morto muito recentemente e bem jovem, é Gonçalves Crespo: o seu volumezinho Miniaturas far-vos-á prazer, estou certo. Recomendo-vos também Soares dos Passos, cujo volume tem o título modesto de Poesias: o seu autor morreu, há 15 anos, mas o livro permanece popular, e ele merece-o.» Oiçamos então o poema por mim lido:

               

 
                O NOIVADO DO SEPULCRO

BALADA


Vai alta a lua! na mansão da morte
Já meia noite com vagar soou;
Que paz tranquila! dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.


Que paz tranquila!... mas eis longe, ao longe
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma, semelhando um monge,
Dentre os sepulcros a cabeça ergueu.


Ergueu-se, ergueu-se!... na amplidão celeste
Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na marmórea cruz.


Ergueu-se, ergueu-se! com sombrio espanto
Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.


Chegando perto uma cruz alçada,
Que entre os ciprestes alvejava ao fim,
Parou, sentou-se, e com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim:


«Mulher formosa que adorei na vida,
«E que na tumba não cessei d'amar,
«Porque atraiçoas desleal, mentida,
«O amor eterno que te ouvi jurar?


«Amor! engano que na campa finda,
«Que a morte despe da ilusão falaz:
«Quem dentre os vivos se lembrará ainda
«Do pobre morto que na terra jaz?


«Abandonado neste chão repousa
«Há já três dias, e não vens aqui...
«Ai quão pesada me tem sido a lousa
«Sobre este peito que bateu por ti!


«Ai quão pesada me tem sido!» e em meio,
A fronte exausta lhe pendeu na mão,
E entre soluços arrancou do seio
Fundo suspiro de cruel paixão.


«Talvez que rindo dos protestos nossos,
«Gozes com outro d'infernal prazer;
«E o olvido, o olvido cobrirá meus ossos
«Na fria terra, sem vingança ter!


--«Oh nunca, nunca!» de saudade infinda
Responde um eco suspirando além...
«Oh nunca, nunca!» repetiu ainda
Formosa virgem que em seus braços tem.


Cobrem-lhe as formas divinais, airosas,
Longas roupagens de nevada cor;
Singela coroa de virgíneas rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palor.


«Não, não perdeste meu amor jurado:
«Vês este peito? reina a morte aqui...
«É já sem forças, ai de mim, gelado,
«Mas ainda pulsa com amor por ti.


«Feliz que pude acompanhar-te ao fundo
«Da sepultura, sucumbindo à dor:
«Deixei a vida... que importava o mundo,
«O mundo em trevas sem a luz do amor?


«Saudosa ao longe vês no céu a lua?
--«Oh vejo, sim... recordação fatal!
--«Foi à luz dela que jurei ser tua,
«Durante a vida, e na mansão final.


«Oh vem! se nunca te cingi ao peito,
«Hoje o sepulcro nos reúne enfim...
«Quero o repouso do teu frio leito,
«Quero-te unido para sempre a mim!»


E ao som dos pios do cantor funéreo,
E à luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério
Foi celebrado, d'infeliz amor.


Quando risonho despontava o dia,
Já desse drama nada havia então,
Mais que uma tumba funeral vazia,
Quebrada a lousa por ignota mão.


Porém mais tarde, quando foi volvido
Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só.»

Se o poema é de algum modo autobiográfico, e se eram almas gémeas ou apenas almas poderosas que, na sua atracção recíproca, mesmo já em corpos espirituais, até os corpos já falecidos moveram, só a alma imaginal de Soares dos Passos nos poderá dizer, mas aí está a balada, atravessando os séculos e ainda hoje comovendo os fiéis da Mors-Amor, tal como Antero de Quental em soneto ímpar imortalizou.
 
Muita Luz e Amor Divinos neles e suas amadas!

domingo, 18 de setembro de 2022

Jacques de Marquette, pioneiro do vegetarianismo e naturismo, dentista e doutorado em filosofia e letras, o sábio da Panharmonia.

 [Este texto encontra-se já no blogue bem mais desenvolvido, mas em inglês,]

Em 23 de Abril de 1888, dois meses antes de Fernando Pessoa, nascia em França, em Paris, Jacques de Marquette. Será em 1904 que toma conhecimento do vegetarianismo, através de um livro de judo que atribuía à abstenção de carne a grande força e resistência dos judocas japoneses, e em 1905 que se torna vegetariano, realçando o impacto consciencial da leitura dum livro de Daniel Foward, que condenava os sofrimentos desnecessários dos animais e referia muitos  vegetarianos valiosos. Continuando os seus estudos, em 1907, licenciou-se como cirurgião dentista pela Faculdade de Medicina de Paris, e foi tentando compreender melhor os efeitos dos alimentos nas psiques e  comportamentos humanos, empenhando-se numa luta de esclarecimento. Funda então a primeira sociedade naturista em França, Le Trait d'Union, em 1911 e é um dos co-fundadores dos Escoteiros em França. Participa como oficial  na 1ª grande Guerra e logo que paz começou a sorrir na ruralidade francesa   organizou o 1º campo e parque de campismo naturista em França, em Chevreuse, em 1920, e cujo programa começava às 5 da manhã com a aula de ginástica que dava e terminava às 22:00 com os cantos  que dirigia. Em 1922, mantendo a chama ardente do conhecimento viva, licencia-se em Filosofia. E em 1924, funda a 1ª cooperativa naturista Trait d'Union (que teve quatro restaurantes em Paris e cinco filiais na província). Em 1925  diploma-se em Estudos Superiores e em 1928 doutora-se em Letras. E funda ainda nesse ano o 1º congresso Universal da Juventude, em Ommen, Holanda.  A sua mulher e companheira na demanda da Panharmonia foi Phyllis de Marquette (1902-1971), uma norte-americana professora de Psicologia, embora quando se casasse por paixão já tivesse quarenta anos muito castos.

