quinta-feira, 3 de março de 2022

Sabedoria Persa (20 e última). Um poema de Hafiz e outro de Christophe Plantin, ecoando a "aurea mediocritas" de Horácio, ou uma vida simples e feliz.


Eis o poema final da antologia Fontes da Sabedoria Persa, do mais amado poeta do Irão, de Shiraz, Hafiz (1320-1390). Simples, poderá infelizmente parecer nos nossos dias uma utopia pois a convivialidade humana, as relações amistosas e a tranquilidade no mundo têm sido muito afectadas por múltiplas circunstâncias. Talvez uma razão mais para o escutarmos e apreciarmos, tentando criar possibilidades de sentirmos e vivenciarmos a amizade pura que escorre das imagens dos poemas com as pessoas que possamos encontrar afins ou ressoantes...
«Alguns amigos, uma garrafa de vinho, tempo livre,
Um livro, um recanto entre flores...
Eu não trocaria jamais tal felicidade
por nada deste mundo ou de outro.»
Comentário:
Eis-nos com um dia, ou um tempo, ou um estado ideal de paz e  felicidade, no qual estamos em amor, em irradiação de alma e espírito, em comunhão com a Natureza, os livros, a beleza, os amigos, o ser amado...
Poder criar, construir, cultivar, curar, ajudar, vencer defeitos e limitações, intensificar ou aprofundar o conhecimento e as ligações subtis e espirituais entre os seres, a Natureza e a Divindade, eis o que criativamente e não manipulada e comercialmente nos faz feliz, ou seja, faz vir até nós essa Ananda ou Felicidade, que é certamente uma graça...
Em verdade, vivermos ou termos um recanto, uma casa, na Natureza, pode ser uma fonte de grande felicidade, nomeadamente quando podemos ler e dialogar com os bons amigos que são os livros e seus autores, mortos ou vivos, e as pessoas afins, em convívios de refeições, trabalhos comuns, caminhadas ou meditações.
É a tão valorizada, pelos romanos antigos, os estóicos e em especial Horácio, na suas Odes, e entre nós por Antero e Pessoa,  aurea mediocritas, um estado dourado de felicidade atingido por desapego em relação aos bens, posições e famas no mundo e por um certo minimalismo ou mediocridade de meios de consumo e subsistência, ainda que certamente ter uma casa na natureza seja hoje ora uma carga de trabalhos, ora um luxo. Mas esqueçamos as circunstâncias concretas actuais adversas a tal desabrochar de felicidade campestre e mergulhemos na valorização de tal estado de simplicidade: amigos, livros, disponibilidade para dialogar e aprofundar o que seja. E claro, para muitos, o vinho, seja o tangível, seja o da sabedoria ou do amor, que a estalajadeira derrama dos seus olhos, coração, palavras e ânfora, como a tradição persa tão magistralmente desenvolveu em poemas de circulação entre o eros ou amor humano e o divino.
                                                          illustratie
Para terminarmos este pequeno ciclo de comentários a fontes da Sabedoria Persa, algumas medianas outras boas, e espero apresentar a minha própria antologia e não só comentar (em viagens de autocarro), eis um dedilhar da mesma aurea mediocritas mas já na Europa humanista: oiçamos o famoso soneto, tão reproduzido, do notável impressor Christophe Plantin (1514 ? -1589), francês mas que trabalhou mais em Antuérpia, da geração posterior aos fabulosos que trabalharam com Erasmo, tais como Aldo Manuzio e Joahnn Froben, e que chegou a ter a honra de ver a sua Bíblia Poliglota, dirigida e excepcionalmente anotada pelo notável humanista espanhol Benito Arias Montano, ser enviada pelos portugueses para os missionários jesuítas de Goa participantes nos diálogos inter-religiosos em Fatehpur Sikri e que assim a puderam oferecer, ao sábio imperador Akbar, filho de Humayun e de uma persa shia, Ḥamida Banu Begum exactamente hoje há 442 anos, como me deparei agora, numa sincronia bem valiosa, nas Efemérides do Encontro de Portugal com a Índia e do Oriente e Ocidente, para o dia 3 deste mês de Março e que encontra mais detalhada no blogue. 
                                               
«Os padres Aquaviva e Monserrate oferecem ao imperador mogol Akbar (1542-1605) a erudita e magnífica Bíblia Poliglota da oficina  de Christophe Plantin, preparada pelo sábio humanista Benito Arias Montano, neste dia 3 de Março de 1580, em Fatehpur Sikri, Índia numa encadernação fechada em ouro, com as belas gravuras da escola flamenga de Quentin Matsijs que, copiadas e adaptadas, entrarão imediatamente na simbólica artística imperial mogol. O imperador Akbar, na demanda da religião universal, recebe este Livro sagrado, com a devoção dum discípulo ardente: tira o turbante e coloca-o sobre a cabeça, depois aperta-o contra o peito e por fim beija-o.» Advirta-se que a imagem que se segue algo seca é provavelmente fruto da visão narrativa ocidental diminuidora do Oriente, e já então manipuladora como nos dias de hoje se vê tão exagerada e opressivamente nos últimos tempos:
Vamos então ao soneto, não de Akbar, que era analfabeto mas profundamente sábio e pioneiro na sua busca de uma unidade supra-religiosa e nacional (com a Din-i Ilai, a Religião Divina que fundou), sendo o seu neto, Dara Shikoh, esse sim um mestre da poesia e do comparativismo religioso, mas de Christophe Plantin, e transcrevemos primeiro em francês e depois na minha rápida tradução portuguesa, com duas ou três palavras melhoráveis...
 
    Le Bonheur de Ce monde
 
Avoir une maison commode, propre et belle,
Un jardin tapissé d'espaliers odorans,
Des fruits, d'excellent vin, peu de train, peu d'enfans,
Posseder seul sans bruit une femme fidèle,

N'avoir dettes, amour, ni procès, ni querelle,
Ni de partage à faire avecque ses parens,
Se contenter de peu, n'espérer rien des Grands,
Régler tous ses desseins sur un juste modèle,

Vivre avecque franchise et sans ambition,
S'adonner sans scrupule à la dévotion,
Dompter ses passions, les rendre obéissantes,

Conserver l'esprit libre, et le jugement fort,
Dire son chapelet en cultivant ses entes,
C'est attendre chez soi bien doucement la mort. 

A Felicidade neste mundo 

Ter uma casa cómoda, limpa e bela,
Um jardim atapetado de socalcos fragrantes,
Frutos, excelente vinho,pouca pressa, poucas crianças,
Possuir só, silenciosamente, uma mulher fiel.

