A palavra "excentricidade" é empregada por Antero de Quental na penúltima carta da sua vida, dramática no dilaceramento que partilha, escrita em Ponta Delgada a 29 de Agosto e dirigida a Oliveira Martins, na qual dá conta de que «o grande desejo que tinha de não desistir da resolução e programa final de vida satisfatório», e que o levara há três meses a retirar-se para ilha natal, estava a falhar: «Procurava o definitivo e afinal ainda agravei o instável e provisório que tanto me assustava. Paciência. Fui talvez imprudente, contei de mais com as minhas forças, seduziu-me a ideia de, depois de tantos anos de excentricidade, acabar como toda a gente, mas vejo que a excentricidade tinha de ser definitiva, submeto-me a ela, ainda agravada agora por mil cuidados. Peço à minha razão que comunique aos meus nervos o estoicismo que ela tem mas de que eles não parecem susceptíveis».
Para além da auto-consciência da sua excentricidade e da dualidade que o habitava e de que frequente e estoicamente se "queixava", há de realçar como que um aviso intuitivo ou subliminal da sua desincarnação fora do normal, excêntrica, e que se concretizaria na pacatês do banco da praça ou campo de S. Francisco, junto à cerca do convento (não o da sonhada ordem dos Mateiros, mas o da Nossa Senhora da Esperança), caída a noite (as 20:00), "irmã da morte", sob a palavra e símbolo da virtude da "Esperança", treze dias depois, perfeitos os seus 49, 7 x7 anos, sacrificiais de cavaleiro da Verdade e do Amor.
Mas excêntrico é um termo bem polisémico, podendo significar tanto de "fora do centro" como "saído do centro", como ainda desintegrado, isto é, não centrado, não integrado, sem conseguir estar centrado ou normalizado pelas mentalidade dominantes da época, mas também sem tornar-se um centro e logo centralizador num meio ambiente ou época. Provavelmente Antero, findo o seu périplo continental mais activo, completado o seu testamento de intelectual nas Tendências Gerais de Filosofia na segunda metade do século XIX, buscava nesses últimos tempos da sua vida tal centro na mãe-terra natal, nos seus Açores, interiormente como que num regresso ao ventre maternal, ao seio telúrico que o acolheria para uma nova vida, seja em que sentido esta fosse nova... Ou não glosara ele, como depois Joaquim de Araújo e Fernando Pessoa (como já desenvolvi neste blogue), o dito grego Morrer é ser Iniciado?
Mas ao longo da vida em que momentos Antero foi mais excêntrico, quando se sentiu mais tal em comportamentos, sentimentos ou ideias, ou então quando foi ele visto mais excêntrico, mais fora da norma e da normalidade, não nos esquecendo que a excentricidade e a genialidade estão bem próximas por vezes?
Teríamos de desenrolar a sua biografia para sermos exaustivos, tanto mais que ele próprio caracteriza-a por "muito anos de excentricidade" mas digamos que certamente na época estudantil, tal como mestre da Sociedade do Raio, líder da Rolinada (1864) e orador e declamador da Universidade, como teorizador literário na Questão do Bom Senso e Bom Gosto (1865-66) tal como mais tarde nas conversas no seio do grupo lisboeta do Cenáculo (1867-1871), como doutrinador revolucionário das Conferências do Casino (1871), como ideólogo dum partido socialista nascente, e sobretudo na sua sensibilidade imensa e intensa bem patente nos seus interesses e leituras, escritos em prosa e poemas, em que uma genialidade precoce se manifestou fortemente.
Mas também certamente na sua inadaptação a uma vida profissional normal (embora ainda se tivesse feito tipógrafo e sofresse a dureza de tal profissão no meio do proletariado francês, ou pensasse concorrer a professor, no que foi dissuadido por Oliveira Martins) e logo à inserção na sociedade. Talvez seja no contributo de leitura obrigatória, Um Santo que era um sábio, no In Memoriam de Antero, 1896, em Eça de Queirós descreve magistral e hagiograficamente alguns desses momentos de um dos nossos santos laicos que encontremos o melhor debuxo (bem demorado na sua feitura) da sua excentricidade e genialidade.
Ficará assim a aura do poeta, do pensador e do animus questionador, revolucionário, excêntrico, meditabundo, ecoando desde então e até estes tempos nossos do séc. XXI tão sombrios de tentativas de manipulação massificante em narrativas e ideologias oficiais transhumanas que não se podem contrariar ou discutir e em que os Anteros actuais são rapidamente presos (tal Julian Assange) ou eliminados (tal Jamal Khashoggi). O que diria hoje Antero de Quental de tais auroritarismo e opressões, políticos e "media" ocidentais e nos aconselharia? - Sintamo-lo em alguns dos seus poemas mais dinâmicos e talvez recebamos algumas inspirações e forças, sobretudo dos contidos nas Odes Modernas.
Quanto ao Amor e, já que não casou, aos namoros de Antero, algo excêntricos também nas suas especificidades e dificuldades, temos de admitir que era bem difícil o corpo, a alma e o espírito de Antero encontrarem a mulher certa para entrarem em diálogo e unirem-se, de um modo profundo, demorado, aprazível, frutuoso, na sua época do séc. XIX, em que os contactos e os namoros entre os dois sexos não estavam facilitados. Mas na sua adolescência teve um ou dois namoros mais sentidos, e brilhou bastante o fogo do seu amor idealista, romântico, platónico, em especial até nos dedicados a Beatrice. Mas não resultaram, embora em especial o com Mariana Portocarrero deixasse marcas na sua correspondência, sempre reservada ou discreta, e numa ou outra referência dos amigos.
