sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Sa'adi, e a sabedoria do Irão. "Gulistão", 10ª história. As amizades e os merecimentos imortalizam-nos.

De Sa'adi, do seu Jardim da Rosas, Gulistan, mais uma história, esta bem pequena: «Encontrei um homem no deserto que estava a falar assim para o seu rapaz:

”- Ó filho, no dia em que ressuscitares para o mundo espiritual perguntar-te-ão o que é que tu realizaste vitoriosamente e não de quem é que tu descendes, isto é, interrogar-te-ão acerca dos teus merecimentos e não dos teus ascendentes ou como foi o
teu pai.” 

A cobertura da Ka’bah que é beijada
Não foi enobrecida pelo bicho da seda.

Ele esteve uns dias na companhia de um homem sábio,
Pelo que se tornou uma pessoa respeitável como ele. »

Esta história, e seus dois dísticos, bem pequena mas desafiante, lembra-nos que devemos agir enquanto estamos sob a luz do sol e com o corpo físico vivo, se queremos conquistar a imortalidade da alma e a ligação a Deus, isto é também, a possibilidade de entramos conscientes nos mundos espirituais e com luz e amor, derivadas dos nossos trabalhos ou merecimentos na terra física.                                                     Lembra-nos ainda Sa'adi que os objectos, os ritos, os ícones valem pelo que as pessoas lhes transmitem e pelo que eles dos  mundos espirituais, ou mesmo do Divino,  passam para nós de energias e inspirações salutíferas e luminosas.                              E, por fim, que a companhia de gente luminosa é fundamental. satsanga, companhia da verdade, na Índia dos yogis, ou as tariqas, as associações espirituais fraternas sufis, são exemplos de grupos, em que uns dias ou umas horas com um sábio ou mestres podem ser  suficientes para acordarem, intensificarem, transformarem uma pessoa.                               Nestes tempos de crise grande, saibamos associar-nos, pelos melhores meios possíveis, com os seres de luz e amor e para o bem da Humanidade e do planeta Gaia...

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Sa'adi, e a sabedoria do Irão. "Gulistão", 9ª história. Quando os animais falavam: o corvo e o papagaio.

 
                                                                      
Um papagaio, tendo sido aprisionado numa gaiola com um corvo, sentiu-se vexado pela vista dele e exclamou assim: “Que aspecto tão feio tem este. Que figura odiosa. Que coisa amaldiçoada, com hábitos tão rudes! Ó corvo da separação, como desejaria que a distância entre o Oriente e o Ocidente estivesse entre nós.” 

Para quem quer que te veja quando se levanta de manhã,
A alvorada de um dia seguro torna-se um entardecer.
Só uma pessoa de mau augúrio como tu é que te deve fazer companhia,
Mas onde é que no mundo inteiro há alguém como tu?

O que é mais bizarro ainda é que o corvo estava igualmente desanimado  pela proximidade do papagaio e, desgostoso, berrava La hual e lamentava as vicissitudes do tempo. Esfregando as garras da tristeza uma contra a outra, clamava: “Que má sorte é esta? Que destino tão baixo e que tempo tão de cameleão é este, quando eu estava de acordo com a minha dignidade a pavonear-me num jardim murado na companhia de outro corvo. 
                                                                                                  É  já um emprisionamento suficiente para um devoto estar no mesmo estábulo com desregrados. Que pecado cometi eu  nesta vida, para ter já caído, como  punição,  nas limitações desta calamidade que é a companhia de tão convencido, incoerente e destravado tolo?”

Ninguém aproximará o seu pé do muro
Sobre o qual pintarem o teu retrato,
Pois se o teu local fosse o Paraíso,
Os outros escolheriam o Inferno.

Eu acrescentarei ainda a seguinte  parábola para que saibas que não importa quanto um homem sábio possa não gostar de um ignorante pois este último há-de igualmente  de o detestar:

Um homem devotado a Deus (zahid) viu-se no meio de depravados,
e eis que um deles, uma bela mulher de Bhalki, lhe disse:
Se estás cansado de nós não o sintas amargamente
Pois és tu próprio o mais amargo entre nós.”