Será um espiritual bem activo, licenciado em medicina e filosofia,  vegetariano e estudioso da espiritualidade comparada, nomeadamente a indiana, tendo ensinado  Religiões Comparadas no Lowel Institute de Chicago e proferido conferências em dezenas de instituições e países. Esteve na Índia sete vezes, em vários ashrams, nomeadamente no do Mahatma Gandhi e  no do Guru Ranade, em Nimbal (neste em Dezembro 1954 e tendo tanto ele como a sua mulher sido iniciados por guru Ranade, e deixou várias obras valiosas, tais como a Introduction à la Mystique comparée,  Confessions d'un mystique contemporain, Santé et Progrès, assurés par l'Alimentation Naturelle, base universelle du Yoga - Manuel pratique d'Higiène Alimentaire et de Cuisine Vegetarienne  (onde realça a importância da mastigação, pois é ela que prepara a assimilação), Les septs Raisons du Vegetarianisme (Hygiene, Economie et Morale de l'Alimentation), 1934, De l'Âme au Esprit (título  igualmente do meu último livro, Da Alma ao Espírito, 2015).

  No L'Avenir de l'Âme dans la Pensée Orientale, de 1951,  descreve as concepções principais da alma no Ocidente, dos Egípcios e Gregos a Charles Renouvier (realçando a equiparação por este da mónada criativa à persona, donde o personalismo com que Jacques de Marquette se identificou), e do Oriente, aprofundando bem a metafísica dos vários corpo e planos do universo, baseado nos textos tradicionais indianos, das Upanishads às Puranas Vaishnavas, realizando ainda uma original equiparação do personalismo divino ocidental com a Ishta devata, a divindade pessoal na compreensão íntima ou esotérica indiana.

 De destacar a sua tradução do livro do seu guru indiano Ranade intitulada La Spiritualité dans l'oeuvre de Gandhi.   Anote-se que Gandhi, com quem se encontrara, em 1930 dera o seu patrocínio à associação da Panharmonie, por ser um elo entre o Ocidente e o Oriente, e porque seguia os princípios da ahimsa, não-violência, nomeadamente o vegetarianismo, que Marquette considerava "a ponte entre a harmonia no plano físico e aquela dos planos mais elevados da moral, já que preserva o ser humano do massacre quotidiano de milhões de animais inocentes".  Quanto ao plano do espírito, o acesso a ele obter-se-ia pela harmonização da nossa vida com as Leis Universais, que contêm uma ética sã e implicam da nossa parte um trabalho de auto-aperfeiçoamento, nomeadamente através da meditação.  

Acrescente-se apenas que os membros da Panharmonia eram convidados a realizar "curtas meditações de manhã, ao meio do dia e ao fim da tarde, antes das refeições, durante as quais se uniam pelo pensamento à união de todo o nosso grupo com a essência sagrada do Universo. Preparam-se assim para se tornarem canais eficazes, pela sua consagração, para a transmissão ao mundo da Paz e da Luz do Alto."

A sua Association Internationale Panharmonie corporizava tanto um ideal como métodos baseado no naturismo, humanismo e personalismo, e  organizava banquetes e reuniões quinzenais, com conferências e meditações (orientadas por ele), e editava obras e uma revista mensal valiosa de espiritualidade universal, já que para Jacques de Marquette a apreciação do património intelectual e espiritual da Humanidade era base mais segura de uma paz universal.  Explicou abreviadamente assim: «A Panharmonia não é só um ideal de vida-em conformidade com as leis do Universo. É também um programa de realização deste ideal na vida dos indivíduos e das sociedades, acima da divisão humana em nações, raças e religiões (...) Sendo a procura da felicidade  o fim primordial da actividade humana, é importante compreender-se bem a natureza fundamenta desta demanda evitando confundir-se felicidade com prazer.»  E considerando que a felicidade maior ou menor depende do desenvolvimento das nossas qualidades, Jacques de Marquette, na sua Panharmonie, recomendava a eliminação sistemática do que nos enfraquece e degrada e, simultaneamente, o cultivo das nossas mais elevadas qualidades, através "do desenvolvimento de todas as causas de saúde e de progresso físico, intelectual e espiritual".

Viveu até 22 de Agosto de 1968, oitenta anos bem profundos e dinâmicos.

No livro  Des Hounzas aux Yogis. Du régime des centenaires à celui des grands initiés, 2ª ediçao de 1966,  mostra a importância exemplar do estilo de vida e alimentação do povo Hounza e confessará alguns aspectos biográficos, tal  o ter sido o fundador da primeira sociedade naturista em França, em 1911, e que estivera na Índia quatro das sete vezes mais prolongadamente, em vários ashrams: E pelo que foi discernindo, desvaloriza, como lemos nessa obra, o Hatha Yoga, ou seja, as práticas meramente físicas das posturas e, explicaremos nós, quando não estão inseridas numa demanda espiritual, que normalmente é a da ashtanga Yoga, a yoga ou união dos oito membros ou Raja Yoga, e valoriza mais os Bhakta Yogis, os que seguem a via da adoração, e vivem quase dias inteiros absortos no amor ardente pelo objecto da sua devoção, geralmente um dos aspectos de Vishnu, e também os Raja Yogis, que fazem "ascetismos fortes para desenvolverem a sua vontade e aumentarem o seu império sobre o corpo e as paixões que nele se apoiam" de modo a assim controlarem os "pensamentos materialistas, os maiores entraves à manifestação da  Presença divina na nossa vida, à activação do "Reino dos Céus" que está em nós, os quais nos fazem esquecer a nossa  filiação divina".  

É esta luta que diariamente todos os que praticam a meditação devem tentar estar mais conscientes, de modo a que, persistindo no trilhar do Caminho ao longo dos dias e anos, possam  interiorizar-se o suficiente para começarem a sentir  ocasionalmente o espírito, o atman, que está neles, ou a verem a sua Luz, ou receberem intuições, ou sentirem a sua felicidade, ananda, certamente merecendo-a também por uma vida justa, sábia, amorosa, corajosa, panharmoniosa... 