Foi talvez aos 35 anos, com a Baronesa Seillières, quando ambos eram seres já com maturidade de idade e da escola do sofrimento, que terá sentido possível (ou pelo menos mais forte) a paixão que o avassalou. Se anteriormente a sua grande cultura, genialidade e idealidade (algo influenciada pelo romantismo alemão) e até vocação de escritor e tribuno revolucionário, e ao mesmo tempo alguma misogenia típica da época e da educação cristã, dificultavam a tarefa dum casamento, agora seria apenas o desencontro de serem de nacionalidade diferentes e ela estar ainda num processo de separação. Mas sabemos poucos das complementaridades que terão conseguido sentir e alcançar nesses curtos encontros, quem sabe se entre as alamedas de grandes árvores, ou no espaço ajardinado junto a uma fonte, do estabelecimento hidroterápico de Bellevue, Oise-Seine, nos arredores parisienses...
Quando a sua alma, global, total, na qual a cabeça intelectiva e o coração afectivo e dinâmico estavam unidos, e estimulavam o corpo, a imaginação e esperança, podemos observar nos seus poemas da época como ele sentiu e desejou tal possibilidade unitiva, nomeadamente em relação às musas dos seus namoros juvenis. Maduramente mas já em crise nervosa ou psíquica (desde 1874, quando morre o pai) no tempo de encontro com baronesa, constatamo-lo pelo magistral poema que escreveu nesses momentos de mais amor, o Mors-Amor.
O coração de Antero era franco, sincero, transparente, e havendo afinidades vibrava facilmente em Amor com quem estava, ou por quem se sentia atraído, embora saibamos pouco dos factores mais atractivos na recíproca projecção amorosa, ou mesmo o que tinha mais força dinâmica nessa laboriosa e alquímica tarefa de se aproximarem, enlaçarem, conhecerem e unirem dois seres, luminosamente, divinamente...
O Amor divino em Antero falhou pois o forte amor à Deus de criança não o conseguiu manter senão até ao começo da adolescência, natural na abertura na Universidade à universalidade do conhecimento e das religiões, logo começando um questionamento e afastamento que o levou depois, por entre a sua evolução filosófica no inconsciente de Hartman, no budismo e no panpsiquismo, a não o desenvolver e aperfeiçoar suficientemente, ainda que ao de leve o tivesse consagrado no último soneto da sua antologia, Na mão de Deus que se tornaria a sua obra-prima, Sonetos Completos, 1888.
Quanto ao amor humano ele iria concentrar-se, após os frustrados namoros juvenis, nos familiares (até desincarnados, como alguns sonetos mostram) e em especial na bastante amada mãe, mas também desgastantemente na irmã Ana, em Albertina e Beatriz, as duas crianças do seu amigo Germano Meireles adoptadas e educadas cerca de dez anos, e, sobretudo, em alguns amigos de juventude, e depois em uns poucos de amigos mais recentes ou mais novos, de certo modo discípulos, e neste sentido as cartas para eles perdurarão na antologia virtual do Melhor Epistolário do Mundo, destacando-se algumas das dirigidas a Germano Meireles, António Azevedo Castelo Branco, Jaime Batalha Reis, Alberto Sampaio, João Lobo de Moura, João de Deus, irmãos Faria e Maia, Eça de Queirós, António Moleirinho, Joaquim de Araújo, Oliveira Martins, Fernando Leal, Carolina de Michaelis, Maria Amália Vaz de Carvalho, Jaime de Magalhães Lima e Carlos Cirilo Machado.
A nós de as relermos e com tais diálogos luminosos nos inspirarmos e melhoramos na harmonia do corpo, alma e espírito, na audição e vivência da voz da consciência e no descobrir e viver mais o Amor, que vence a separatividade, a ignorância, o ódio, o desalento e a morte, e que Antero tão bem retratou no soneto Mors-Amor, escrito sob a influência do encontro com a Baronesa Seillières, e que no momento da sua partida (que hoje comemoramos) terá talvez sentido (e será que mantrizou até: "Eu sou o Amor"?), certamente com as limitações ambientais internas e externas, pesadas, e que agora iremos ler em sintonia luminosa com a sua alma espiritual ( a Paz esteja com ela), tanto mais que esta foi tal como no famoso soneto Solemnia Verba («Desta altura vejo o Amor! Viver não foi em vão, se é isto a vida, Nem foi de mais o desengano e a dor») bem simbolizada na sua simbiose com o corpo e o espírito, o passado vivido e sofrido e o eterno presente da essência imortal:
«Esse negro corcel cujas passadas
Escuto em sonhos, quando a sombra desce,
E, passando a galope, me aparece
Da noite nas fantásticas estradas,
Donde vem ele? Que regiões sagradas
E terríveis cruzou, que assim parece
Tenebroso e sublime, e lhe estremece
Não sei que horror nas crinas agitadas?
Um cavaleiro de expressão potente,
Formidável, mas plácido no porte,
Vestido de armadura reluzente,
Cavalga a fera estranha sem temor.
E o corcel negro diz: «Eu sou a Morte!»
Responde o cavaleiro: «Eu sou o Amor!»
Saibamos descobrir, ser e viver Amor que jaz nas profundezas últimas do coração e do ser.
E muita Força, Luz, Amor divinos em Antero de Quental!
1 comentário:
está muito bom este texto e aprendi os dois significados de excêntrico, que a Isa diz que eu sou...o estoicismo dele em relação ao sofrimento é um eco do que Nietsche praticou. um pequeno reparo: agora dizem androgenia e misogenia mas em ambos é ginia. parabéns pelo teu trabalho e persistência!
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