Não ter dívidas, amores, nem processo nem querelas,
Nem partilhas a fazer com parentes,
Contentar-se com pouco, não esperar nada dos Grandes,
Regrar todos os seus desígnios por um modelo justo.

Viver só com franqueza e sem ambição,
Dar-se sem escrúpulos à devoção,
Dominar as suas paixões, torná-las obedientes.
 
Conservar a alma livre e o julgamento forte,
Recitar o seu rosário cultivando os seus entes,
É esperar em sua casa muito docemente a morte.»

Saibamos viver os mais felizes possível, e fazendo os outros felizes, evitando falsidades e confrontos, traições  e opressões  pois cada ser, cada grupo, é uma caravana que passa rumo ao seu Oriente, ao seu Além,  e a caravanserai hospitaleira ou satsanga dos amigas e amigas de Deus de cada um de nós é necessariamente para poucos seres afins. Aprofundemos então com eles os mistérios da existência e não deixemos dispersar e polemizar, manipular e subanimalizar... Seres livres e lúcidos no Caminho Divino...
Nestes dias em que o Caminho e a realização espiritual são tão desfigurados  por tanto comercialismo do esoterismo, da new age, da cura, dos satguruss e visvhagurus, dos anjos e das seitas e religiões, tentemos discernir bem o que se nos oferece ou vende. E espero conseguir  avançar um dia com mais sabedoria persa ou iraniana elevada,  comentada... Nur...

quarta-feira, 2 de março de 2022

Dalila Pereira da Costa: homenagem de coração, no dez anos da sua partida para a Terra Lúcida. E acrescentado.

Este texto foi escrito após a saída do corpo físico da Dalila Pereira da Costa, já só em corpo espiritual rumo aos mundos mais luminosos que sempre sentiu e intuiu, demandou e amou. Não fora ainda publicado, pois pensava completá-lo, o que faço hoje, 2.III.2022, levemente ampliado, quando se comemoram exactamente dez anos da sua entrada nos maravilhosos mundos subtis e espirituais, onde ela merecidamente estará certamente muito bem. No seu 105º aniversário, a 4-III-23, foi de novo relido e melhorado...

                                                

Dalila Pereira da Costa, uma das últimas grandes vates portuguesas, partiu...
Dalila Pereira da Costa, notável escritora, poetisa, ensaísta, jardineira, celtista, católica, mística e gnóstica, acaba de deixar a Terra e a sua bela casa ajardinada na Av. 5 de Outubro, no Porto, palco de tantas
conversas, lanches, visitas ao jardim e à sua estufa e plantas, e algumas meditações...
As suas múltiplas obras
espirituais, a sua clariaudiência nocturna, a sua bondade, o seu acrisolado amor a Maria mãe de Jesus, aos Anjos e Arcanjos e a Portugal, à Sabedoria perene e a uma melhor união entre o Ocidente e o Oriente, certamente perpetuar-se-ão em alguns dos seus leitores e amigos...
Nascida a 4 de Março de 1918 no Porto, de ramos de família com raízes durienses e irlandeses, licenciou-se em Letras na Universidade de Coimbra em 1944, onde recebeu o magistério de Joaquim de Carvalho, Damião de Peres e Torquato de Sousa Soares (este tendo-o eu ainda visitado em sua casa a conselho de Dalila), e manteve uma ligação forte com os ideais e os homens da Renascença Portuguesa, fundada no dealbar da República por Leonardo Coimbra, Teixeira de Pascoaes e Jaime Cortesão, grandes almas que cultivaram não só os bens e valores portugueses pelo amor, a saudade, a arte, a ciência, o tradicionalismo e patriotismo, como genialmente se lançaram em voos de criatividade literária e investigação filosófica e mesmo espiritual, em especial  Leonardo Coimbra, Teixeira de Pascoaes e Jaime Cortesão. Discípulos destes, e muito amigos de Dalila, foram alguns valiosos pensadores, e destacarei dois com quem convivi mais amistosamente ao longo de alguns anos:  Sant'Anna Dionísio (1902-1991) e Agostinho da Silva (1906-1994).

Sant'Anna Dionísio, Dalila Pereira da Costa e Pedro Teixeira da Mota. Capela de Rio Mau.

A valorização da mitologia, da poesia, da filosofia e da mística como vias de salvação ou de iniciação foi uma das suas ideias forças  vectorizantes da sua vida e obra, e num dos seus bons livros sobre a Tradição Espiritual Portuguesa, A Nau e o Graal, e pioneiro pois de 1978, defende o conhecimento como acto total de um ser total: «Em alma, corpo e espírito. Onde a realidade será conhecida partilhadamente pelo pensamento e sentimento. Onde o coração é o órgão eminente do conhecimento. Em participação com a Realidade». Vivermos mais conscientes do coração espiritual e da sua irradiação de Amor, diremos nós hoje, no seu aniversário de 2023, relendo-a, invocando-a...

Na realidade podemos dizer acertadamente que Dalila Pereira da Costa era um ser que levava consigo  intima, discreta e como que curvadamente o coração feito graal, ou caminho para o Graal, pela sensibilidade e capacidade de empatia e de sintonização subtil grandes.
Estudiosa, atenta e sensível aos símbolos e forças manifestados na saga dos Descobrimentos, destacou a Cruz de Cristo, o Escudo real, a Esfera armilar e o Graal como símbolos vivos e criadores agindo sobre os seres "com a força de verdadeiros mandalas. Ideogramas do homem e do cosmos, sem cessar em todos os instantes e ubiquamente, durante sua obra no mundo - mostrando-lhe e repetindo-lhe o modelo
do Todo organizado, para essa sua obra: como integração última".
Para esta aspiração e crença no regresso à Divindade, à Pátria-Mátria original, ao
Paraíso, a mundo espiritual primevo, contribuía a sua forte capacidade de recuperar memória subtil, que lhe permitia recolher imagens contidas ou ressoantes como memórias nos locais que visitava ou mais amava (tal o seu Porto) ou mesmo recuar ao mundo espiritual antes da queda no corpo físico de origem animal, ou mesmo ainda como ela acreditava, a vidas passadas. 