Uma assembleia juntara-se como rosas e tulipas!
Tu és como uma madeira seca a crescer no meio,
Ou como um vento contrário e uma geada desagradável, 
Ou como neve inerte ou gelo preso firmemente. »

Breve comentário: Nestas histórias, parábolas e poemas Sa'adi estimula-nos a reconhecermos que ninguém é perfeito, que não podemos agradar a todos e que  é melhor aceitarmos  os outros tal como eles são, sobretudo se estamos na sua companhia, para não sermos quem azeda a refeição comum que é cada encontro ou convívio de pessoas. Daí que se recomende sabiamente juntar-nos de preferência com os que têm mais afinidades connosco, pois podemos estimular-nos nas criatividades, descobertas e realizações. É a famosa satsanga indiana, a companhia da verdade, ou ainda seres que se reúnem verdadeiramente pelo amor com que aspiram ao conhecimento e pelo amor e unidade que entre si sentem, comunicam e comungam.
Para que estejamos mais em amor e sabedoria e possa crescer a nossa ligação e consciência espiritual e divina...

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Sa'adi, e a sabedoria perene do Irão. "Gulistão", 7ª e 8ª histórias. Da palavra e da voz justa.

                            Nour

Entremos em mais algumas das histórias do Jardim das Rosas, de Sa'adi, aqui representado numa iluminura no seu jardim de rosas...

 «Um pregador imaginava que a sua miserável voz era agradável e erguia berros de tal modo desnecessários que tu dirias que o corvo da separação se tinha tornado a tonalidade do seu canto. Até este verso –  "a mais detestável das vozes é certamente a voz dos burros" – parece aplicar-se a ele, tal como também lhe diz respeito este dito:

Quando o pregador Abu –al- Fares zurra
Mesmo ao pedir a Deus dará  saltos.

Devido à posição religiosa que ele ocupava os habitantes da povoação submeteram-se à provação e não pensaram que fosse adequado criticarem-no.   Todavia, com o decorrer do tempo, outro pregador daquela região, e que mantinha uma inimizade secreta contra ele, chegou numa visita e disse-lhe: “Tive um sonho contigo, possa ele terminar bem!” - "O que sonhaste? “ - "Sonhei que a tua voz se tornara muito agradável e que as pessoas se sentiam  bem nos teus sermões”. O pregador reflectiu um pouco  sobre tais palavras e disse-lhe: “Tu sonhaste um sonho abençoador porque me tornaste consciente do meu defeito. Fiquei a saber que tenho uma voz desagradável e que as pessoas sentem desagradável a minha recitação em voz alta. De acordo com isto, determinei de que a partir de hoje não me dirigirei mais a elas sem ser numa voz controlada.”

Não gosto da companhia dos amigos
A quem as minhas qualidades más parecem boas.
Eles fantasiam que as minhas faltas são virtudes e perfeição.
E os meus espinhos consideram serem rosa e jasmim.

Responde-me: - Onde está o ousado e veloz inimigo
Que me torne consciente dos meus defeitos?
Aquele a quem as faltas ou defeitos não são ditas,
Ignorantemente imagina que eles são virtudes…. 

História:    «Um homem com uma voz desagradável estava a realizar a leitura do Corão, quando um homem piedoso passou ao lado e perguntou-lhe quanto é que ele auferia de salário mensal. Ele replicou: “Nada”. Ele interrogou-o ainda: “Então porque é que assumes esse trabalho?” Ele respondeu: “Estou a ler por causa de Deus”. Ele pediu-lhe então: “Pelo amor de Deus, não leias mais.”

Se leres assim o Corão,
Privarás a religião da sua glória. »

Nestas histórias Sa'adi lembra-nos que no caminho real da vida devemos saber ouvir quem nos critica, não se reagindo logo fortemente. É mais sábio meditarmos ou dormirmos, antes de replicamos. Podemos aprender seja por advertências nos sonhos ou sinais seja através de críticas que não nos sendo agradáveis podem ter ou têm algo de verdadeiro. Como que Sa'adi  nos diz: - Sabe usar o dom da tua palavra, ou da tua escrita, com muita conta, peso e medida, ou seja, com o máximo de harmonia e de amor. E atenção aos efeitos que vais ter nos outros, pois não basta a tua intencionalidade, pois de boas intenções está o inferno cheio. Inferno que podemos criar nos outros sem que eles o mereçam, sobretudo quando estás a falar de religiosidade ou de orações. Saibamos então ser sempre pupilos humildes da Palavra, Logos e Primordialidade Divina e dos seus verdadeiros mestres e sábios...