Saibamos em maior contacto com a Natureza e com uma alimentação mais vegetariana e biológica, vivermos harmoniosamente com Pan, o todo, ou seja, em Panharmonia, de modo a que, escapando à opressiva manipulação dos media e à mentalidade materialista e superficial que se tem generalizado, possa a anima mundi ou o campo unificado de energia informação  ser comungado criativa e holisticamente para o bem de Todos. E saudemos a alma ou personalidade espiritual de Jacques de Marquette e os seus mestres Ananda Coomaraswamy, Paul Masson Oursel e Guru Ranade.

sexta-feira, 16 de setembro de 2022

Poema espiritual. Da escrita e da leitura, da demanda e do amor. Lisboa, 16.IX.2022

 


 Cada página branca, com uma caneta,

É um milagre da Bondade Divina,

Pois a infinita potencialidade brotará

E só há que registar o fluir anímico.

 

Então unirmos o inconsciente com o consciente

e até o supra-consciente surge como o desafio:

Quantos conseguiremos unir as raízes com a copa,

fortificar e circular a seiva e gerar os frutos?

 

Quão gratos não estamos nós à Divindade

Por tudo o que a sua alma mundi nos permite,

Quando amamos e oramos, e ao alto nos ligamos,

E da clarividência interior luzes e sinais recebemos?


Que podemos nós trazer à manifestação,

Que seja necessário e valioso, belo e sagrado?

- Despertar as pessoas para a ressurreição do Espírito

E a religação à Divindade como o mais importante?


             Meditar-orar, além do trabalho, do amor e da família,

É a mais importante acção para se entrar no coração.

Mas estamos tão presos ao corpo do prazer e da dor,

Ou à mente e suas atrações, repulsões e ondulações

que conseguirmos silenciar, adorar e contemplar

é felicidade interna rara, qual suspiro de respiração subtil.

 

As mãos juntas diante do peito e do coração,

Na boca e alma a oração pura: - Deus, Deus, Deus....

Que maior alegria e gratidão se pode vivenciar

Que a unidade amorosa com a Fonte Divina?

 

Alguns há que, sem se elevarem à Primordialidade,

Se alegram e satisfazem na demanda e  peregrinação,

Ou mesmo com a criatividade anímica, ou a bondade,

Ou a união amorosa com ser amado complementar.

 

Certamente tudo o que une em amor e para o Bem

Faz as almas expandirem-se e iluminarem-se,

E assim a escrita e a leitura se fundem em acto de amor

que imortaliza os seres na sua dimensão espiritual e divina,

e se derrama na última linha do poema ou na orla da alma,

Intensificando a aspiração do coração e a unidade da comunhão.

"Despertar da alma". Pintura para contemplação de Bô Yin Râ

domingo, 11 de setembro de 2022

Reflexões sobre a excentricidade e o amor em Antero de Quental, no 131º ano da sua desincarnação

A palavra "excentricidade" é empregada por Antero de Quental na penúltima carta da sua vida,  dramática no dilaceramento que partilha, escrita em Ponta Delgada a 29 de Agosto e dirigida a Oliveira Martins, na qual dá conta de que «o grande  desejo que tinha de não desistir da resolução e programa final de vida satisfatório», e que  o levara há três meses a retirar-se para ilha natal, estava a falhar: «Procurava o definitivo e afinal ainda agravei o instável e provisório que tanto me assustava. Paciência. Fui talvez imprudente, contei de mais com as minhas forças, seduziu-me a ideia de, depois de tantos anos de excentricidade, acabar como toda a gente, mas vejo que  a excentricidade tinha de ser definitiva, submeto-me a ela, ainda agravada agora por mil cuidados. Peço à minha razão que comunique aos meus nervos o estoicismo que ela tem mas de que eles não parecem susceptíveis». 

Para além da auto-consciência da sua excentricidade e da dualidade que o habitava e de que frequente e estoicamente se "queixava", há de realçar como que um aviso intuitivo ou subliminal da sua desincarnação fora do normal, excêntrica,  e que se concretizaria na pacatês do banco da praça ou campo de S. Francisco, junto à cerca do convento (não o da sonhada ordem dos Mateiros, mas o da Nossa Senhora da Esperança), caída a noite (as 20:00), "irmã da morte", sob a palavra e símbolo da virtude da "Esperança", treze dias depois, perfeitos os seus 49, 7 x7 anos, sacrificiais de cavaleiro da Verdade e do Amor.

Mas excêntrico é um termo bem polisémico,  podendo significar tanto de "fora do centro" como "saído do centro", como ainda desintegrado, isto é, não centrado, não integrado, sem conseguir estar centrado ou normalizado pelas mentalidade dominantes da época, mas também sem tornar-se um centro e logo centralizador num meio ambiente ou época. Provavelmente Antero, findo o seu périplo continental mais activo, completado o seu testamento de intelectual nas Tendências Gerais de Filosofia na segunda metade do século XIX,  buscava nesses últimos tempos da sua vida tal centro na mãe-terra natal, nos seus Açores, interiormente como que num regresso ao ventre maternal, ao seio telúrico que o acolheria para uma nova vida, seja em que sentido esta fosse nova... Ou não glosara ele, como depois Joaquim de Araújo e Fernando Pessoa (como já desenvolvi neste blogue), o dito grego Morrer é ser Iniciado?

Mas ao longo da vida  em que momentos Antero foi mais excêntrico, quando se sentiu mais tal em comportamentos, sentimentos ou ideias, ou então quando foi ele visto mais excêntrico, mais fora da norma e da normalidade, não nos esquecendo que a excentricidade e a genialidade estão bem próximas por vezes?

