Manuel Brito Camacho foi um notável alentejano, activista da transição da Monarquia para a República, e que, nascido em Aljustrel em 12 de Fevereiro de 1862, um de doze irmãos e irmãs, veio a formar-se na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, exercendo as suas funções como médico e médico militar em algumas cidades de Portugal (Torrão, Tancos, Torres Novas, Viseu), enquanto se dedicava simultaneamente à causa republicana, conferenciando, fundando jornais, tal em 1906 A Luta (com os artigos e editoriais poderosos) e partidos (o Unionista), concorrendo a eleições e chegando a ser deputado. E de tal modo afirmou a sua sensibilidade e consciência cívica, inteligência e determinação que, participando decisivamente na revolução do 5 Outubro, foi ministro do Fomento no elenco do primeiro governo da República, tendo tomado medidas importantes para o ensino técnico, industrial e comercial bem como quanto ao agrícola e veterinário. Foi maçon, iniciado em Torres Novas, em 1893 e em 1907 integrou a Loja Elias Garcia, em Lisboa Destacou-se ainda nos trabalhos para a separação da Igreja Católica do Estado Português, sendo ateu mas tolerante, e por não ser a favor da participação europeia portuguesa na Iª Grande Guerra, muito estimulada por Afonso Costa, o chefe do partido Democrático e mais radical, e do qual já há bastante tempo Brito Camacho divergia. Nos anos de 1921 a 1923 foi o Alto Comissário da República em Moçambique onde tomou boas medidas e propugnou a preparação para a futura autonomia dos moçambicanos.
Em 1926, com o golpe militar que daria origem ao Estado Novo e ao Salazarismo, retirou-se da actividade política e estabilizou como coronel (desde 1919), certamente da oposição, mas mais dedicado à sua vasta obra literária, na qual deu à luz (desde 1889, a sua tese) cerca de quarenta livros, de contos ensaios e estudos históricos, por onde perpassam a sua prosa excelente e dotada de muitos regionalismos, o seu grande conhecimento e amor do Alentejo e de Portugal, nomeadamente das suas gentes, falas, tradições e almas, e os muitos encontros dialogantes com outros intelectuais da época. E assim em alguns dos seus livros, e num deles em especial, e do qual iremos extrair um ensinamento platónico, Quadros Alentejanos, 1925, encontramos descrições muito perfeitas dos alentejanos e da vida rural e seus trabalhos, costumes, vestuários, festas, comidas, devoções, crenças, mentalidades, tipos, por vezes com criações de personagens tão vivas quão fabulosas. O Amor será um tema ou força-ideia que viveu em toda a sua vida e cogitou e ensaiou com frequência e qualidade, nomeadamente no excelente Os Amores de Latino Coelho, ou nestes Quadros Alentejanos.
Nos Quadros Alentejanos Brito Camacho descreve com realismo e grande sensibilidade, entre outros quadros e histórias, a vida ora pacata ora aventurosa dum maioral, o Verruga, que após uma luta mais ferida com um traiçoeiro maltez, começa a sentir aos 50 anos que talvez fosse bom encontrar alguém com quem se desse bem e pudessem viver juntos ou mesmo casarem-se.
E aparece mesmo a alma caridosa candidata a tal missão, uma mulher nos 40 anos e com uma vida bem difícil e amorosamente variada, mas rija, sincera, trabalhadora e generosa, asseada e prendada na lide da casa e protectora dos animais.
[Francisca:] - Isso são histórias da carochinha. Quem faz uma panela faz logo um testo para ela. Só não casa quem não quer.
-Assim será, não digo que não; mas sempre ouvi dizer que casamento e mortalha no céu se talha, e tenho cá na minha que há criaturas para quem Deus Nosso Senhor não talhou nem uma coisa nem outra. Eu sou dessas. E vocemecê é casada?
- Eu, não, senhor. Nunca encontrei forma do meu pé, e preferi ficar solteira a casar com um diabo que vivesse do meu trabalho, e ainda por cima me enchesse a barriga de estoiros», entenda-se, braulhos de fome. p. 212.
Desejaríamos destacar esta sábia introdução na pacata vida alentejana e de educação cristã, do discurso de Aristófanes, no Banquete de Platão, no qual se descreve uma origem não separada do homem e da mulher, que reflecte uma milenária crença, presente em tradições de diversos povos, na existência das almas gémeas, e que no séc. XX, entre outros Sâr Peladan (1858-1918) e Bô Yin Râ (1876-1943) desenvolveram bem.
Se ele acreditava mesmo ou não, desconhecemos embora se tenha casado com a D. Maria da Luz, por amor mas por pouco tempo, já que no De Bom Humor, bastante recheado de aspectos biográficos, como aliás a generalidade das suas obras, diz-nos: «Não tenho filho nem filha. A santa, que foi minha esposa, morreu aos dez meses de casada, deixando-me um anjinho que lhe sobreviveu de pouca semanas. Não tornei a casar.» . Se conseguiram vivenciar a reunião das duas partes separadas, ou pelo menos uma fusão profunda de corpos e almas e em sintonia com a Divindade, fica em aberto, e até mais em desafio para nós tentarmos alcançar tal nível no nosso desejo do supremo bem que é o Amor, fogo divino em nós que devemos verdadeiramente vivenciar na Terra para não sairmos dela frios e pouco despertos ou completos, mas antes purificados na fornalha do amor e reunidos, unificados...
Mas que Manuel Brito Camacho deve ter sofrido muito não há dúvida, ainda que na continuação desse extracto do capítulo As crianças, depois de afirmar o seu desinteresse pessoal sobre o ensino e educação as crianças, por não ter descendentes, reafirma com valioso e exemplar amor, já tão raro nos nossos dias de perda da fraternidade nacional:«Mas o nosso país é a nossa grande família; os nossos concidadãos, sem que o diga a voz do sangue, são nossos parentes próximos: o que para eles é um bem ou um mal, considerados como elementos da colectividade, não pode ser-nos indiferente».
Noutras obras de Manuel Brito Camacho observamos afloramentos valiosos da sua sensibilidade ao amor, e até aos mundos subtis das almas, e talvez venhamos dedicar a este excelente escritor outro artigo. E muita luz e amor para ele, onde quer e como esteja. Aum!
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