quarta-feira, 2 de março de 2022

Dalila Pereira da Costa: homenagem de coração, no dez anos da sua partida para a Terra Lúcida. E acrescentado.

Este texto foi escrito após a saída do corpo físico da Dalila Pereira da Costa, já só em corpo espiritual rumo aos mundos mais luminosos que sempre sentiu e intuiu, demandou e amou. Não fora ainda publicado, pois pensava completá-lo, o que faço hoje, 2.III.2022, levemente ampliado, quando se comemoram exactamente dez anos da sua entrada nos maravilhosos mundos subtis e espirituais, onde ela merecidamente estará certamente muito bem. No seu 105º aniversário, a 4-III-23, foi de novo relido e melhorado...

                                                

Dalila Pereira da Costa, uma das últimas grandes vates portuguesas, partiu...
Dalila Pereira da Costa, notável escritora, poetisa, ensaísta, jardineira, celtista, católica, mística e gnóstica, acaba de deixar a Terra e a sua bela casa ajardinada na Av. 5 de Outubro, no Porto, palco de tantas
conversas, lanches, visitas ao jardim e à sua estufa e plantas, e algumas meditações...
As suas múltiplas obras
espirituais, a sua clariaudiência nocturna, a sua bondade, o seu acrisolado amor a Maria mãe de Jesus, aos Anjos e Arcanjos e a Portugal, à Sabedoria perene e a uma melhor união entre o Ocidente e o Oriente, certamente perpetuar-se-ão em alguns dos seus leitores e amigos...
Nascida a 4 de Março de 1918 no Porto, de ramos de família com raízes durienses e irlandeses, licenciou-se em Letras na Universidade de Coimbra em 1944, onde recebeu o magistério de Joaquim de Carvalho, Damião de Peres e Torquato de Sousa Soares (este tendo-o eu ainda visitado em sua casa a conselho de Dalila), e manteve uma ligação forte com os ideais e os homens da Renascença Portuguesa, fundada no dealbar da República por Leonardo Coimbra, Teixeira de Pascoaes e Jaime Cortesão, grandes almas que cultivaram não só os bens e valores portugueses pelo amor, a saudade, a arte, a ciência, o tradicionalismo e patriotismo, como genialmente se lançaram em voos de criatividade literária e investigação filosófica e mesmo espiritual, em especial  Leonardo Coimbra, Teixeira de Pascoaes e Jaime Cortesão. Discípulos destes, e muito amigos de Dalila, foram alguns valiosos pensadores, e destacarei dois com quem convivi mais amistosamente ao longo de alguns anos:  Sant'Anna Dionísio (1902-1991) e Agostinho da Silva (1906-1994).

Sant'Anna Dionísio, Dalila Pereira da Costa e Pedro Teixeira da Mota. Capela de Rio Mau.

A valorização da mitologia, da poesia, da filosofia e da mística como vias de salvação ou de iniciação foi uma das suas ideias forças  vectorizantes da sua vida e obra, e num dos seus bons livros sobre a Tradição Espiritual Portuguesa, A Nau e o Graal, e pioneiro pois de 1978, defende o conhecimento como acto total de um ser total: «Em alma, corpo e espírito. Onde a realidade será conhecida partilhadamente pelo pensamento e sentimento. Onde o coração é o órgão eminente do conhecimento. Em participação com a Realidade». Vivermos mais conscientes do coração espiritual e da sua irradiação de Amor, diremos nós hoje, no seu aniversário de 2023, relendo-a, invocando-a...

Na realidade podemos dizer acertadamente que Dalila Pereira da Costa era um ser que levava consigo  intima, discreta e como que curvadamente o coração feito graal, ou caminho para o Graal, pela sensibilidade e capacidade de empatia e de sintonização subtil grandes.
Estudiosa, atenta e sensível aos símbolos e forças manifestados na saga dos Descobrimentos, destacou a Cruz de Cristo, o Escudo real, a Esfera armilar e o Graal como símbolos vivos e criadores agindo sobre os seres "com a força de verdadeiros mandalas. Ideogramas do homem e do cosmos, sem cessar em todos os instantes e ubiquamente, durante sua obra no mundo - mostrando-lhe e repetindo-lhe o modelo
do Todo organizado, para essa sua obra: como integração última".
Para esta aspiração e crença no regresso à Divindade, à Pátria-Mátria original, ao
Paraíso, a mundo espiritual primevo, contribuía a sua forte capacidade de recuperar memória subtil, que lhe permitia recolher imagens contidas ou ressoantes como memórias nos locais que visitava ou mais amava (tal o seu Porto) ou mesmo recuar ao mundo espiritual antes da queda no corpo físico de origem animal, ou mesmo ainda como ela acreditava, a vidas passadas. 