Teríamos de desenrolar a sua biografia para sermos exaustivos,  tanto mais que ele próprio caracteriza-a por "muito anos de excentricidade" mas digamos que certamente na época estudantil, tal como mestre da Sociedade do Raio,  líder da Rolinada (1864) e orador e declamador da Universidade,  como teorizador literário na Questão do Bom Senso e Bom Gosto (1865-66) tal como mais tarde  nas conversas no seio do grupo lisboeta do Cenáculo (1867-1871), como doutrinador revolucionário  das Conferências do Casino (1871),  como ideólogo dum  partido socialista nascente, e sobretudo na sua sensibilidade imensa e intensa bem patente nos seus interesses e leituras, escritos em prosa e poemas, em que uma genialidade precoce se manifestou fortemente.  

Mas também certamente na sua inadaptação a uma vida profissional normal (embora ainda se tivesse feito tipógrafo e sofresse a dureza de tal profissão no meio do proletariado francês, ou pensasse concorrer a professor, no que foi dissuadido por Oliveira Martins) e logo à inserção na sociedade. Talvez seja no contributo de leitura obrigatória, Um Santo que era um sábio,  no In Memoriam de Antero, 1896, em Eça de Queirós  descreve magistral e hagiograficamente alguns desses momentos de um dos nossos santos laicos que encontremos o melhor debuxo (bem demorado na sua feitura) da sua excentricidade e genialidade.
Ficará assim a aura do poeta, do pensador e do animus questionador, revolucionário, excêntrico, meditabundo, ecoando desde então e até estes tempos nossos do séc. XXI tão sombrios de tentativas de manipulação massificante em narrativas e ideologias oficiais transhumanas que não se podem contrariar ou discutir e em que os Anteros actuais são rapidamente presos (tal Julian Assange) ou eliminados (tal Jamal Khashoggi). O que diria hoje Antero de Quental de tais auroritarismo e opressões, políticos e "media" ocidentais e nos aconselharia? - Sintamo-lo em alguns dos seus poemas mais dinâmicos e talvez recebamos algumas inspirações e forças, sobretudo dos contidos nas Odes Modernas.

Quanto ao Amor e, já que não casou, aos namoros de Antero, algo excêntricos também nas suas especificidades e dificuldades, temos de admitir que era bem difícil o corpo, a alma e o espírito de Antero encontrarem a mulher certa para entrarem em diálogo e unirem-se, de um modo  profundo, demorado, aprazível, frutuoso,  na sua época do séc. XIX, em que os contactos e os namoros entre os dois sexos não estavam facilitados. Mas na sua adolescência teve um ou dois namoros mais sentidos, e brilhou bastante o fogo do seu amor idealista, romântico, platónico, em especial até nos dedicados a Beatrice.  Mas não resultaram, embora em especial o com Mariana Portocarrero deixasse marcas na sua correspondência, sempre reservada ou discreta, e numa ou outra referência dos amigos. 

Foi talvez aos 35 anos, com a Baronesa Seillières, quando ambos eram seres já com maturidade de idade e da escola do sofrimento, que terá sentido possível (ou pelo menos mais forte) a paixão que o avassalou.  Se anteriormente a sua grande cultura, genialidade e idealidade (algo influenciada pelo romantismo alemão) e até vocação de escritor e tribuno revolucionário, e ao mesmo tempo alguma misogenia típica da época e da educação cristã, dificultavam a tarefa dum casamento, agora seria apenas o desencontro de serem de nacionalidade diferentes e ela estar ainda num processo de separação. Mas sabemos poucos das complementaridades que terão conseguido sentir e alcançar nesses curtos encontros, quem sabe se entre as alamedas de grandes árvores, ou no espaço ajardinado junto a uma fonte,  do estabelecimento hidroterápico de Bellevue, Oise-Seine, nos arredores parisienses...

Quando a sua alma, global, total, na qual a cabeça intelectiva e o coração afectivo e dinâmico estavam unidos, e estimulavam o corpo, a imaginação e esperança, podemos observar nos seus poemas da época  como ele sentiu e desejou tal possibilidade unitiva, nomeadamente em relação às musas dos seus namoros juvenis. Maduramente mas já em crise nervosa ou psíquica (desde 1874, quando morre o pai) no tempo de encontro com baronesa, constatamo-lo pelo magistral poema que escreveu nesses momentos de mais amor, o Mors-Amor.

O coração de Antero era franco, sincero, transparente, e havendo afinidades vibrava facilmente em Amor com quem estava, ou por quem se sentia atraído, embora saibamos pouco dos factores mais atractivos  na recíproca projecção amorosa, ou mesmo o que tinha mais força dinâmica nessa laboriosa e alquímica tarefa de se aproximarem, enlaçarem, conhecerem e unirem dois seres, luminosamente, divinamente...

O Amor divino em Antero  falhou pois  o forte amor à Deus de criança não o conseguiu manter senão até ao começo da adolescência,  natural na abertura na Universidade à universalidade do conhecimento e das religiões, logo começando um questionamento e afastamento que o levou depois, por entre a sua evolução filosófica no inconsciente de Hartman, no budismo e no panpsiquismo, a não o desenvolver e aperfeiçoar suficientemente, ainda que ao de leve o tivesse consagrado no último soneto da sua antologia, Na mão de Deus  que se tornaria a sua obra-prima, Sonetos Completos, 1888. 

Quanto ao amor humano ele iria concentrar-se, após os frustrados namoros juvenis, nos familiares (até desincarnados, como alguns sonetos mostram) e em especial na bastante amada mãe, mas também desgastantemente na irmã Ana,  em Albertina e Beatriz,  as duas crianças do seu amigo Germano Meireles adoptadas e educadas cerca de dez anos, e, sobretudo, em alguns amigos de juventude, e depois em uns poucos de amigos mais recentes ou mais novos, de certo modo discípulos, e neste sentido as cartas  para eles perdurarão na antologia virtual do Melhor Epistolário do Mundo, destacando-se algumas das dirigidas a Germano Meireles,  António Azevedo Castelo Branco, Jaime Batalha Reis,  Alberto Sampaio, João Lobo de Moura, João de Deus, irmãos Faria e Maia, Eça de Queirós, António Moleirinho,  Joaquim de Araújo, Oliveira Martins,  Fernando Leal, Carolina de Michaelis, Maria Amália Vaz de Carvalho, Jaime de Magalhães Lima e Carlos Cirilo Machado.  

