[Este texto encontra-se já no blogue bem mais desenvolvido, mas em inglês,]
Em 23 de Abril de 1888, dois meses antes de Fernando Pessoa, nascia em França, em Paris, Jacques de Marquette. Será em 1904 que toma conhecimento do vegetarianismo, através de um livro de judo que atribuía à abstenção de carne a grande força e resistência dos judocas japoneses, e em 1905 que se torna vegetariano, realçando o impacto consciencial da leitura dum livro de Daniel Foward, que condenava os sofrimentos desnecessários dos animais e referia muitos vegetarianos valiosos. Continuando os seus estudos, em 1907, licenciou-se como cirurgião dentista pela Faculdade de Medicina de Paris, e foi tentando compreender melhor os efeitos dos alimentos nas psiques e comportamentos humanos, empenhando-se numa luta de esclarecimento. Funda então a
primeira sociedade naturista em França, Le Trait d'Union, em 1911 e é um dos co-fundadores dos Escoteiros em França. Participa como oficial na 1ª
grande Guerra e logo que paz começou a sorrir na ruralidade francesa organizou o 1º campo e parque de campismo naturista em França, em Chevreuse, em 1920, e cujo programa começava às 5 da manhã com a aula de ginástica que dava e terminava às 22:00 com os cantos que dirigia. Em 1922, mantendo a chama ardente do conhecimento viva, licencia-se em Filosofia. E em 1924, funda a 1ª cooperativa naturista Trait d'Union (que teve quatro restaurantes em Paris e cinco filiais na província). Em 1925 diploma-se em Estudos Superiores e em 1928 doutora-se em Letras. E funda ainda nesse ano o 1º congresso Universal da Juventude, em Ommen, Holanda. A sua mulher e companheira na demanda da Panharmonia foi Phyllis de Marquette (1902-1971), uma norte-americana professora de Psicologia, embora quando se casasse por paixão já tivesse quarenta anos muito castos.
Será um espiritual bem activo, licenciado em medicina e filosofia, vegetariano e estudioso da espiritualidade comparada, nomeadamente a indiana, tendo ensinado Religiões Comparadas no Lowel Institute de Chicago e proferido conferências em dezenas de instituições e países. Esteve na Índia sete vezes, em vários ashrams, nomeadamente no do Mahatma Gandhi e no do Guru Ranade, em Nimbal (neste em Dezembro 1954 e tendo tanto ele como a sua mulher sido iniciados por guru Ranade, e deixou várias obras valiosas, tais como a Introduction à la Mystique comparée, Confessions d'un mystique contemporain, Santé et Progrès, assurés par l'Alimentation Naturelle, base universelle du Yoga - Manuel pratique d'Higiène Alimentaire et de Cuisine Vegetarienne (onde realça a importância da mastigação, pois é ela que prepara a assimilação), Les septs Raisons du Vegetarianisme (Hygiene, Economie et Morale de l'Alimentation), 1934, De l'Âme au Esprit (título igualmente do meu último livro, Da Alma ao Espírito, 2015).
No L'Avenir de l'Âme dans la Pensée Orientale, de 1951, descreve as concepções principais da alma no Ocidente, dos Egípcios e Gregos a Charles Renouvier (realçando a equiparação por este da mónada criativa à persona, donde o personalismo com que Jacques de Marquette se identificou), e do Oriente, aprofundando bem a metafísica dos vários corpo e planos do universo, baseado nos textos tradicionais indianos, das Upanishads às Puranas Vaishnavas, realizando ainda uma original equiparação do personalismo divino ocidental com a Ishta devata, a divindade pessoal na compreensão íntima ou esotérica indiana.
De destacar a sua tradução do livro do seu guru indiano Ranade intitulada La Spiritualité dans l'oeuvre de Gandhi. Anote-se que Gandhi, com quem se encontrara, em 1930 dera o seu patrocínio à associação da Panharmonie, por ser um elo entre o Ocidente e o Oriente, e porque seguia os princípios da ahimsa, não-violência, nomeadamente o vegetarianismo, que Marquette considerava "a ponte entre a harmonia no plano físico e aquela dos planos mais elevados da moral, já que preserva o ser humano do massacre quotidiano de milhões de animais inocentes". Quanto ao plano do espírito, o acesso a ele obter-se-ia pela harmonização da nossa vida com as Leis Universais, que contêm uma ética sã e implicam da nossa parte um trabalho de auto-aperfeiçoamento, nomeadamente através da meditação.