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Sa'adi, e a sabedoria perene do Irão. "Gulistão", 6ª história. Vive o presente sintonizando o futuro.

Na história que vamos ouvir, Sa'adi relembra-nos que devemos ter uma consciência não apenas do presente, mas também do passado e do futuro, para que assim possamos ter uma vivência mais harmoniosa e frutífera na peregrinação terrena. Do passado, pelos que nos ensinam e nos trazem e entregam a história e a sabedoria dos séculos. Do futuro, pelas considerações que fizermos a partir do que eles nos dizem e nós lemos e vivenciamos, pois não há separação temporal rígida e o agora está sempre a passar. Por isso  alguns até tentaram cravar com uma espada esse momento sempre evanescente e clamaram Hic et nunc, aqui e agora, e com razão quando por esse meio se procura uma intensificação heróica, criativa e vencedora, de dar tudo por tudo.

No fundo, esta narrativa muito rica de expressões psico-físicas persas invulgares entre nós aconselha-nos a viver equilibradamente,  se queremos verdadeiramente chegar ao fim da vida terrena em boas condições materiais, corporais, psíquicas e espirituais.

Oiçamos então Sa'adi Shirazi, isto é, natural da bela cidade de Shiraz, onde nasceu (1210) e morreu já de idade bem avançada (1292) após ter muito viajado e vivenciado, reflectido e dialogado, meditado e escrito, e amado...

 «O filho de um homem piedoso, herdando uma fortuna enorme deixada por uns tios, mergulhou imediatamente na dissipação e libertinagem, tornando-se um perdulário e, para resumir, não houve transgressão alguma odiosa por perpetrar nem intoxicante por provar. Eu aconselhei-o porém, dizendo-lhe: “Meu filho, o rendimento é uma água em movimento e a despesa um moinho a rodar; isto é, só quem tem um rendimento fixo é que pode entregar-se a despesas muito abundantes.”

Se não tens um rendimento, gasta frugalmente

Porque os marinheiros cantam esta canção:

Se não houver chuva nas montanhas,

O leito do rio Tigre secará num ano.


“- Segue a sabedoria e a decência, abandona os espectáculos e o jogo pois a tua riqueza ficará exausta e depois  cairás em problemas e arrepender-te-ás”. O jovem foi porém impedido, pelas delícias da música e da bebida, de aceitar o meu conselho, considerando-o mesmo desacertado, dizendo que era contrário à opinião das pessoas inteligentes alguém amargar a tranquilidade do presente com preocupações do futuro.

Porque é que os possuidores de sorte e prazeres

Hão-de suportar a tristeza pelo medo de apreensões.

Vai, sê alegre, meu amigo de coração alegre

A dor do amanhã não deve ser tragada já hoje.

 Como poderia eu calar-me, eu que ocupo o mais alto assento da liberalidade, tendo dado o nó da generosidade e de cuja beneficiência a fama se tinha tornado o tema da conversa geral?

Aquele que se tornou conhecido pela sua liberalidade e generosidade

Não deve pôr um cadeado sobre os seus dinheiros.

Quando o nome de uma pessoa boa se espalhou por uma localidade

A porta não pode ser doseada contra a bondade da pessoa.

Quando percebi que ele não aceitara o meu aviso e que o meu hálito quente não estava a ter efeito sobre o seu ferro frio, deixei de o advertir e retirei a minha face da sua companhia, agindo de acordo com os filósofos, que disseram: “Transmite-lhes o que tu tens e, se eles não o receberem, não é tua a falta.”

Apesar de saberes que não serás escutado, diz

O que possas saber de bons conselhos e avisos.

Pode ser que brevemente contemples um infeliz companheiro

Com os seus dois pés a caírem no cativeiro,

Batendo as suas mãos juntas, e dizendo:”Infelizmente,

Eu não acolhi o conselho de um sábio”.

 Algum tempo depois vi realizadas as consequências que eu previra do seu comportamento dissoluto. Quando o vi a cozer remendo sobre remendo e a recolher migalha sobre migalha, o meu coração sentiu piedade pela sua condição empobrecida, mas como não considero humano coçar as feridas internas com reprimendas ou derramar sal sobre elas, de acordo com isso, disse-me apenas a mim próprio:

Um indivíduo tolo nos píncaros da sua intoxicação

Não se preocupa com o dia que há-de vir de aflição.