A nós de as relermos e com tais diálogos luminosos nos inspirarmos e melhoramos na harmonia do corpo, alma e espírito, na audição e vivência da voz da consciência e no descobrir e viver mais o Amor,   que vence a separatividade, a ignorância, o ódio, o desalento e  a morte, e que Antero tão bem retratou no soneto Mors-Amor, escrito sob a influência do encontro com a Baronesa Seillières,  e que no momento da sua partida (que hoje comemoramos) terá talvez sentido (e será que mantrizou até: "Eu sou o Amor"?), certamente com as limitações ambientais internas e externas, pesadas, e que agora iremos ler em sintonia luminosa com a sua alma  espiritual ( a Paz esteja com ela), tanto mais que esta foi tal como no famoso soneto Solemnia Verba («Desta altura vejo o Amor! Viver não foi em vão, se é isto a vida, Nem foi de mais o desengano e a dor») bem simbolizada  na sua simbiose com o corpo e o espírito, o passado vivido e sofrido e o eterno presente da essência imortal:

 «Esse negro corcel cujas passadas
Escuto em sonhos, quando a sombra desce,
E, passando a galope, me aparece
Da noite nas fantásticas estradas,

Donde vem ele? Que regiões sagradas
E terríveis cruzou, que assim parece
Tenebroso e sublime, e lhe estremece
Não sei que horror nas crinas agitadas?

Um cavaleiro de expressão potente,
Formidável, mas plácido no porte,
Vestido de armadura reluzente,

Cavalga a fera estranha sem temor.
E o corcel negro diz: «Eu sou a Morte!»
Responde o cavaleiro: «Eu sou o Amor!»

 Saibamos descobrir, ser e viver Amor que jaz nas profundezas últimas do coração e do ser.  

E muita Força, Luz, Amor divinos em Antero de Quental!

sexta-feira, 9 de setembro de 2022

Agostinho da Silva e os veios, elos e mestres de Portugal. Escrito a 4 de Abril de 1994, após o enterro.

No dia 4 de Abril de 1994 realizaram-se no Mosteiro dos Jerónimos e no Alto de S. João as cerimónias, muito concorridas, da despedida de Agostinho da Silva, oitenta e oito anos perfeitos. Tendo estado nelas, chegado a casa, escrevi um texto no meio de um caderno que, há poucos dias o abrindo, me permitiu recuperar tal testemunho e partilhá-lo, com leves acrescentos, tanto mais que já se encontram no blogue alguns textos dos encontros com ele, pouco antes da sua partida...

                              Mestres de Portugal

Voltaram à terra hoje os elementos de que se compunha o corpo físico de Agostinho da Silva, bem acompanhados por flores e pessoas em número elevado. Quanto à sua alma e espírito, esses, dum plano subtil psíquico elevado, sorriam aos seus discípulos, amigos e admiradores-admiradoras.

Talvez fosse o último dos discípulos de Leonardo Coimbra, Teixeira Rego e Fernando Pessoa que os conheceu pessoalmente, embora a este último só o tivesse avistado fugazmente e nunca lhe falando, pois na Seara Nova de António Sérgio ignoravam-no. Restam agora os que foram discípulos dos discípulos desses participantes na revista Águia e no movimento da Renascença Portuguesa. Todavia é natural que se estejam a preparar alguns novos "mestres", quer de antigos discípulos seus, quer dos novos que, através das sínteses universais que Agostinho trabalhou, evocou e partilhou, chegarão a  estados ou níveis conscienciais de maior auto-realização, sabedoria, amor e universalidade.

O que é ser mestre? Em Agostinho da Silva era estar aberto dinamicamente ao Alto e, horizontalmente, porta aberta a todos, disponibilidade grande, alma extensa como os quatro cantos do universo e onde tanto se falasse a língua portuguesa como a criatividade e a inteligência fossem cultivadas.

Agostinho da Silva conseguiu abrir e partilhar o seu verbo, a sua palavra, a um ritmo natural, espontâneo, português, nascido na época galaico-portuguesa mas com raízes em Roma e Grécia e para isso laborava o seu pendor de filólogo (licenciara-se em Filologia Clássica com 20 valores e traduzira Virgílio). Depois, com o rei Dinis e S. Isabel, e os frades franciscanos e adeptos joaquimitas, a pomba do Espírito santo levantava voo com ele, e fazia as caravelas [antigas e actuais, exteriores e interiores] chegarem aos fins do mundo e nesse encontro e diálogo com gente de Moçambique e Índia, Malaca e Timor conversar, comerciar e amar.

De Luís de Camões e do P. António Vieira, a Ilha dos Amores e o Império da Língua Portuguesa actualizaram-se em Agostinho da Silva graças ao amor e à rapidez e desembaraço de quem tanto viajara (e no Brasil estagiara) e tantas reflexões e conferências, famílias e amizades, grupos e ligações, cartas e intercâmbios fizera.

E, finalmente, na soma das influências e ligações da sua alma, a geração do princípio do século XX, de Sampaio Bruno a Leonardo Coimbra, de Teixeira de Pascoais a Fernando Pessoa, encontrava nele um original continuador, sobretudo pelo dinamismo da sua vida de português das Sete Partidas, a vasta cultura universalista, o pendor de partilhar  conhecimentos e o lutar pela justiça e solidariedade social, na linha da tradição fraterna, grupal, comunitária  e iluminadora do culto do Espírito santo.

Quem conheceu e amou o professor Agostinho não pode deixar de testemunhar o calor e entusiasmo que ele trouxe à vida e aos diálogos e que transmitia ora em faíscas inspiradas ora em atenção e interesse sincero pelos outros, sempre pronto a sugerir, a interligar, a entusiasmar.