Uma visão da maior parte dos livros da Dalila por ordem cronológica
Na sua vasta obra de cerca de trinta livros Dalila Pereira da Costa fez uma revisitação erudita, espiritual e imaginativa das grandes linhas de força, temas, autores, mitos e realidades do território português ao longo dos séculos, destacando-se as aproximações bastante pioneiras à espiritualidade de Fernando Pessoa (O Esoterismo de Fernando Pessoa, 1977), ou ainda a Camões, Gil Vicente, Antero de Quental,  místicos e místicas portuguesas, participantes do movimento da Renascença Portuguesa, dos povos e grandes seres que aqui passaram e as influências que trouxeram, integrando tal na vasta tapeçaria dos movimentos europeus e planetários tanto históricos como míticos e espirituais.
Algumas dessas obras, como dissemos, são incursões no mundo
imaginal, em que Dalila inspirada por captações em modos subtis de imagens, palavras, diálogos, partilha tal em forma poética, sendo por isso de difícil hermenêutica,  de leitura compreendida na sua pluridimensionalidade, já que convergiam memória fundíssima, sonhos, desejos, imaginação, receios e visões. Levam títulos como Jardim de Alvorada (1981), A Cidade e o Rio (1982), Hora de Prima (1983), Mensagem do Anjo da Guarda (1993), Portugal Renascido (2000).
De conteúdo mais íntimo, vivencial e espiritual, em que tenta
compreender os seus quatro grandes momentos visionários e  extáticos são A Força do Mundo, de 1972, que publicara aliás antes em 1970 em francês sob o título L' Experience de l'Extase na revista Esprit, e os Instantes nas estações da Vida, de 1999, momentos que ela em geral, muito discreta, não falava interessando-se mais sobre os nossos trabalhos e realizações, e partilhando as suas angustias pela destruição da terra e alma portuguesa.

As últimas obras de Dalila Pereira da Costa destacam-se pela sua crescente mestria do comparativismo religioso e espiritual, a par dum aprofundamento das suas próprias capacidade de compreensão interior e algumas delas são incursões valiosas nos domínios subtis da alma, do espírito e da alma mundi. Destacaremos a Corografia Sagrada, Temas Portugueses, 1993, dedicada às raízes antigas, à sacralidade das serras, a tradições e festas  de portugueses, e a seres como Gil Vicente, Fernão Mendes Pinto, Antero de Quental, Raul Brandão, Camilo Pessanha, tendo um dos capítulos "Tripla peregrinação por Terras da Beira Alta e Trás os Montes" a particularidade de eu ter participado com ela e o sr. Acácio, seu caseiro no Douro, em Outubro de 1981, em  visitações de S. Pedro de Balsemão, Panóias, Cárquere.  
Também bem valiosos são Entre  Desengano e Esperança. Ensaios Portugueses, 1996, e Dos Mundos Contíguos, 1999, que já abordámos neste blogue, particularmente este último pelas suas interrogações face à fenomenologia das dimensões subtis e espirituais dos seres e do universo e pelo seu conhecimento das tradições não só portuguesas e cristãs mas também celtas (e houve nela com o decorrer do tempo um crescimento da apreciação das fontes pagãs),  indianas  e iranianas; e mesmo de certas noções da física moderna se soube apropriar, algo bem necessário de se verificar mas raro.

Já os seus dois últimos livros, quase in folios  de 139 e 105 páginas  Contemplação dos Painéis, 2004, e As Margens sacralizadas do Douro através de vários cultos, 2206, são notáveis tanto pelo pioneirismo das abordagens tingidas de certa clarividência  como pelo facto de que os escreve e publica com mais de oitenta anos de idade e ainda com uma alma  controlando e utilizando harmoniosamente o cérebro e o corpo, fruto de um modo de vida amante da Natureza, sóbrio, recolhido, estudioso, devoto, espiritual, o que nos deve impulsionar em tal e sua senda, bem característica da Tradição Espiritual Portuguesa...

Transcrevemos o índice desta sua última obra, sem dúvida altamente recomendável: I Parte: A Mitologia da Água. O Poder Oracular da Água. Dois Santuários do Douro, Cachão da Rapa e Pala Pinta. O Sol e a Serpente. A Vinha e os Cultos Mistéricos.  O Xamã nas margens do Côa e Douro. O Eremita. As Núpcias da Terra e do Céu. Uma reintegração Realizada. História e Trans-História. Tótem. Tribo e Genealogia. O Primeiro Santuário Português do Douro. E a Primeira e Última Cidade do Douro, A Fronteira, As Muralhas. II Parte. À Irmã Galiza com saudades: A Lua e a Serpente.  Duas Fatais Heranças. Os Filhos da Deusa Lusina. Arqueologia e Filosofia Portuguesas. A Saudade na Filosofia Galaico-Portuguesa.
Gerou ainda da sua alma tão luminosa e serena uma correspondência imensa, já que conservava cópias das cartas enviadas mais importantes, a qual está a ser devidamente tratada para brevemente sair a público. Conservo uma dezenas de cartas e postais dela, que espero partilhar também. 

A Dalila a ser entrevistada pela Sandra Pinheiro...
 No ano de 2018 comemorou-se na Universidade Católica do Porto os 100 anos do seu nascimento e em 2020 saíram as actas: Dalila Pereira da Costa. No centenário do nascimento, 1918-2018,  440 páginas de numerosas contribuições onde encontra a minha, aliás transcrita levemente melhorada neste blogue...                                                                   

Fotografia na sua biblioteca, na sala térrea, onde se encontravam os seus dois ou três mil livros e  em geral recebia as pessoas amigas, adornada com bastantes fotografias dos seus mestres e amigos, objectos oferecidos e, às vezes, com o seu cãozito a saltitar esfuziantemente, numa imagem bela e significativa, durante um diálogo entrevista com Sandra Pinheiro, realizado em 21-VII-2009, três anos antes  de ela nos deixar fisicamente, mas não subtilmente pois está connosco na comunhão do corpo místico da Humanidade, uma realidade da qual deveríamos estar mais cientes e, logo, espiritualmente mais alargadamente conscientes.
Que o Graal divino arda poderosamente na sua alma e os mestres e
Anjos estejam com ela, e que como sibila de Portugal, da Natureza como manifestação divina e da espiritualidade unitiva, possa ela inspirar ainda muitos seres. Muita luz e amor na Dalila e, através dela e suas obras, em nós e no mundo...

terça-feira, 1 de março de 2022

O conflito entre a Ucrânia e a Rússia visto como o campo de batalha de Kurukshetra. Qual é o dharma que nos compete, conforme os ensinamentos da Bhagavad Gita?

"A guerra é agradável para os que a desconhecem" é um admirável dito de Erasmo, um dos pais da verdadeira Europa, a humanista, ética, religiosa ou espiritual,  em latim, a língua franca de então, dulce bellum  inexpertis (e que ele ao longo da sua vida foi ampliando nos Adágios com imensa divulgação, adesão e sucesso) e por isso, após tanta história e guerra (e alguma recente como a da Jugoslávia)  não se esperava que ela se manifestasse tão claramente, e não insidiosa e disfarçadamente, na civilizada e industrializada Europa, ainda bastante combalida dos efeitos pandémicos e sistémicos opressivos e destrutivos do Covid. Mas aconteceu e isso tem provocado naturalmente grande agitação ou mesmo furor nos "media" e logo comoção, indignação e furor-temor nas pessoas, talvez até desproporcionadamente já que a guerra continua a acontecer em várias partes do globo e em geral graças ao fornecimento de armas e apoio anglo-saxónico e europeu, quando não há mesmo ocupação indesejada, tal como sucede impunemente na Síria e de certo modo no Iraque.  