Acrescente-se apenas que os membros da Panharmonia eram convidados a realizar "curtas meditações de manhã, ao meio do dia e ao fim da tarde, antes das refeições, durante as quais se uniam pelo pensamento à união de todo o nosso grupo com a essência sagrada do Universo. Preparam-se assim para se tornarem canais eficazes, pela sua consagração, para a transmissão ao mundo da Paz e da Luz do Alto."
A sua Association Internationale Panharmonie corporizava tanto um ideal como métodos baseado no naturismo, humanismo e personalismo, e organizava banquetes e reuniões quinzenais, com conferências e meditações (orientadas por ele), e editava obras e uma revista mensal valiosa de espiritualidade universal, já que para Jacques de Marquette a apreciação do património intelectual e espiritual da Humanidade era base mais segura de uma paz universal. Explicou abreviadamente assim: «A Panharmonia não é só um ideal de vida-em conformidade com as leis do Universo. É também um programa de realização deste ideal na vida dos indivíduos e das sociedades, acima da divisão humana em nações, raças e religiões (...) Sendo a procura da felicidade o fim primordial da actividade humana, é importante compreender-se bem a natureza fundamenta desta demanda evitando confundir-se felicidade com prazer.» E considerando que a felicidade maior ou menor depende do desenvolvimento das nossas qualidades, Jacques de Marquette, na sua Panharmonie, recomendava a eliminação sistemática do que nos enfraquece e degrada e, simultaneamente, o cultivo das nossas mais elevadas qualidades, através "do desenvolvimento de todas as causas de saúde e de progresso físico, intelectual e espiritual".
Viveu até 22 de Agosto de 1968, oitenta anos bem profundos e dinâmicos.
No livro Des Hounzas aux Yogis. Du régime des centenaires à celui des grands initiés, 2ª ediçao de 1966, mostra a importância exemplar do estilo de vida e alimentação do povo Hounza e confessará alguns aspectos biográficos, tal o ter sido o fundador da primeira sociedade naturista em França, em 1911, e que estivera na Índia quatro das sete vezes mais prolongadamente, em vários ashrams: E pelo que foi discernindo, desvaloriza, como lemos nessa obra, o Hatha Yoga, ou seja, as práticas meramente físicas das posturas e, explicaremos nós, quando não estão inseridas numa demanda espiritual, que normalmente é a da ashtanga Yoga, a yoga ou união dos oito membros ou Raja Yoga, e valoriza mais os Bhakta Yogis, os que seguem a via da adoração, e vivem quase dias inteiros absortos no amor ardente pelo objecto da sua devoção, geralmente um dos aspectos de Vishnu, e também os Raja Yogis, que fazem "ascetismos fortes para desenvolverem a sua vontade e aumentarem o seu império sobre o corpo e as paixões que nele se apoiam" de modo a assim controlarem os "pensamentos materialistas, os maiores entraves à manifestação da Presença divina na nossa vida, à activação do "Reino dos Céus" que está em nós, os quais nos fazem esquecer a nossa filiação divina".
É esta luta que diariamente todos os que praticam a meditação devem tentar estar mais conscientes, de modo a que, persistindo no trilhar do Caminho ao longo dos dias e anos, possam interiorizar-se o suficiente para começarem a sentir ocasionalmente o espírito, o atman, que está neles, ou a verem a sua Luz, ou receberem intuições, ou sentirem a sua felicidade, ananda, certamente merecendo-a também por uma vida justa, sábia, amorosa, corajosa, panharmoniosa...
Saibamos em maior contacto com a Natureza e com uma alimentação mais vegetariana e biológica, vivermos harmoniosamente com Pan, o todo, ou seja, em Panharmonia, de modo a que, escapando à opressiva manipulação dos media e à mentalidade materialista e superficial que se tem generalizado, possa a anima mundi ou o campo unificado de energia informação ser comungado criativa e holisticamente para o bem de Todos. E saudemos a alma ou personalidade espiritual de Jacques de Marquette e os seus mestres Ananda Coomaraswamy, Paul Masson Oursel e Guru Ranade.
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