quinta-feira, 3 de março de 2022

Sabedoria Persa (20 e última). Um poema de Hafiz e outro de Christophe Plantin, ecoando a "aurea mediocritas" de Horácio, ou uma vida simples e feliz.


Eis o poema final da antologia Fontes da Sabedoria Persa, do mais amado poeta do Irão, de Shiraz, Hafiz (1320-1390). Simples, poderá infelizmente parecer nos nossos dias uma utopia pois a convivialidade humana, as relações amistosas e a tranquilidade no mundo têm sido muito afectadas por múltiplas circunstâncias. Talvez uma razão mais para o escutarmos e apreciarmos, tentando criar possibilidades de sentirmos e vivenciarmos a amizade pura que escorre das imagens dos poemas com as pessoas que possamos encontrar afins ou ressoantes...
«Alguns amigos, uma garrafa de vinho, tempo livre,
Um livro, um recanto entre flores...
Eu não trocaria jamais tal felicidade
por nada deste mundo ou de outro.»

Comentário:
Eis-nos com um dia, ou um tempo, ou um estado ideal de paz e  felicidade, no qual estamos em amor, em irradiação de alma e espírito, em comunhão com a Natureza, os livros, a beleza, os amigos, o ser amado...
Poder criar, construir, cultivar, curar, ajudar, vencer defeitos e limitações, intensificar ou aprofundar o conhecimento e as ligações subtis e espirituais entre os seres, a Natureza e a Divindade, eis o que criativamente e não manipulada e comercialmente nos faz feliz, ou seja, faz vir até nós essa Ananda ou Felicidade, que é certamente uma graça...
Em verdade, vivermos ou termos um recanto, uma casa, na Natureza, pode ser uma fonte de grande felicidade, nomeadamente quando podemos ler e dialogar com os bons amigos que são os livros e seus autores, mortos ou vivos, e as pessoas afins, em convívios de refeições, trabalhos comuns, caminhadas ou meditações.
É a tão valorizada, pelos romanos antigos, os estóicos e em especial Horácio, na suas Odes, e entre nós por Antero e Pessoa,  aurea mediocritas, um estado dourado de felicidade atingido por desapego em relação aos bens, posições e famas no mundo e por um certo minimalismo ou mediocridade de meios de consumo e subsistência, ainda que certamente ter uma casa na natureza seja hoje ora uma carga de trabalhos, ora um luxo. Mas esqueçamos as circunstâncias concretas actuais adversas a tal desabrochar de felicidade campestre e mergulhemos na valorização de tal estado de simplicidade: amigos, livros, disponibilidade para dialogar e aprofundar o que seja. E claro, para muitos, o vinho, seja o tangível, seja o da sabedoria ou do amor, que a estalajadeira derrama dos seus olhos, coração, palavras e ânfora, como a tradição persa tão magistralmente desenvolveu em poemas de circulação entre o eros ou amor humano e o divino.
Para terminarmos este pequeno ciclo de comentários a fontes da Sabedoria Persa, algumas medianas outras boas, e espero apresentar a minha própria antologia e não só comentar (em viagens de autocarro), eis um dedilhar da mesma aurea mediocritas mas já na Europa humanista: oiçamos o famoso soneto, tão reproduzido, do notável impressor Cristophe Plantin (1514 -1589), francês mas que trabalhou mais em Antuérpia, da geração posterior aos fabulosos que trabalharam com Erasmo, tais como Aldo Manuzio e Joahnn Froben, e que chegou a ter a honra de ver a sua Bíblia Poliglota, dirigida e excepcionalmente anotada pelo notável humanista espanhol Benito Arias Montano, ser enviada pelos portugueses para os missionários jesuítas de Goa participantes nos diálogos inter-religiosos em Fatehpur Sikri e que assim a puderam oferecer, ao sábio imperador Akbar, filho de Humayun e de uma persa shia, Ḥamida Banu Begum exactamente hoje há 442 anos, como me deparei agora, numa sincronia bem valiosa, nas Efemérides do Encontro de Portugal com a Índia e do Oriente e Ocidente, para o dia 3 deste mês de Março e que encontra mais detalhada no blogue. 
                                               