Ora tal como o mais importante texto da religião e da espiritualidade indiana, comparável entre nós aos Evangelhos, mas bem mais elevado ou profundo em vários aspectos, a Bhagavad Gita, nasce no começo da imensa batalha de Kurukshetra, entre parentes, ao ser dado por Sri Krishna em forma de diálogo a Arjuna   para o impulsionar a cumprir o seu dever de lutar pelo Dharma, o Dever, a Ordem e Harmonia Cósmica, lembrando-lhe até que as almas são imortais e que portanto quando as forças "asuricas" ou do mal querem prevalecer, então há que lutar, Ele próprio, avatar, descendo à Terra, ou às pessoas, para enfrentar tais forças ignorantes e destrutivas, assim também nós vemos hoje nos dois lados em conflito razões suficientes para em ambos haver muitas pessoas a pensar que estão a lutar pela verdade, a justiça e a liberdade e, logo a cumprir o seu dharma ou dever.  

A nós, não ucranianos nem russos, algo distantes geograficamente, embora os nacionalismo, europeísmos e Natos sejam frequentemente imperialistas ou globalistas (e daí que estejam a atiçar o conflito fornecendo armamento e provocando certamente mais mortes de ambos os lados), apenas  competir-nos-á esforçar-nos por mantermo-nos serenos, alinhados verticalmente, e estimular as possibilidades de diálogo, para que as negociações levem ao entendimento e ao fim da guerra, tanto mais que os pontos em questão são poucos e devem ser solucionados pela razão, o bom senso, o pragmatismo ou mesmo o amor compaixão, já que Humanidade é una e a Europa é una, de Portugal à Rússia...
Sabemos porém que será difícil porque há uma guerra cada
vez maior do império norte-americano ou anglo-saxónico, e da sua NATO, mais da submetida direcção da União Europeia,  contra a Rússia e a China, seus principais rivais no poderio geo-estratégico, económico e ideológico. 

                                                Nenhuma descrição disponível.

 E também porque a violência e a morte  se tornaram banais, seja virtualmente em filmes (tal a manipuladora indústria hollywoodesca) e vídeos, seja realmente em conflitos e assassínios,  nas prisões ou cidades (como recentemente vimos perpetrado cobardemente sobre o heróico vencedor dos terroristas do ISIL  e mártir Qasem Soleimani, em cima na fotografia), pelo que a vida humana cada vez conta menos para a generalidade dos governos e até para o público. E é mais quando  um cidadão norte-americano ou inglês é molestado algures, ou então os seus interesses são ameaçados, que se fazem logo levantar vozes e ameaças dos que são empáticos ou arregimentados com os que até há pouco eram os senhores únicos do mundo, com um palmarés invejável de guerras começadas e vencidas, e em que morreram e ficaram feridos e traumatizados milhões de seres e a terra adoentada e cancerizada. Daí que no Ocidente anglo-saxonizado, mas não só, haja quem esteja a querer fazer uma espécie de nova guerra civil espanhola, com os mais explosivos ou mesmo fanáticos alistando-se já em armadas para irem lutar por um ou outro lado.

                                             

O ensinamento de Sri Krishna, uma das faces divinas mais adorada no planeta, é ainda hoje uma fonte fundamental de clarificação, harmonização  e aprofundamento psicológico e espiritual pelo que a leitura educativa da Bhagavad Gita  seria muito recomendada a todos, e em especial aos políticos warmongers ou belicosos, tanto mais que existem muitas edições no mercado (entre nós as Publicações Maitreya tem duas), para que diminua a sua ignorância e violência incorrecta, pois a verdadeira guerra santa ou jihad, tal como Henry Corbin, Louis Massignon ou o nosso amigo Agostinho da Silva nos explicaram com sabedoria, é contra os nossos instintos e ego, vaidades e ambições, arrogâncias e egoísmos, preguiças, invejas e infidelidades, e visa o objectivo mais elevado de todo o ser humano na Terra, conforme a maioria das vias religiosas e espirituais: controle ou unificação das nossas forças instintivas e psíquicas e  a religação a Deus. E logo uma vida mais harmoniosa, luminosa, criativa, solidária e em amor.

E abrindo agora uma das versões que possuo da tão valiosa Bhagavad Gita, fazendo assim o istixara persa, pelo qual os iranianos, após breve oração, abrem à sorte as páginas não só do Alcorão mas sobretudo dos diwans de Saadi e Hafiz, como fiz e vi fazer in loco,  leio da tradução do sábio Jean Herbert da versão do famoso Sri Aurobindo (e que o meu irmão Luís traduziu há algumas décadas e mais recentemente o amigo Rui Fazenda dactilografou), na página 97, o  versículo 11 do cap. X, no qual Sri Krishna promete aos seres que o verdadeiramente amarem e merecerem que «por amor-compaixão a eles, habito no seu eu  e destruo pela lâmpada resplandecente do conhecimento as trevas nascidas da ignorância». 

É pois sobretudo através desta religação do ser humano com o espírito, com o Ser Divino, ou, se quisermos, apenas o Bem, a Justiça e a Paz,  que a fraternidade humana mais pacífica, solidária e harmoniosa vencerá a necessidade férrea das explorações e violências, egoísmos e ódios, conflitos e guerras.
Possa tal acontecer rapidamente na Ucrânia e que a paz justa
que a maioria dos russos e ucranianos tanto desejam se concretize, mesmo que os senhores financeiros do mundo e os "media", não satisfeitos com os lucros e razias psicológicas da covinagem, continuem a estimular manifestações inúteis ou a propagandear por si, ou por comentadores alinhados-vendidos, o slogan do mata e esfola, ou a demonização da Rússia, muito menos desequilibrada e bem mais europeia que a USA, a NATO, e de certo modo até que o Reino Unido desde que este saiu da União Europeia e a vê como uma concorrente.