À árvore que deixa cair a sua folhagem na Primavera

Certamente não lhe restarão folhas no Inverno.»

 

Saibamos trabalhar e viver, como nos recomenda Sa'adi, pela frutificação espiritual perene, e divina até... 

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Sa'adi, e a sabedoria do Irão. "Gulistão", 5ª história. Apressa-te gentilmente, ou "Festina lenta".

Nesta breve história Sa'adi leva-nos a viajar numa caravana que se estende na travessia do deserto, com uns mais apressados e outros mais lentos, todos procurando chegar às zonas mais apropriadas para descansar, de preferência algum oásis, com água fresca e palmeiras, e por fim chegar à casa ou Meca do destino da viajem. 
Lembra-nos então Sa'adi que a corrida contra o tempo em que muita gente se deixa levar pode ser contraproducente, pois podemos desgastar-nos demasiado e não estaremos prontos depois para os momentos decisivos. 
Ou ainda podemos no fundo perder o desfrutar e aprender durante a peregrinação, só com a pressa de se chegar à finalização da obra, trabalho ou viagem.
 O preceito grego antigo,
Speûde bradéōs, "Apressa-te lentamente", latinizado como Festina lenta e amplamente desenvolvido por Erasmo de Roterdão nos seus Adágios, tanto mais que o seu grande amigo Aldo Manutio, usava tal dito como a letra da marca ou empresa da sua famosa tipografia, a aldina, na Veneza do começo do Humanismo, diz-nos o mesmo que Sa'adi: o golfinho rápido (e em nós a mente veloz) sabe também enlaçar-se quando é a altura certa na âncora que o prende, limita e poupa, ou mesmo tem ou assume essa conta e peso em si, como discernimento e controle do que diz, pensa, faz, se movimenta. Para assim estar mais integrado no fluir certo da vida, que é o Tao dos Chineses ou o Dharma dos indianos...
Há aqui também algo do símbolo da Rosa e da Cruz, fazer desabrochar da gravidade e matéria a beleza e o movimento e a elevação apropriada e transformadora.
Sabermos prosseguir os objectivos maiores espirituais da vida, bem como os criativos, os familiares e os profissionais de modo harmonioso é então uma grande arte, que deve ser prosseguida e trilhada, mais do que com rapidez ou lentidão, com harmonia, gentileza e calma.
Oiçamos então a história de Sa'adi: «Um dia, na irreflexão convencida da juventude, eu viajara dando tudo por tudo e chegara ao anoitecer completamente exausto à base da encosta de uma montanha. Um ancião já frágil, que viera atrás da caravana, chegou e perguntou-me porque é que eu estava a dormir, não sendo aquele o lugar mais apropriado para isso. Eu repliquei: “Como é que eu posso caminhar mais, se perdi o uso dos meus pés?”                                                                               Ele respondeu-me então: “Não ouviste dizer que é melhor caminhar calmamente e parar aqui e acolá do que correr e ficar-se exausto?”

Ó tu que desejas chegar ao fim da viagem, 

Toma o meu conselho e aprende a paciência. 


Um cavalo árabe galopa duas vezes uma corrida,

Um camelo move-se gentilmente noite e dia.»

                   Saibamos mover-nos mais com o coração aberto e a plena consciência....

domingo, 6 de dezembro de 2020

Sa'adi, e a sabedoria do Irão. "Gulistão", 4ª história. Cultivar as amizades puras...

                                      

Nesta história do seu Gulistan, Sa'adi (1210-1292) valoriza diante de nós os comportamentos invulgares, quase ingénuos, de abnegação e de amor ao Amor, e põe-nos de ainda de sobreaviso quanto à necessidade de sabermos discernir bem as pessoas amigas, para que não sejamos nem enganados nem mal influenciados. Ou ainda, que saibamos associar-nos às pessoas mais puras, ou seja, de coração mais no caminho de abertura à realização espiritual e presença divina e à vida justa, harmoniosa e em boas sinergias. Oiçamo-lo então:   «Um ladrão fez uma visita à casa de um homem espiritual, mas apesar de ter procurado com grande afã não encontrou nada e lamentou-se em voz alta. O homem piedoso, ao dar-se conta do que se passava, atirou logo o cobertor que o cobrira no sono para o caminho do ladrão para que este não se fosse frustrado.