Uma visão da maior parte dos livros da Dalila por ordem cronológica
Na sua vasta obra de cerca de trinta livros Dalila Pereira da Costa fez uma revisitação erudita, espiritual e imaginativa das grandes linhas de força, temas, autores, mitos e realidades do território português ao longo dos séculos, destacando-se as aproximações bastante pioneiras à espiritualidade de Fernando Pessoa (O Esoterismo de Fernando Pessoa, 1977), ou ainda a Camões, Gil Vicente, Antero de Quental,  místicos e místicas portuguesas, participantes do movimento da Renascença Portuguesa, dos povos e grandes seres que aqui passaram e as influências que trouxeram, integrando tal na vasta tapeçaria dos movimentos europeus e planetários tanto históricos como míticos e espirituais.
Algumas dessas obras, como dissemos, são incursões no mundo
imaginal, em que Dalila inspirada por captações em modos subtis de imagens, palavras, diálogos, partilha tal em forma poética, sendo por isso de difícil hermenêutica,  de leitura compreendida na sua pluridimensionalidade, já que convergiam memória fundíssima, sonhos, desejos, imaginação, receios e visões. Levam títulos como Jardim de Alvorada (1981), A Cidade e o Rio (1982), Hora de Prima (1983), Mensagem do Anjo da Guarda (1993), Portugal Renascido (2000).
De conteúdo mais íntimo, vivencial e espiritual, em que tenta
compreender os seus quatro grandes momentos visionários e  extáticos são A Força do Mundo, de 1972, que publicara aliás antes em 1970 em francês sob o título L' Experience de l'Extase na revista Esprit, e os Instantes nas estações da Vida, de 1999, momentos que ela em geral, muito discreta, não falava interessando-se mais sobre os nossos trabalhos e realizações, e partilhando as suas angustias pela destruição da terra e alma portuguesa.

As últimas obras de Dalila Pereira da Costa destacam-se pela sua crescente mestria do comparativismo religioso e espiritual, a par dum aprofundamento das suas próprias capacidade de compreensão interior e algumas delas são incursões valiosas nos domínios subtis da alma, do espírito e da alma mundi. Destacaremos a Corografia Sagrada, Temas Portugueses, 1993, dedicada às raízes antigas, à sacralidade das serras, a tradições e festas  de portugueses, e a seres como Gil Vicente, Fernão Mendes Pinto, Antero de Quental, Raul Brandão, Camilo Pessanha, tendo um dos capítulos "Tripla peregrinação por Terras da Beira Alta e Trás os Montes" a particularidade de eu ter participado com ela e o sr. Acácio, seu caseiro no Douro, em Outubro de 1981, em  visitações de S. Pedro de Balsemão, Panóias, Cárquere.  
Também bem valiosos são Entre  Desengano e Esperança. Ensaios Portugueses, 1996, e Dos Mundos Contíguos, 1999, que já abordámos neste blogue, particularmente este último pelas suas interrogações face à fenomenologia das dimensões subtis e espirituais dos seres e do universo e pelo seu conhecimento das tradições não só portuguesas e cristãs mas também celtas (e houve nela com o decorrer do tempo um crescimento da apreciação das fontes pagãs),  indianas  e iranianas; e mesmo de certas noções da física moderna se soube apropriar, algo bem necessário de se verificar mas raro.

Já os seus dois últimos livros, quase in folios  de 139 e 105 páginas  Contemplação dos Painéis, 2004, e As Margens sacralizadas do Douro através de vários cultos, 2206, são notáveis tanto pelo pioneirismo das abordagens tingidas de certa clarividência  como pelo facto de que os escreve e publica com mais de oitenta anos de idade e ainda com uma alma  controlando e utilizando harmoniosamente o cérebro e o corpo, fruto de um modo de vida amante da Natureza, sóbrio, recolhido, estudioso, devoto, espiritual, o que nos deve impulsionar em tal e sua senda, bem característica da Tradição Espiritual Portuguesa...

Transcrevemos o índice desta sua última obra, sem dúvida altamente recomendável: I Parte: A Mitologia da Água. O Poder Oracular da Água. Dois Santuários do Douro, Cachão da Rapa e Pala Pinta. O Sol e a Serpente. A Vinha e os Cultos Mistéricos.  O Xamã nas margens do Côa e Douro. O Eremita. As Núpcias da Terra e do Céu. Uma reintegração Realizada. História e Trans-História. Tótem. Tribo e Genealogia. O Primeiro Santuário Português do Douro. E a Primeira e Última Cidade do Douro, A Fronteira, As Muralhas. II Parte. À Irmã Galiza com saudades: A Lua e a Serpente.  Duas Fatais Heranças. Os Filhos da Deusa Lusina. Arqueologia e Filosofia Portuguesas. A Saudade na Filosofia Galaico-Portuguesa.
Gerou ainda da sua alma tão luminosa e serena uma correspondência imensa, já que conservava cópias das cartas enviadas mais importantes, a qual está a ser devidamente tratada para brevemente sair a público. Conservo uma dezenas de cartas e postais dela, que espero partilhar também. 

 No ano de 2018 comemorou-se na Universidade Católica do Porto os 100 anos do seu nascimento e em 2020 saíram as actas: Dalila Pereira da Costa. No centenário do nascimento, 1918-2018,  440 páginas de numerosas contribuições onde encontra a minha, aliás transcrita levemente melhorada neste blogue...                                                                   

Fotografia na sua biblioteca, na sala térrea, onde se encontravam os seus dois ou três mil livros e  em geral recebia as pessoas amigas, adornada com bastantes fotografias dos seus mestres e amigos, objectos oferecidos e, às vezes, com o seu cãozito a saltitar esfuziantemente, numa imagem bela e significativa, durante um diálogo entrevista com Sandra Pinheiro, realizado em 21-VII-2009, três anos antes  de ela nos deixar fisicamente, mas não subtilmente pois está connosco na comunhão do corpo místico da Humanidade, uma realidade da qual deveríamos estar mais cientes e, logo, espiritualmente mais alargadamente conscientes.
Que o Graal divino arda poderosamente na sua alma e os mestres e
Anjos estejam com ela, e que como sibila de Portugal, da Natureza como manifestação divina e da espiritualidade unitiva, possa ela inspirar ainda muitos seres. Muita luz e amor na Dalila e, através dela e suas obras, em nós e no mundo...

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