Saibamos ver o menos possível, ou não ver mesmo televisão, nem perder demasiado tempo com as notícias sempre distorcidas do que brevemente passará, e para o qual pouco podemos fazer, a não ser intensificarmos o nosso despertar individual e imortal e avançarmos persistentemente no caminho da harmonia, do bem e da realização espiritual, tal como Sri Krishna ou o sábio indiano que escreveu ou intuiu a incomparavelmente preciosa Bhagavad Gita nos ensinam, com conselhos simples mas tão verdadeiros, eficazes e perenes, tal este colhido de novo por istixara, e numa tradução que espero ainda vir a melhorar por mim próprio:

Cap. XIII. 11.12: «Uma alma meditativa virada para a solidão e que se afasta do barulho vão das multidões e das assembleias de homens, uma percepção filosófica do verdadeiro sentido e dos vastos princípios da existência, uma continuidade tranquila de conhecimento e de luz interiores espirituais, o yoga de uma devoção sem desfalecimento, o amor de Deus, a adoração constante e profunda da Presença universal e eterna - tal é declarado o Conhecimento; tudo o que é oposto a tal é ignorância»....

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Uma biografia de Anton Rubinstein por Higino da Costa Paulino, na "Gazeta Musical, Jornal Ilustrado Theatros, Musica e Bellas Artes", com a sua Sinfonia No. 2 in C major Op. 42 'Ocean'.

Apesar de já ter mais de uma centena de anos a biografia do grande compositor e pianista do final do século XIX António Rubinstein, escrita pelo artista, comediógrafo e musicólogo Higino Augusto Mascarenhas da Costa Paulino para a Gazeta Musical, Jornal Ilustrado Theatros, Musica e Bellas Artes e dada à luz a 15 de Abril de 1884, resolvi ressuscitá-la das páginas já esquecidas e  transcrevê-la tanto para se conhecer a vida de um  génio musical como o que o seu contemporâneo e meu bisavô materno Higino, ou Gino conforme assinava, que o ouviu tocar no teatro S. Carlos em Lisboa, a 14 de Março de 1881,  nos transmitiu na sua sensibilidade e linguagem artística portuguesa de final do século XIX.
                                  
Higino da Costa Paulino irá posteriormente viver e trabalhar para a Índia Portuguesa, onde casou com Maria Helena de Noronha e educou sábia e artisticamente os seus filhos e filhas e, em récitas e representações teatrais, várias outras crianças de Panjim durante trinta anos, até regressar de novo à urbe lisboeta, a Campo de Ourique. Oiçamo-lo segundo a sua anímica captação e descrição do mundo,  do ser humano e de Rubinstein...

                         

«Passados são três anos depois que o notável artista, de relance, se apresentou ao público de Lisboa. Quase nem tempo houve para admirar aquele engenho excepcional, que a Europa proclama, e que uma vez, por distração, se lembrou de poisar no palco do nosso primeiro teatro [S. Carlos], para quase de improviso erguer o voo a tão eminente altura, que por longas horas lhe aguardamos a descida, como se possível nos fora domesticar os génios, quando a eles se alia a mais requintada excentricidade.
Para António Rubinstein não existe no mundo ideal que o atraia, subjugue e convença, senão a arte! É a sua mãe estremecida, a sua esposa devotada, a sua filha carinhosa, numa palavra é a sua família dilecta! Fora daqui figura simplesmente um homem, cuja vitalidade se denuncia pelo pulsar das artérias, pelo movimento dum corpo que se agita, muitas vezes em desarmonia com os preceitos que a sociedade impõe.
Poucos indivíduos haverá cuja excentricidade ultrapassa aquela de que se reveste o espírito do genial artista que hoje tentamos biografar.
Em Espanha recusou fazer-se ouvir numa peça a quatro mãos com a rainha D. Cristina, alegando, com a maior sem cerimónia, que nunca tocara com amadores; em Dinamarca, convidado a tomar parte num concerto, no palácio real, saiu precipitadamente, pela simples razão de que, tendo chegado à hora aprazada, lhe disseram que sua majestade se demorava ainda o tempo preciso de concluir uma partida de whist; em Colónia, executou o programa de costas voltadas para cinco ou seis mil pessoas, pelo facto de que, entre esse número avultado de espectadores se achava o insigne o insigne professor Hiller, com quem ele tivera uma pequena discussão; de Portugal só levou recordações de Sintra, adivinhando no nosso público um temperamento anti-musical de tal ordem, que esteve para terminar a meio do concerto.
À semelhança destes, muitos casos se têm dado na carreira artística deste homem notável, e que são o cunho evidente do seu génio particular, que não é exactamente aquele que nos cumpre descrever. 
Desenho de Bordalo Pinheiro, amigo de Higino, para este número da Gazeta.

António Rubinstein, [Anton Grigoryevich Rubinstein, Антон Григорьевич Рубинштейн, ]filho de um negociante de lápis, estabelecido em Moscovo, nasceu em Wechwotynez [Vikhvatinets, Baltsky Uyezd], povoação da Moldávia, nas fronteiras russas, aos 28 de Novembro de 1829.
Foi inquestionavelmente devido a sua mãe, uma boa pianista, a quem o filho não desamparava um momento sequer, que António Rubinstein deveu a sua educação musical, e tanto assim que em 1835 começou a instruí-lo nos rudimentos desta arte. Foram de tal ordem os progressos patenteados por essa criança, que a mãe, reconhecendo-se insuficiente para mais amplamente os dilatar, chamou em seu auxílio Villoing, primeiro professor de piano em Moscovo, o único a quem Rubinstein deve a sua perfeita ciência neste instrumento. Logo aos nove anos se fez ouvir em um concerto, causando geral impressão o seu talento precoce. Motivos imperiosos obrigaram Villoing a ausentar-se para Paris e, renitente em não ceder o seu discípulo à vigilância de outro professor, resolveu levá-lo consigo para a capital da França. Aí, em 1840, instigado por grande número de notabilidades, Rubinstein deu um concerto, executando um reportório composto dos mais difíceis trechos de Bach, Beethoven, Chopin, Hummel e Liszt. Foi por conselho deste último que professor e discípulo se decidiram a visitar a Alemanha, percorrendo em seguida Holanda, Inglaterra, Suíça e Dinamarca, promovendo por toda a parte a mais justificada admiração. De volta à Rússia em 1843, aí se demorou pelo espaço de um ano, não descansando de promover concertos, onde sempre foi ouvido com inúmeras provas de simpatia. Por esta época já seu irmão Nicolau, uma criança de seis anos, denotava extraordinária propensão para a música, e tanto assim que Madame Rubinstein, em face de mais um nome glorioso na sua família, resolveu partir para Berlim acompanhada de seus dois filhos, tomando a prévia resolução de consultar em primeiro lugar o célebre Meyerbeer, o que levou a efeito, e que teve por complemento, a entrega de António e Nicolau aos cuidados do professor Dehn, que, durante dois anos, os instruiu, com o máximo desvelo, em harmonia e contraponto. Achando-se gravemente enfermo em Moscovo o pai dos jovens artistas, sua esposa teve de voltar à Rússia em 1846, assistindo ainda aos derradeiros momentos desse honrado homem, que baixava à sepultura sem que a Providência lhe permitisse ser testemunho da forma gloriosa com o que o seu descendente lhe engrandeceria o nome.