Agostinho da Silva foi um bom continuador tanto dos monges e cavaleiros da Idade Média como dos navegadores, marinheiros e missionários dos Descobrimentos. Foi neles, e sobretudo nas linhas de energia e objectivos que os guiaram, no fundo a Tradição Espiritual de Portugal, que Agostinho da Silva  exaurou a luz que brilhou, atraindo tantas pessoas.

A partir delas, Agostinho projectou-se para um futuro, utópico para quase todos [por vezes demasiado], mas coerente com as potencialidades libertadoras do ser humano, pois essencial e clara nele era a visão do ser humano, que não era o objecto da sociedade de consumo, o número do partido, mas o criador anímico e espiritual.

[Gratos ao seu exemplo e convívio, palavras e energias, ligações e impulsos, saibamos continuar a trabalhar, nestes tempos de opressivas narrativas oficiais e censuras, as linhas de energias naturais e sãs e os objectivos elevados e libertadores da Tradição Espiritual Portuguesa e Universal!]

                             

segunda-feira, 5 de setembro de 2022

"A Oração", de Bô Yin Râ. Tradução portuguesa dada à luz por Pedro Teixeira da Mota, em Agosto de 2022

 Saiu à luz muito recentemente a tradução de um livro em alemão sobre a oração, o que é de se louvar, pois esta arte ou técnica emotiva e poética, linguística e psíquica de se associarem palavras com intenções humanas, religiosas e espirituais, embora milenária continua misteriosa, oscilando as pessoas entre adoptarem as práticas tradicionais, que sentem e resultam mais ou menos, inventarem as suas, utilizarem as de outras religiões ou, mais niilisticamente, descrerem, desvalorizarem e ignorarem.
                                          
E contudo todos nós já sentimos ao longo da vida momentos em que as orações brotaram mais, seja preces de aflição isto é
 de momentos mais esforçados, seja ao darem-se graças  alegremente, ao orarmos pelos que já partiram da Terra física visível, e ainda as orações e mantras que brotam do nosso interior durante interiorizações e meditações. Como orar melhor, eis então a questão: como podemos com a oração harmonizar-nos, alinhar-nos, conhecer-nos, e logo ligar-nos ao espírito que está em nós, à Divindade e aos seus ajudantes, mensageiros, mestres, anjos. E consequentemente como saber pedir e obter melhores resultados com ela.

O autor do livro é alemão, viveu entre 1876 e 1943 e  deixou uma obra de cerca de 30 livros e 500 pinturas, tendo recebido o nome de Bô Yin Râ quando foi iniciado pelo seu mestre, oriental, durante uma estadia na Grécia, junto ao Mediterrâneo, ecoando em tal nome os sons que  estão mais afins vibratoriamente do seu espírito, algo que certamente escapará a quase toda a gente, embora se saiba que várias tradições apresentam o fenómeno da iniciação e o recebimento de um novo nome, iniciático, místico, espiritual nesse momento de transição, despertar e religar.
Iniciando A Oração com a transcrição da cena evangélica (Lucas 11, 1), em que os discípulos pedem ao mestre Jesus que lhes ensine a orar, Bô Yin Râ vai desenvolver em cinco capítulos um ensinamento valioso que tentaremos resumir no seu essencial.
                                          
No 1º capítulo, intitulado,
 o Mistério da Oração, aponta para a necessidade de as pessoas aprofundarem a sua compreensão de Deus, nomeadamente a de que só no nosso interior mais fundo é que poderemos encontrar a Divindade viva, e que orar, não sendo  tanto dar graças ou pedir alguma coisa, implica sabermos realizar as três condições da oração por Jesus transmitidas: Procurar, Pedir e Bater.

No 2º capítulo, Procurai e Encontrareis, aprofunda o sentido do que e como se procura, e como isso não é uma inquieta demanda mas antes implica um estado de paz, de entrega plena do ser, «e é uma imersão serena no mais íntimo da alma, sem qualquer agitação, sem nenhuma ambição e sem impaciência inquieta», pois quem tem de ser encontrado é o próprio ser de quem procura.

Para tal tarefa recomenda Bô Yin Râ a postura que mais nos convier mas que permita esquecermos o corpo físico e sentir-nos a nós próprios no seu interior e como um fluido dentro dele, não ligando a pensamentos ou imagens que surjam, apenas tentando cada pessoa sentir-se no seu interior mais fundo e ir deixando que a obscuridade vá dando lugar a uma claridade e quietude feliz, a que corresponde a consciencialização de que a sua vontade está em ligação, sintonia ou unidade com a vontade Divina, ou que o orar é uma comunhão com a vontade do Ser primordial.


No 3º capítulo, Pedi e ser-vos-á Dado, Bô Yin Râ desenvolve o sentido do pedir, que não é mais do que libertar interiormente as forças que permitem ao que espiritualmente nos pertence se manifestar.
Mas p ara um pedido se tornar verdadeiramente uma oração, ele deve ser imaginado e visualizado até que algo como uma imagem estilo negativo fotográfico se forme e que será depois activada ou colapsada tanto pela nossa fé como pela cooperação da Alma do Mundo, ou da Ordem do Universo, com os seus agentes, «as sublimes potências»,  que auxiliam tais pedidos a concretizar-se, no caso de que quem pede ou o que se pede possa ser justamente satisfeito.
Distinguirá ainda Bô Yin Râ entre os pedidos normais para aspectos da existência terrena e os pedidos espirituais ou mais verdadeiros, nos quais explicita como o mais paradigmático «o pedido que abre de novo à corrente do Amor eterno a possibilidade de circular através da consciência terrena», dando-nos nesta frase uma clarificação bem valiosa da misteriosa origem do Amor, algo que na realidade Bô Yin Râ conhecia intimamente, como a sua vida e obra testemunham.