«Ouvi dizer que os homens no caminho de Deus
Não perturbam os corações dos inimigos.

Como podes tu obter tal dignidade
Quando discutes e fazes guerra a amigos?

A amizade das pessoas puras, quer na tua presença ou ausência, não é como a daquele que encontra defeitos por detrás das tuas costas mas que está pronto para morrer por ti diante da tua face. 

 Na tua presença, gentil como um cordeiro,
Na tua ausência, como um lobo devorador.

Aquele que te trás e conta as faltas dos outros,
Certamente levará as tuas faltas aos outros.»

Saibamos  então ver e valorizar as melhores potencialidades e criatividades dos que nos rodeiam, ou mais sentimos ou gostamos, não demos atenção aos maldosos, para que tanto a humanidade como o nosso grupo de almas vibratoriamente próximas ou afins evolua e intensifique a sabedoria e o amor perenes, tão poetizados e filosofados por Saadi, Hafiz, Sohrawardi e outros luminosos mestres da tradição persa ou iraniana...

sábado, 5 de dezembro de 2020

A espiritualidade da Índia. Páginas de um diário, com entradas de 1996 e 1997, em vídeo lidas e ampliadas...

Dentro de uma agenda diária indiana Bhagavan Ramana dairy for 1990, dedicada ao sábio da montanha de Arunachala, que estava na secção indiana da minha biblioteca, encontrei inesperadamente algumas páginas escritas em Portugal, após ter estado em 1995-1996 um ano a viver na Índia, e quando escrevia o livro dos Descobrimentos do Oriente e do Ocidente, que viria a sair à luz em 1998, para comemorar os 500 anos da viagem de Vasco da Gama e a união de Portugal com a Índia. Resolvi então ler à noite (2-XII-2020) o que escrevi, ampliando ou comentando por vezes, do que resultou o vídeo (e um outro, anterior, de apenas 3:00, pois a máquina parou) no final deste artigo. Mas hoje (5-XII)  resolvendo partilhar a gravação para o Youtube e o Blogue encontrei duas páginas escritas, na Índia, em 1996, nesse mesma agenda diário que comprara com desconto (pois era já de 1990) na livraria do ashram de Ramana Mahrishi. E assim, em vez de transcrever para este texto o que já está partilhado oralmente no vídeo, vou antes fazê-lo com essas impressões do peregrino, quando já tinha uns nove meses de Índia, os últimos três de peregrinações e viagens.

Página do dia 15 Janeiro. Verso impresso ao alto, de Ramana Maharishi: «Expressão do AUM, inigualável, insuperável, quem te pode compreender, O Arunachala?                                                                                                                           
«De manhã medito na sala do ashram, em frente à fotografia grande emoldurada que o substitui e o invoca e evoca posta na parede acima do divã por ele ocupado fisicamente durante alguns anos e agora vazio ou talvez aberto subtilmente às suas emanações.
                                                
É a despedida, calma, profunda. Algo da realização espiritual da unidade e de
Ramana Maharishi respira-se, sente-se. Depois vem o dia activo, após escrever nas costas de duas fotografias postais dele, mensagens para Jorge Falcão, um amigo adepto do caminho advaitico ou da não dualidade, e para o Pedrinho Teixeira da Mota.                                                                                                                                             Vou buscar fotocópias de alguns livros do ashram a Tiruvanamalai, e visito em 35 minutos o templo principal. Um brâmane leva-me a dois santuários onde acende uma réstea de canfora  perante o Shiva lingam e faz uma oração em meu nome. O ambiente não é aqui doentio, embora as estátuas sejam pretas, dum granito ou basalto milenário. E revestidas de fumo, pastas coloridas e vestes, agitam-se quase numa ânsia de serem vivas fisicamente. Quem saberá discernir os resultados da adoração de estátuas, algumas das quais em certos povos e tradições eram verdadeiramente animadas?