«Os padres Aquaviva e Monserrate oferecem ao imperador mogol Akbar (1542-1605) a erudita e magnífica Bíblia Poliglota da oficina  de Christophe Plantin, preparada pelo sábio humanista Benito Arias Montano, neste dia 3 de Março de 1580, em Fatehpur Sikri, Índia numa encadernação fechada em ouro, com as belas gravuras da escola flamenga de Quentin Matsijs que, copiadas e adaptadas, entrarão imediatamente na simbólica artística imperial mogol. O imperador Akbar, na demanda da religião universal, recebe este Livro sagrado, com a devoção dum discípulo ardente: tira o turbante e coloca-o sobre a cabeça, depois aperta-o contra o peito e por fim beija-o.» Advirta-se que a imagem que se segue algo seca é provavelmente fruto da visão narrativa ocidental diminuidora do Oriente, e já então manipuladora como nos dias de hoje se vê tão exagerada e opressivamente nos últimos tempos:
Vamos então ao soneto, não de Akbar, que era analfabeto mas profundamente sábio e pioneiro na sua busca de uma unidade supra-religiosa e nacional (com a Din-i Ilai, a Religião Divina que fundou), sendo o seu neto, Dara Shikoh, esse sim um mestre da poesia e do comparativismo religioso, mas de Christophe Plantin, e transcrevemos primeiro em francês e depois na minha rápida tradução portuguesa, com duas ou três palavras melhoráveis...
 
    Le bonheur de ce monde
 
Avoir une maison commode, propre et belle,
Un jardin tapissé d'espaliers odorans,
Des fruits, d'excellent vin, peu de train, peu d'enfans,
Posseder seul sans bruit une femme fidèle,

N'avoir dettes, amour, ni procès, ni querelle,
Ni de partage à faire avecque ses parens,
Se contenter de peu, n'espérer rien des Grands,
Régler tous ses desseins sur un juste modèle,

Vivre avecque franchise et sans ambition,
S'adonner sans scrupule à la dévotion,
Dompter ses passions, les rendre obéissantes,

Conserver l'esprit libre, et le jugement fort,
Dire son chapelet en cultivant ses entes,
C'est attendre chez soi bien doucement la mort. 

A felicidade neste mundo 

Ter uma casa cómoda, limpa e bela,
Um jardim atapetado de socalcos fragrantes,
Frutos, excelente vinho,pouca pressa, poucas crianças,
Possuir só, silenciosamente, uma mulher fiel.

Não ter dívidas, amores, nem processo nem querelas,
Nem partilhas a fazer com parentes,
Contentar-se com pouco, não esperar nada dos Grandes,
Regrar todos os seus desígnios por um modelo justo.

Viver só com franqueza e sem ambição,
Dar-se sem escrúpulos à devoção,
Dominar as suas paixões, torná-las obedientes.
 
Conservar a alma livre e o julgamento forte,
Recitar o seu rosário cultivando os seus entes,
É esperar em sua casa muito docemente a morte.»

Saibamos viver os mais felizes possível, e fazendo os outros felizes, evitando falsidades e confrontos, traições  e opressões  pois cada ser, cada grupo, é uma caravana que passa rumo ao seu Oriente, ao seu Além,  e a caravanserai hospitaleira ou satsanga dos amigas e amigas de Deus de cada um de nós é necessariamente para poucos seres afins. Aprofundemos então com eles os mistérios da existência e não deixemos dispersar e polemizar, manipular e subanimalizar... Seres livres e lúcidos no Caminho Divino...
Nestes dias em que o Caminho e a realização espiritual são tão desfigurados  por tanto comercialismo do esoterismo, da new age, da cura, dos satguruss e visvhagurus, dos anjos e das seitas e religiões, tentemos discernir bem o que se nos oferece ou vende. E espero conseguir  avançar um dia com mais sabedoria persa ou iraniana elevada,  comentada... Nur...

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