Obrigado a dedicar-se ao comércio, Nicolau Rubinstein não teve ocasião de desenvolver-se na arte para a qual tão vivas tendências demonstrara, finalizando por consequência nessa época os seus estudos. António permaneceu em Viena, conseguindo com extrema felicidade prosseguir na sua auspiciosa carreira. Decorrido um ano mais empreendeu uma viagem à Hungria, acompanhado do flautista Heindl, formando em seguida projecto de se transportar à América, pensamento este não realizado, pela intervenção dos numerosos admiradores do seu talento, que obstaram à partida. Em vista pois desta prova do elevado apreço em que era reputada a inteligência de Rubinstein, o artista decidiu-se a permanecer na capital da Prússia, dando lições de piano, ao mesmo tempo que se entregava ao estudo da composição. Em pouco tempo esta nova fase da sua vasta capacidade lhes alcançou os foros de nomeada, e tanto assim que pôs de parte o piano, no qual já não encontrava segredos de espécie alguma. As revoluções de 1848 obrigaram-no a passar de novo à Rússia, fixando então a sua residência em S. Petersburgo.
Foi em 1849, que escreveu a primeira ópera o Dimitri, três actos representados em 1852. Teve esta composição um êxito tão satisfatório, que a Grã-duqueza Helena, dotada de uma alma extremamente artística, fixou as suas atenções sobre o autor, e favoráveis de tal maneira, que António Rubinstein passou a viver no sumptuoso palácio de Kamenoiostrow, trabalhando ali
desafogadamente e rodeado dos mais apetecíveis confortos.

                                   

Durante essa época escreveu A Vingança, Os Caçadores da Sibéria e O Louco da Aldeia que, conquanto perfeitas  no estilo, na instrumentação e no colorido, cópia dos costumes da Rússia, não tiveram êxito fora do vulgar.
Em 1854, os conde de Wielhorski, generosos protectores dos
artistas, e ainda hoje dos primeiros  amigos de Anton Rubinstein, aconselharam o compositor a visitar os melhores países estrangeiros, profundar as suas escolas, consultar os melhores mestres, afim de tornar mais evidente a fama desse nome que prometia honrar a sua pátria. À grã-duqueza Helena deveu ainda a Rubinstein o favor de obter os meios para a realização dessa viagem que teve começo em Maio do mesmo ano, e na qual o artista, depois da sua apresentação em Mayence, percorreu toda a Alemanha, sempre vitorioso em brilhantes recepções. Em 1855 foi a Paris, organizando na sala Herz alguns concertos a grande orquestra, causando viva impressão o desenvolvimento desse talento que os parisienses tanto haviam festejado no seu despontar. De Paris seguiu para Londres, onde os seus sucessos promoveram um ruído tal, que lhe alcançaram o diploma de pianista na corte da Rússia. De 1856 a 1857 não descansou de percorrer  as principais cidades da França e da Inglaterra coroado sempre pela profusão dos aplausos e lucros. Era então de uma rapidez vertiginosa nas composições, e como prova, basta citar-se que de 1848 a 1857  escreveu nada menos de 80 obras, cuja maior parte nada têm de pequenas. Nos começos de 1859 deu concertos em Viena, depois em Pesth, excitando transportes de admiração. Voltando a Paris em abril do mesmo ano, fez-se ouvir de novo na sala Herz com uma orquestra que executou a maioria das suas mais difíceis composições. Feita a saison na capital da França, partiu para Londres, atravessou a Rússia, sempre em tournée artística, e parou em Moscovo, nessa cidade tão risonha às suas recordações de infância, e onde viviam ainda os poucos membros da sua família.
Em 1859 efectuou novas viagens a Viena, Londres, S. Petersburgo, e em 23 de fevereiro de 1861, António Rubinstein fazia representar no teatro da Porta Corinthia, em Viena, a opera em 3 actos As crianças de Landes que não aumentaram a nomeada do autor.
Alguns outros trabalhos de suma importância se seguiram a este e
que classificariam o maestro no mundo da arte, como uma organização musical da mais elevada essência; as suas obras eram até então repassadas de um sentimento de melodia não vulgar, e o ser harmónico, abundante de interesse, adquiria sucessos inesperados.
Rubinstein escrevia nessa época com extrema ligeireza, facto que deteriorava um pouco o plano das suas produções.

                              

Hoje o afamado maestro, verdadeiramente correcto, à custa de um estudo profundo e aturado, das pequenas faltas que algumas vezes tentaram afastá-lo do melhor caminho, coagindo-o a buscar nas modulações repetidas e na exageração dos processos os efeitos imaginados, é um artista célebre que a Europa inteira admira, e que no Daemon e no Nero alcançou triunfantemente a glória imorredoira
a que o seu talento tinha jus.
Foi em 1875, no teatro da opera em S. Petersburgo que o Daemon subiu à cena pela primeira vez. A ovação feita nessa ocasião ao maestro foi enorme, e mais grandiosa se tornou quando em 1881 no Convent Garden em Londres esta ópera foi interpretada pelos notáveis artistas Albani, Trebelli e Lassale.
O característico, o colorido e a forma rítmica, melodiosa e interessante, ornamentos essenciais do Daemon, conquistaram a António Rubinstein um lugar proeminente entre os primeiros compositores.
Neste mesmo ano, quando a celebridade parecia sorrir-lhe a cada
passo, quando o íntimo se lhe replectava de incomparável ventura, quando alfim a recompensa a tantos anos de um trabalho pertinaz, consecutivo, surgia lisonjeira, um golpe cruel, impiedoso, veio roubá-la à realidade dos prismas encantadores, para o abismar na realidade dos transes dolorosos. Nicolau Rubinstein, o irmão que ele tanto adorava, e por quem nutria uma dedicação excessiva, finava-se, vítima de uma tuberculose pulmonar. António ainda correu junto do leito do moribundo, porém, apenas abraçou um cadáver.
O desgosto magoou-o de tal forma, que o artista, de então para cá, mais reservou o seu carácter já triste e melancólico.

                                        

A arte, no seu majestoso poderio não sofreu que a violência de um
golpe prostrasse aquele, que os louros da glória não conseguiram adormecer. E tanto assim que há pouco mais de um mês a ópera italiana de S. Petersburgo engrinaldava de novo o seu templo para prestar ao talento de António Rubinstein a maior das ovações de que há memória na capital da Rússia. O Nero confirmava mais uma vez a pujança dessa concepção grandiosa que, desde tenros anos labuta em proveito  da mais sublime das artes - a música. Desde o czar a toda a corte, até ao mais humilde dos espectadores todos de pé aplaudiam essa obra maravilhosa, acenando com os lenços, e festejando o autor, que debaixo da profusa chuva de oiro e flores, agradecia comovido. Durand, Repetto, Stahl, Cotogni, Silva, intérpretes do spartito, e os demais artistas da companhia ofereceram ao maestro uma riquíssima coroa de prata, proferindo nesse momento o empresário frases de louvor, que decerto servirão de eterna memória a António Rubinstein.
Há quarenta e dois anos, uma das opiniões mais autorizadas da
Alemanha, ouvindo num pequeno concerto o pequeno artista, profetizava que o seu futuro havia de associar-se à arte como o mais sublime, puro e nobre que a natureza criou. O sábio doutor Bechar há vinte e quatro anos que morreu, mas o seu vaticínio atinge a eminência do alvo a que se dirigia.
Eis pois os traços biográficos que podemos coligir para descrever a existência artística de uma das primeiras notabilidades da época.
Como pianista teve o público português ocasião de adivinhar, ainda
que em pouca horas, quanto é poderosa essa inteligência musical, que não produz somente a bravura, a agilidade, a expressão estudada, as quais receberam  umas nuances artificiais, mas também o sentimento vivo, próprio, brotando do íntimo do coração, que se envolve nos sons, aprofunda-os e, inspirando-se, torna-se com eles um organismo incomparável, sublime! Esta foi sem dúvida a impressão legada aos portugueses pelo talento do célebre virtuose António Rubinstein.»
Gino. 

Anote-se que há outra biografia de Rubinstein e a reconstituição do seu concerto pelo insigne musicólogo Michel'Angelo Lambertini, na revista Arte Musical, nº 25, de 1900, online em http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/Periodicos/ArteMusical/1900/N25/N25_master /ArteMusical_A2_N25_15Jan1900.pdf 

*** Muita Luz e Amor Divinos em Anton Rubinstein, Higino da Costa Paulino e Michel'Angelo Lambertini, e que nos possam inspirar...

                      

Sabedoria Persa (19). "Harmoniza-te bem se queres ser Luz, em ti e nos outros", de Saadi Shirazi, comentado por Pedro Teixeira da Mota e com belo vídeo de poema em farsi.

                             
                    O tão inspirador mausoléu de Saadi Sherazi, onde estive em peregrinação e meditação.

É do imortal Saadi (1210-1291), da cidade Shiraz mas muito viajado na sua primeira metade de vida (de acordo com o preceito que deu: "vai e viaja neste mundo, antes que venha o dia de saíres dele"), com Ferdowsi (940-1019),  Khayyam (1048-1131), Maulana Rumi (1207-1273) e Hafiz (1320-1390) os quatro escritores mais amados do Irão, autor dos famosos Gulistan e Bostam, que serão lidos perenemente (e pode ouvir um deles no vídeo anexado desde já) tal a sabedoria, humor e amor que deles se destila, a verdade  proposta para meditação, provavelmente extraída de uma das obras referidas que mesclam harmoniosamente poemas e pequenos comentários e histórias muito instrutivas, tendo até eu trabalhado na tradução de alguns destes textos tão impregnados da unidade da vida em lúcido amor e compaixão, quando estive no Irão, e que espero vir um dia a encontrar uma editora interessada.

"O sábio cujos hábitos são desregrados, assemelha-se a um cego que leva um archote com o qual ilumina os outros, sem poder iluminar-se a si mesmo."

   Comentário, escrito há já alguns anos e agora levemente ampliado:
Se o teu modo de vida não for harmonioso, se tiveres ainda vícios ou defeitos, se perdes a calma ou cabeça e te ofendes ou até te irritas , se abusas de certas coisas ou tendências e és negligente de outras, como poderás ser um portador de Luz para os outros, já que o interior da tua própria casa está obscurecida e a luz sepultada?
Se não conseguires contemplar (ou pelo menos invocar) o espírito e adorar o Ser Divino, se a tua oração ou comunhão é curta ou distraída, como podes querer que Ele (ou os seus anjos e mestres) te abençoem, ou que a tua língua ou pena transmitam as Suas maravilhas subtis tão desconhecidas para os que neles não acreditam nem invocam?

Write with the blood of thy heart's love, joyfully.

       Quando sentires (com mais regularidade) o cálice do teu coração a arder permanentemente, então sabe que o Espírito e a Divindade estão a renascer em ti e então só tens de deixar que Ela escolha com quem e como melhor comunicares ou partilhares o seu Amor unitivo, solidário, libertador, de certo modo, ó cavaleiro ou cavaleira do Amor, pelo Graal, jam-e jam, em ti resplandecente...

Equilibra pois bem as tuas posturas e movimentos, sentimentos e pensamentos, alimentação e bebida, sono e vigília, acção e contemplação, fala e silêncio, receber e dar, e certamente que numa vida criativa a Luz ir-se-á intensificando em ti e nos outros iluminando o Caminho e os seus aspectos, seres, energias, mundos rumo à fonte primordial Divina...

                        

domingo, 27 de fevereiro de 2022

A Realização Espiritual, texto em francês de Rishi Atri, traduzido em video e comentado por Pedro Teixeira da Mota.

                                         

 O texto do instrutor ou mestre francês Rishi Atri, um dos meus primeiros e a quem saúdo e agradeço, publicado na Atma Bodha, La revue du Kriya Yoga, nº 15, e que era também da Atma Bodha Satsanga (Associação do Conhecimento do Espírito) foi lido e comentado no vídeo que encontra no fim. Como o tempo de gravação terminou subitamente, o parágrafo final do texto não foi lido nem comentado. De qualquer modo poderá lê-lo, já que partilho neste artigo a digitalização do texto original em francês, e a tradução em português dos últimos parágrafos, dos quais  eu não lera, como disse, o final: 

«Não é sem razão que a primeiro termo da divisa dos iniciados:"saber, querer, ousar, calar", é "saber". Não se trata evidentemente do que podemos juntar dos livros, mas do saber que só a observação e a atenção podem trazer. Os livros podem ser estimuladores úteis, mas não esqueceis que é em vós que se encontra toda a Sabedoria e é em vós que a deveis encontrar. Nenhuma Escritura, por mais sagrada que ela vos pareça, não tem valor senão vivida por vós, re-descoberta por vós na intimidade sublime do Si [Soi, Eu espiritual, Jivatman].