No quarto capítulo, Batei e Abrir-se-vos-á, encontramos uma condensação dos três princípios da oração, tão clara que merece ser transcrita na sua plenitude, para melhor conhecermos e praticarmos a oração: «Se procurar é um mergulhar em si mesmo, para encontrar no mais íntimo, na profundeza mais funda, - se pedir é querer na firme confiança que se receberá, - assim é bater, - ou seja, bater à porta para obter acesso, é um comportamento activo no exterior, que confere apoio a um pedido».
Explicitará ainda que
este bater à porta da oração não é apenas por coisas terrestres, mas que tem a sua contraparte mais elevada no entrar no mundo espiritual e o ter acesso ao Templo da Eternidade, embora ria-se um pouco dos que falam tu cá tu lá com Deus, dos que dispensam intermediários entre eles e Deus e imaginam que é Deus quem lhes abre as portas ou os recebe nos mundo espirituais. É só porém ao ser humilde, que sabe reverenciar Deus e realizar quão frágil é a sua consciência e cérebro para entrar em comunicação directa com o Divino, que algum amigo, mestre ou anjo de Deus  abrirá a porta de acesso ao Templo divino e encherá ou iluminará o seu Graal.

Renovação espiritual se chama o V capítulo e nele Bô Yin Râ vai apelar a uma prática mais assídua da oração, considerando-a capaz de gerar uma renovação espiritual na Humanidade, tão necessária nos seus dias como nos nossos em que cada vez mais as pessoas estão submetidas a forças negativas, consumistas, desnaturalizadoras, manipuladoras, violentas, em especial pelos órgãos de comunicação tão vendidos a narrativas oficiais falsas, amedrontadoras e danosas, que afectam, distorcem ou paralizam as almas e mentes.
Com efeito estamos todos
ligados uns aos outros, pelo que o facto de um ser conseguir começar a respirar e vivenciar o espírito e as suas potencialidades de comunicação e comunhão espiritual terá efeitos em outros, nomeadamente os que por ressonância de afinidades ou proximidade estão mais sensíveis a tais eflúvios.
Explica a
inda como as confissões, e os apelos à misericórdia ou à graça do Alto que se fazem têm o seu papel de catarse e que podem receber respostas dos mundos espirituais, nomeadamente de santos, mestres e anjos e as energias divinas que eles partilham. 

Também de um modo bem valioso faz ver como se distingue a alma do espírito em cada ser humano e como é necessária uma certa higiene da alma para que esta não seja paralisada e para que o seus sensores possam captar as energias ou bênçãos do espírito, dos mundos espirituais e da Divindade. 

A oração serve então essa função e quem  a compreende bem torna-se capaz de estar sempre pronto a orar, variando depois o tipo de orações, palavras, intenções e vivência interiores, lembrando que o orar pelos que já partiram é bom e útil para eles ou para outros que precisem mais do que eles, algo que Bô Yin Râ no seu Livro do Além já explicara bem e que merecerá um dia ser traduzido para português.
A obra termina com um capítulo inumerado,
Como deveis orar, com cerca de dúzia e meia de orações compostas como exemplos por Bô Yin Râ e que nos poderão inspirar em momentos como o levantar, deitar, comer, sofrer, alegrar-nos, etc.


Esta obra fora dada à luz em Leipzig em 1926, pela casa editora Richard Hummel, com o título Das Gebet e foi agora traduzida e publicada em português em bom papel, com as colaborações de Cláudia Lopes, Maria Antónia Bacelar Antunes e da tipografia Lobão, de Almada. Os poucos exemplares numerados e assinados, para circulação entre pessoas amigas e interessadas,  poderão ser pedidos a viva.erasmo@gmail.com, ou pelo Facebook. Boas orações!

sábado, 3 de setembro de 2022

As Almas-gémeas, em Brito Camacho, um aljustrelense republicano, coronel médico, ministro e notável jornalista e escritor.

 Manuel Brito Camacho foi um notável alentejano, activista da transição da Monarquia para a República, e que, nascido em Aljustrel em 12 de Fevereiro de 1862, um de doze irmãos e irmãs, veio a formar-se na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, exercendo as suas funções como médico e médico militar em algumas cidades de Portugal (Torrão, Tancos, Torres Novas, Viseu), enquanto se dedicava simultaneamente à causa republicana, conferenciando, fundando jornais, tal em 1906  A Luta (com os artigos e editoriais poderosos) e partidos (o Unionista), concorrendo a eleições e chegando a ser deputado. E de tal modo afirmou a sua sensibilidade e consciência cívica, inteligência e determinação que, participando decisivamente na revolução do 5 Outubro, foi ministro do Fomento no elenco do 1º governo da República, tendo tomado medidas importantes para o ensino técnico, industrial e comercial bem como para o agrícola e veterinário. Foi maçon, iniciado em Torres Novas, em 1893 e em 1907 integrou a Loja Elias Garcia, em Lisboa. Destacou-se ainda nos trabalhos para a separação da Igreja Católica do Estado Português, sendo ateu mas tolerante, e por não ser a favor da participação europeia portuguesa na Iª Grande Guerra, muito estimulada por Afonso Costa, o chefe do partido Democrático e mais radical, e do qual já há bastante tempo Brito Camacho divergia. Nos anos de 1921 a 1923 foi o Alto Comissário da República em Moçambique onde tomou boas medidas e propugnou a preparação da futura autonomia dos moçambicanos.
                                            
Em 1926, com o golpe militar que daria origem ao Estado Novo e ao Salazarismo, retirou-se da acti
vidade política e estabilizou como coronel (desde 1919), certamente sendo da Oposição, mas mais dedicado à sua vasta obra literária, na qual deu à luz (desde 1889, a sua tese) cerca de quarenta livros, de contos ensaios e estudos históricos, por onde perpassam a sua prosa excelente e dotada de muitos regionalismos, o seu grande conhecimento e amor do Alentejo e de Portugal, nomeadamente das suas gentes, falas, tradições e almas, e os muitos encontros dialogantes com outros intelectuais da época. E assim em alguns dos seus livros, e num deles em especial, e do qual iremos extrair um ensinamento platónico, Quadros Alentejanos, 1925, encontramos descrições muito perfeitas dos alentejanos e da vida rural e seus trabalhos, costumes, vestuários, festas, comidas, devoções, crenças, mentalidades, tipos, por vezes com criações de personagens tão vivas quão fabulosas. O Amor será um tema ou força-ideia que viveu em toda a sua vida e cogitou e ensaiou com frequência e qualidade, nomeadamente no excelente Os Amores de Latino Coelho, ou nestes Quadros Alentejanos.