Percorro as estátuas com rapidez  até que ao longe  uma fila grande de pequeninos lingams fazem-se relembrar os Budhas, também pequeninos e  vestidos de cores garridas, dos mosteiros do Tibete.                                                                                     Uma deusa Saraswati em estáta dourada, mesmo por detrás do santuário principal faz-me deter e saudá-la por uns momentos. É uma senhora ou deusa da sabedoria e da música, dourada, fina, mas quem lhe liga e a leva consigo?                                     Depois de me ter posto cinzas na testa e no cimo da cabeça, recebo ainda banana, flores e um pacotinho de açucares, o prasad. Dou-lhe 20 rupias. Agradece. Não posso tirar fotografias dentro do recinto sagrado. Apenas fora, as torres altas, os elefantes, a vaca sagrada  imponente e escura a ser adorada, e os sadhus que passam algumas horas sentados em posição de pedintes dos fieis que peregrinam este famoso templo shivaísta.                          

                                               
Regresso ao ashram de Ramana Maharishi para entregar os livros de volta ao
simpático encarregado da livraria que me  os emprestou para fotocopiar. E depois é a viajem para Madras, passando por Kanchipuram, que está fechado em restauros. Visito ainda assim mas rapidamente o ashram de Sankaracharya . O guarda do portão do templo de Kanchipuram ainda disse que se pagasse 5 dólares, poderia entrar e espreitar. Como não tenho já muita paciência para estar a discutir preços, bato antes com a mão na testa e digo-lhe: - Está louco? Estou ou não na Índia, não devo pagar em rupias?                                                                                                        Mas ter de bater na testa, e encher os olhos da confusão ou grande agitação que caracteriza muitas partes da vida indiana citadina ou dos transportes, desgasta o cérebro,  que vai desejando cada vez mais paz, shanti, shanti...                                   Tanto desgaste o viajar na Índia. Bem fez Ramana (1879-1950) que instalou-se e viveu quarenta anos à sombra da montanha sagrada de Arunachala, que tanto poetizou como manifestação divina, traduzindo e comentando textos sagrados antigos, e transmitindo a metodologia de auto-inquérito, "Quem sou eu, Quem sou eu",  e partilhando a sua realização da unidade supra-mental dos seres e das consciências, no que se chama na Índia, a tradição advaita, ou seja, não dual: na essência só é ou existe a consciência divina, única, Brahman. É ela que é o fundo e essência na nossa consciência e individualidade. Por isso um dos grandes mantras, as mahavakyas, diz: Aham Brahmasmi, Eu sou um com Brahman, a Divindade. Eu sou parte de Brahman, Eu sou  da mesma geração eterna divina.

Hotéis, ashrams, riquexós, táxis, comboios, aviões e tantas lutas, injustiças, roubos, cansaços que nos envolvem, desgastam e desafiam a sabermos manter-nos num estado de consciência não conflituoso, paciente e elevado, yoguico ou unitivo diremos em alguns momentos mais meditativos ou de harmonia e fusão com as pessoas e a natureza, sem dúvida tantas vezes maravilhosas...                                       Pensei que o templo de Tiruvanamalai estivesse pesado, carregado de energias menos positivas, mas embora se vejam alguns brahmanes com ares semi-degenerados por centenas e centenas de anos de ambientes algo sombrios e açucarados, a vibração deles e do sítio era em geral boa.                                             Claro que há muita prática devocional algo supersticiosa ou pelo menos demasiado crente no miraculoso, visível nas raparigas que fazem certos gestos e votos em alguns pontos do vasto templo com muitos santuário, nas dádivas mais impressionantes de pessoas e nas exigências dos brâmanes ou sacerdotes. Talvez por ser um templo muito peregrinado e logo rico, os brâmanes aqui não são aves de presa, de rapina ou ameaçadoras como acontece por vezes em alguns locais, e uma certa comunicação de reconhecimento de seres espirituais e no caminho circula. Talvez também a proximidade da montanha sagrada de Arunachala, que reflectirá e reverberá as elevadas vibrações dos Himalaias, mais as irradiações de Ramana Maharishi e do seu ashram, sejam factores importantes na consciência mais luminosa realizável nesta zona...

                                                         
Segue-se o vídeo de 15 minutos em que leio os textos do começo do diário de Janeiro de 1997 (fotografia em cima, estando a mesma imagem de Arunachala em cada página, mas com um poema ou frase diferente de Ramana), cujo teor foi mais espiritual, filosófico e histórico do que pessoal, admitindo que possa transmitir certa luz a algumas pessoas: