quinta-feira, 4 de julho de 2024

Gurudev Ranade: hermenêutica espiritual de Kabir, poeta e místico do séc. XV. Nas comemorações do aniversário de Ranade.

Kabir, mestre dos sant.

Um dos mestres espirituais que gurudev Ranade (1886-1957) mais apreciou e estudou foi o famoso poeta e místico do século XVI Kabir, dedicando-lhe várias páginas na suas obras, numa hermenêutica verdadeiramente espiritual e não meramente histórica, teórica ou esotericista. É o caso de The conception of spiritual life in Mahtama Gandi and Hindi Saints, 1956, onde no prefácio escreve: «a terceira parte deste livro é dedicada ao desenvolvimento da experiência mística em Kabir, o apóstolo da unidade espiritual, não só entre os hindus e os muçulmanos, mas entre os membros das comunidades religiosas do mundo. Se Kabir vivesse hoje, seria a primeira pessoa a pregar o evangelho da unidade espiritual universal».

Ramchandra Dattratreya Ranade.

A data do nascimento de Kabir é controversa, para uns em 1398 para outros 1440, mas a da sua morte, 1518, já é unanimemente aceite.  Varanasi, ou Kashi, a luminosa cidade gangética, foi o local sendo incertas as suas influências espirituais iniciais, tendo nascido talvez numa família Nath yogi shivaísta, possivelmente já convertidos ao Islaõ sufi mas que foi ainda discípulo do mestre Ramadas na linha dos devotos de Vishnu, o que se torma manifesto em muitos poemas que critica os Nath yogi por não desenvolverem a devoção, o amor, prembhakti.

Kabir, tecendo, cantando, ensinando.

Foi um tecelão, poeta, yogi místico e assim a inspiração brotava fortemente em poemas ricos de sentidos espirituais e paradoxais que foram musicados e cantados por milhões de seres e onde insere  críticas socio-religiosas fortes aos sacerdotes e fiéis hindus e islâmicos que se deixavam estar nos dogmas, aparências e superstições, e canta as experiências espirituais suas e dos nNath yogi e dos sadhus ou sants, seres libertos da ilusão (maya) e realizados,  orientadas pelo amor a Deus ou, talvez melhor, à Realidade Suprema, que designou por diferentes termos das várias tradições e religiões, tais como os vedânticos Brahman, Atman, Purusa, Tat, Gyan (ou Jnana, Sabedoria), Ek (o único), Niranjan (o Sem nódoa) mas também o dos avatares Ram, Hari e Govinda,  ou ainda, já na tradição do Islão, Allah, Hazrat (o Majestoso), Khuda (Deus em persa), Karim (o Dignificado).

Só no século XVII é que surgiram as compilações dos seus poemas principais, no Kabir Bijab, no Kabir Granthawalli, na escritura sikh, o Adi Khant e noutras compilações. Nos tempos modernos destacaram-se as publicações e traduções de Rabindranath Tagore, Ranade e de Charlotte Vaudeville.

Para Ranade, Kabir será sempre  um dos grande unificadores das várias religiões pelo sua boa nova ou evangelho de paz e de universalidade, e pelos ensinamentos autobiográficos espirituais que semeou, e irá destacar nele, e na obra referida, certos aspectos  valiosos para os praticantes do caminho: 

Sobre o verdadeiro mestre, ou seja, o Sat Guru, o Sadguru, diz-nos que é quem está apto a estabelecer o seu discípulo na visão de Deus para onde quer que este olhe. Não pode ser só interiormente nem só no mundo exterior. Podemos considerar tal uma realização completa, tanto pela visão interior mística como pela visão seja intelectual ou realização intuitiva da unidade  da Divindade omnipresente.

Características do sadguru são a de ensinar o discípulo a estar no sahaj samadhi, na unificação interior natural, sem depender de práticas respiratórias ou concentrativas, e dando a original imagem de se estar numa cabana sem fundo entre a terra e o céu, o que é também entre a base da coluna, ou talvez melhor o umbigo, e o cimo da cabeça, ou seja, estar mais no peito, sem contudo se deixar prender nele, nem enredar os outros, um aviso muito pertinente pois vemos constantemente como os gurus modernos prendem tanta gente afectivamente, tornando-as dependentes ou mesmo quase hipnotizadas. 

O centro (chakra) do coração é anahat, e anahata, é o som interior espiritual que se pode ouvir, nas práticas mais profundas mas que deve ser subordinado a Shabda, a Palavra ou som, que é tanto a característica ou qualidade do espaço, como um dos dez sons que se podem ouvir interiormente, nomeadamente nos canais internos, como ainda a primordialidade divina,  o Espírito, e que repetida, ouvida ou meditada como Om, ou como Ram, nos pode levar até à Divindade.