Para atingir a Realização Suprema, Sat Chit Ananda, estai atentos a tudo, fora de vós e em vós. Tal como [o cientista francês] Pasteur pode dizer que "o génio é uma longa paciência", assim também o despertar na Consciência Cósmica é uma longa atenção».

Iniciando-a com a explicação de que a Realização implica sobretudo desconstruirmos ideias, limpar-nos, interiorizar-nos, silenciar-nos, Rishi Atri vai encaminhar-nos para uma caminho simples interior de auto-consciência energética e psíquica, basicamente pela atenção exterior e interior, que conduzirá por fim à contemplação espiritual, do Eu espiritual ou espírito, e a sentir mais a maravilha de Ananda, beatitude, paz, felicidade, tão necessária nos nossos dias violentados e manipulados... Oiçamo-lo...






                           

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Krishnamurti em video: se a Yoga de exercicios desperta a misteriosa kundalini. E como a Yoga Real é a da ética e da mente nova, livre...

Neste interessante vídeo do pensador, pedagogo e mestre sem o querer ser, Jiddu Krishnamurti (1895-1986), vêmo-lo a responder algo contrariado a uma pergunta que alguém da assistência escrevera num papelinho, exclamando mesmo em voz baixa, "que pergunta maluca":

«Com a prática de Yoga, tal como é realizada na Europa e na USA,  ajuda-se o despertar espiritual? É verdade que a prática de Yoga vai despertar uma energia mais profunda, chamada Kundalini?»

Após lê-la, a sua exclamação foi: "Do sublime descemos ao ridículo", mas responderá valiosamente e com alguns aspectos a cogitarmos: 1º considera que esse chamado Yoga, de exercícios para ter bom e saudável corpo por força, disciplina e controle, e para despertar as ditas energias superiores, foi inventado no século XVII e XVII, não dando contudo nenhuma prova ou exemplo de tal, e não me parecendo correcta tal datação, pois sempre houve exercícios muito físicos e faquires.

2º Contrapõe a tal yoga praticado hoje ocidentalmente, a verdadeira Raja Yoga, a Yoga Real, o rei ou rainha das Yogas e cuja essência é levar-se uma vida altamente moral, não moral de acordo com circunstâncias e cultura, mas sim uma verdadeira actividade ética na vida, não ferir, não beber, não drogar-se, ter a quantidade correcta de dormir e de comer, ter pensamento claro, e agir moralmente, fazendo o que é justo. E que esses especialistas que consultou sobre Yoga nunca mencionam fazerem-se exercícios, apenas o andar, nadar, pois o enfâse era o de uma vida altamente moral, com uma mente bem activa. 

Aqui há que reconhecermos que está talvez sem querer a desviar-se da verdade porque o principal texto codificador da milenária Raja Yoga, os Yoga sutras de Patanjali, refere os exercícios físicos e respiratórios (asana e pranayana), ainda que de facto brevissimamente  e apenas como preparativos para  o recolhimento interior, a concentração, a meditação, e a contemplação-unificação-samadhi. Krishnamurti esquece isto tudo e irá saltar para o corresponderia ao samadhi, que verá mais apenas num estado mental limpo e energético.

3º Tendo conversado com muitos especialistas de Yoga, Krishnamurti conclui que lhe disseram que Yoga significa União, unir o superior e o inferior. A Yoga ocidental de exercícios deve ser chamado apenas Exercícios (o que não vende tanto, sugerirá...), mas as pessoas poderão fazer muitos anos desses exercícios que nunca despertarão espiritualmente no interior, nem nessa energia, a que se deu o nome de kundalini, e praticamente nunca encontrou ninguém que realmente falasse por experiência dessa energia kundalini, pois a maioria das pessoas mesmo que se tornaram especialistas falam dela, mas referem-se sempre a um originador mistificador, e apenas sentem certas experiências. Ora esse despertar de mais energia também pode resultar de um bom modo de vida, uma alimentação certa e o respirar correctamente.
Tal só pode acontecer quanto o Eu (Self) não estiver, quando deixar
de existir o sentimento eu, então há uma energia completamente diferente que mantém a mente (mind) fresca, jovem, viva. Tal só acontece quando conseguirmos libertar-nos absolutamente desse sentido de eu, que está sempre em conflito e luta, deseja isto ou não quer aquilo. Havendo tal luta, perde-se muita energia, mas quando já não há tal luta então uma verdadeira energia nova é sentida.

Podemos comentar nós agora que sem dúvida a diminuição das ondas de pensamento e da actividade projectiva do ego, ou seja conseguirmos controlar o que pensamos e silenciarmos mais interiormente é fundamental para um estado anímico mais  unificado e que permita mesmo a tal yoga ou união do inferior e do superior, que Krishnamurti aludiu mas da qual não falou, tal como também no fim da resposta e vídeo (que está muito entremeado de risos..) não diz o que é que não se consegue pela via normal dos exercícios tão divulgados ou seja comercialmente explorados por federações e seitas. Poderemos pensar então que há aqui uma certa omissão de ordem espiritual, o que acaba até por facilitar tanto instrutor de yoga charlatão...

Krishnamurti, ao lado da sua "mestra" Annie Besant, quando estava já para fugir à encenação e karma de ser o novo Instrutor do Mundo, o novo Messias, o que sucederá em Agosto de 1929.

Há algo de Gautama Buddha em Krishnamurti, e não é despropositado pensar-se que tal como Gautama, o Buddha reagiu contra tanta certeza e mistificação sobre o espírito e Deus-Deuses do hinduísmo, recusando-se mesmo a explicitar melhor o nirvana, assim Krishnamurti recusou rotundamente os ensinamentos e pretensões da Sociedade, nomeadamente a existência  dos mestres que Helena Blavatsky lançara tão mistificadoramente, e o que Annie Besant e Charles Leadbeater (biografara-o em vinte nove  reincarnações, ou vidas de Alcyone) lhe impingiram quando o tentaram educar para o papel de mensageiro divino, instrutor, messias ou avatar da Nova Era (algo que na época Fernando Pessoa registou, bem antes de 1929:«Só a Teosofia é que, finalmente,  declarou o Segundo Advento»), deixando de falar em Mestres, ou no espírito individual ou na Divindade, tal como vemos neste e nos seus vídeos e ensinamentos. Mas esta reacção foi demais, e logo houve menos consciência do espírito e dos espíritos, mestres,anjos e do Divino. E assim mais uma vez a grande claridade sobre os mistérios do Ser humano e divino não foi atingida nem partilhada ou ensinada...