Será em 19 de Setembro de 1935, dois meses antes de Fernando Pessoa, que partirá da Terra, mas sem ter deixado de comunicar, e neste livro Quadros Alentejanos,  na página 125, que: «Ainda espero ser feliz... depois de morto, na Terra ou no Céu, pouco me importa [referira antes a hipótese da "transmigração das almas]; mas para ser feliz na Terra é necessário que incarne por modo a fazer a vida para que a Natureza me dotou, e para ser feliz no Céu, é necessário que lá encontre os meus queridos mortos, os que partindo antes de mim para a viagem eterna, me levaram bocados do coração», ou, melhor, que imortalizaram-perenizaram os eflúvios de amor que ainda sinto por eles. Será valioso comparar-se com os sonetos de Antero de Quental dedicados à comunhão psíquica com os espíritos familiares e amigos desincarnados, já abordados neste blogue.
                                                  
Nos Quadros Alentejanos Brito Camacho descreve com realismo e grande sensibilidade, entre outros quadros e histórias, a vida ora pacata ora aventurosa dum mai
oral, o Verruga, que após uma luta mais ferida com um traiçoeiro maltez, começa a sentir aos 50 anos que talvez fosse bom encontrar alguém com quem se desse bem e pudessem viver juntos ou mesmo casarem-se.
E aparece mesmo a alma caridosa ca
ndidata a tal missão, uma mulher nos 40 anos e com uma vida bem difícil e amorosamente variada, mas rija, sincera, trabalhadora e generosa, asseada e prendada na lide da casa e protectora dos animais. 

Nesse primeiro encontro no adro da aldeia onde vivia a Francisca, este era o seu nome, e onde ele passara a morar perto  num monte como maioral do gado, como bom pastor que sabia tudo «à perfeição desde a tosquia à ordenha», ela, que nunca o vira, pergunta-lhe donde era, e à resposta vaga «da Serra», inquiriu após ter «enrolado à cintura para não a sujar, a saia de cima  muito comprida como se usava ao tempo e sentou-se no chão, perto do Verruga, cruzando as pernas como na joeiração do trigo, espalmadas, no jeito preguiçoso de quem dispõe do seu tempo, e não se lhe dá consumi-lo a tagarelar: - É viúvo?...
- Nunca fui casado. Dizem que Deus Nosso Senhor fez as almas inteiras, e que depois as partiu ao meio, espalhando as ametades pela Terra, misturadas, e cada uma que procure a sua companheira, até a encontrar. As que se encontram, são felizes; as que não se encontram no mundo ao Deus dará, como uma cabeça que se perdeu, e não come nem descansa à procura das outras, sem dar com elas.
[Francisca:] - Isso são histórias da carochinha. Quem faz uma panela faz logo um testo para ela. Só não casa quem não quer.
-Assim será, não digo que não; mas sempre ouvi dizer que
casamento e mortalha no céu se talha, e tenho cá na minha que há criaturas para quem Deus Nosso Senhor não talhou nem uma coisa nem outra. Eu sou dessas. E vocemecê é casada?
- Eu, não, senhor. Nunca encontrei forma do meu pé, e preferi ficar
solteira a casar com um diabo que vivesse do meu trabalho,      e ainda por cima me enchesse a barriga de estoiros», entenda-se, barulhos de fome. pág. 212.

Desejaríamos destacar esta sábia introdução na pacata vida alentejana e de educação cristã, do discurso de Aristófanes, no Banquete de Platão, no qual se descreve uma origem não separada do homem e da mulher, que reflecte uma milenária crença, presente em tradições de diversos povos, na existência das almas gémeas, e que no séc. XX, entre outros Sâr Peladan (1858-1918) e Bô Yin Râ (1876-1943) desenvolveram bem
                                    
Se ele acreditava mesmo ou não, desconhecemos embora se tenha casado com a D. Maria da Luz
, por amor mas por pouco tempo, já que no De Bom Humor, bastante recheado de aspectos biográficos, como aliás a generalidade das suas obras, diz-nos: «Não tenho filho nem filha. A santa, que foi minha esposa, morreu aos dez meses de casada, deixando-me um anjinho que lhe sobreviveu de pouca semanas. Não tornei a casar.» . Se conseguiram vivenciar a reunião das duas partes separadas, ou pelo menos uma fusão profunda de corpos e almas e em sintonia com a Divindade, fica em aberto, e até mais em desafio para nós tentarmos alcançar tal nível no nosso desejo do supremo bem que é o Amor, fogo divino em nós que devemos verdadeiramente vivenciar na Terra para não sairmos dela frios e pouco despertos ou completos, mas antes purificados na fornalha do amor e reunidos, unificados...
Mas que Manuel Brito Camac
ho deve ter sofrido muito não há dúvida, ainda que na continuação desse extracto do capítulo As crianças, depois de afirmar o seu desinteresse pessoal sobre o ensino e educação as crianças, por não ter descendentes, reafirma com valioso e exemplar amor, já tão raro nos nossos dias de perda da fraternidade nacional:«Mas o nosso país é a nossa grande família; os nossos concidadãos, sem que o diga a voz do sangue, são nossos parentes próximos: o que para eles é um bem ou um mal, considerados como elementos da colectividade, não pode ser-nos indiferente».
Noutras obras de Manuel Brito Camacho observamos afloramentos valiosos da sua sensibilidade ao amor, e até aos mundos subtis das almas, e talvez venhamos dedicar a este excelente escritor outro artigo. E muita luz e amor para ele, onde quer e como esteja. Aum!