Também é característica do verdadeiro guru a  enunciada na Bhagavad Gita. IV. 18: «Aqueles que veem a ação na inação e a inação na ação são verdadeiramente sábios entre os humanos. Embora realizem todo o tipo de acções, são iogis e mestres de todas as suas acções», ou seja, capacidade de não se estar ansioso ou dependente dos resultados, mas desprendido, e agir permanecendo em paz e felicidade.

Outro aspecto que Ranade destaca em Kabir é a importância da prática da meditação em Deus utilizando o mantra ou nome (nama)  de Deus dado pelo guru ao discípulo na iniciação. Contudo para Kabir não é este nome, nem menos ainda  que uma pessoa escolhe para si, que é o verdadeiro nome o qual é Ajara e Amara, imutável e imortal: «Quando estamos a meditar, diz Kabir, há um nome celestial que se revela ou desdobra a si próprio ao nosso sentido auditivo, no estado mais elevado da meditação. Tal nome é Ajara e Amara. Quando uma pessoa entra na posse ou fruição deste Nome, o seu caminho para a Divindade fica claro, limpo.»

Esta repetição do nome de Deus deve ser contudo silenciosa, pois nos quatro níveis de fala ou voz: vaikharii, a física, madhyamma, a mental e  que pensamos antes de pronunciar, pashyanti, a que se vê ou se compreende inicialmente, e a para, a transcendente e silenciosa, esta é que é o nível mais elevado, difícil de se realizar, mas do qual nos aproximamos ao tentarmos transcender os outros níveis e ao meditar em silêncio íntimo receptivo.

Em termos de fisiologia interna a meditação ganha em ser realizada pela entrada na janela existente nos ventrículos do cérebro e em seguida pelo voo ascendente do espírito até ao Triveni Samgama, a confluência das três correntes ou rios no olho espiritual, onde poderá então receber a visão de Deus.

Para isto acontecer Kabir recomenda concentração forte na Divindade, desprendimento do mundo exterior (para diminuir ou extinguir-se a ondulação mental) , intensidade de aspiração e sermos na vida, na linha pitagórica (refere Ranade) espectadores ou viajantes que não se carregam de pesos nem de envolvimentos desnecessários. 

Uma das boas imagens dadas por Kabir é a de que a sua mente ou alma é o pavio, o nome de Deus o óleo e a Divindade em si mesma o fogo que acende o pavio. Quando tal acontece a luz interior cintilante manifesta-se dentro do tabernáculo do coração, e então devemos consagrar-nos (nyochhavar) mais a Deus, tornar a nossa vida mais dedicada a Ele, até para que haja crescimento espiritual, mais experiências espirituais que nos elevem à Divindade. 

Quais em Kabir? Sobretudo os sons interiores, as visões da Divindade, ou então dos avatares (tal Rama e Krishna), o sentido da eternidade e o do poder infinito de Deus, dando uma valiosa pista de ascensão interna: quando o sumo doce ou nectar (amrita) escorre das células para os ventrículos laterais cerebrais então o som tanto se eleva para o céu como permite encher mais o lago do 3º olho e ventrículo dessa beatitude de amrita, numa dupla ou recíproca causalidade entre o som e o néctar, estado interior que pode chegar a absorver ou atrair a si a comunhão com o Oceano da Divindade, na Índia tão cultuado em Narayana.

Fiquemos com o excerto inicial de um poema de Kabir, numa tradução do francês da sábia orientalista Charlotte Vaudeville:

«Ó Kabir, o resplendor do Eterno é como o nascer de toda uma sucessão de sois.
Ao pé do marido, a mulher despertou e um espectáculo maravilhoso apareceu diante dela.
Ela contemplou o espectáculo sem os olhos do corpo, e sem o sol e sem a lua a luz brilhou,
O servidor está absorto no serviço do Mestre e não se preocupa com mais nada.
A Majestade do Senhor Supremo está para além de toda a imaginação.
A sua beleza é indizível. É preciso contemplá-la.
Ao inacessível, ao invisível não há qualquer acesso, lá brilha a luz; lá onde Kabir prestou as suas homenagens nem o pecado nem o mérito podem chegar.
Esse lótus que floresce sem flor, só os íntimos (da Divindade, Rama) podem contemplar.»

                                                           

quarta-feira, 3 de julho de 2024

Gurudev Ranade e os seus ensinamentos: meditação, Avatar, Luz, Forma e Nome de Deus. No dia do seu 138 aniversário.

                          
              Imagens do mandir ou pequeno templo dedicado a Gurudev Ranade, com ele ao centro, e os seus mestres 
Foi a 3 de Julho de 1886, da mesma geração mundial que Leonardo Coimra e Fernando Pessoa, que nasceu em Jamkhandi, na Índia, Gurudev Ranade, um dos mais brilhantes yogis e filósofos indianos do século XX, no verdadeiro sentido da palavra, pois juntava ao trabalho intelectivo, um modo de vida harmonioso e uma prática e experiência espiritual, assente na devoção a Deus. Foi professor de Filosofia e chegou a vice-Chanceler na Universidade de Allahabad, desincarnando em 1957. Consagrámos-lhe já uma biografia: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2020/07/guru-ranade-um-verdadeiro-yogi-e.html Dentre os seus ensinamentos escolhemos alguns para esta breve apresentação.
  «A minha filosofia não é diferente da minha vida... As dores e as misérias que possa vivenciar ajudarão a purgar a mente das suas impurezas...
Uma vez gerada a devoção, a qualidade torna-se mais importante que a quantidade...
A miséria pode ser suportada; os ataques de tentação, o ódio, podem ser tolerados; mas a dor física torna-se insuportável a partir de certo limite. Em tais ocasiões a única via que permanece aberta é orar a Deus para nos permitir meditar...».
 
Valorizando muito a aspiração e a determinação dos yogis, considerava porém indispensável a ligação com um mestre:
«A forma de Deus deve descer sobre nós, e para isso acontecer deve haver um instrutor ou mestre de elevado nível espiritual. Só então ele pode fazer descer tal [visão de forma pessoal da Divindade] para o nível inferior do discípulo. Se o mestre nada tem, o discípulo nada recebe. Por vezes pode acontecer o discípulo receber algo, mesmo que o professor nada tenha. Mas havendo um limite para isso, o discípulo pode deixar de fazer progressos».
Para Ranade, o brâmane [o membro da casta religiosa] é quem realizou Brahman, a Divindade, ou seja, aquele que conseguiu estabelecer uma comunicação fácil com Deus e para quem nada é mais querido ou amado que a forma com que Deus se lhe manifesta.
A sua sadhana, ou caminho de prática espiritual, assentava sobretudo na devoção ou sentimento amoroso (bhava) para com Deus e depois na meditação no nome (nama) de Deus e na sua forma (rupa). E nessa prática desenvolveu notável sensibilidade e profundidade, fazendo a dança da mente cessar (Yoga sutras, 1-2: Yoga citta vritti nirodha), e chegando ou estabilizando na atmaswarupa, a sua forma espiritual (conforme Yoga sutras, 1-3 Tada drashtuh svarup evasthanam), e discernindo até particularidades da fisiologia subtil, tal a necessidade de abrir a abertura existente no ventrículo do coração espiritual, algo que já o poeta santo Kabir cantara. Ou que o pôr em movimento simultaneamente os oito chakras ou centros-órgãos do corpo subtil, era um bom sinal de avanço no caminho para Deus.
Numa das suas cartas, quando estava doente, dizia ao seu guru: «Estou a tentar praticar a sadhana o mais possível. Muito raramente a tenho a visão suprasensorial da lua crescente azul. Se recuperar a saúde eu praticarei a repetição do nome de Deus pelo menos uma hora duas vezes por dia.»
Muito era o seu amor por Deus, e pela iluminação das almas, alegrando-se quando sabia que elas avançavam na devoção, e assim uma vez começou a chorar ao pensar que eram tantas as almas que desperdiçavam o seu tempo terreno sem tentarem conhecer ou ligar-se a Deus, exclamando: «O que sucederá a esses pobres seres?» Vemos bem como gurudev Ranade se diferenciava dos que pensam que as pessoas mal morrem  logo são encaminhadas por um túnel de luz para planos elevados e são recebidas por familiares ou guias.
Crítico era também da ilusão da ciência como nova religião, apontando o exemplo de Descartes pois apesar dos seus conhecimentos científicos e matemáticos duvidava ainda da existência de Deus, que para Ranade era a única Realidade verdadeira e perene, e com a qual comungava diariamente nas suas meditações silenciosas, por vezes bem longas.
Sadaguru Bhausahib Maharaj (1843-1914), o mestre de Guru Ranade 

A sua compreensão dos avataras, ou incarnações de Deus, não era a tradicional (tal como é expressa na Bhagavad Gita), segundo a qual Deus avatariza ou desce num corpo físico para proteger os bons ou os seus devotos e derrotar os inimigos, mas uma mais subtil: o avatar é uma visão de Deus que desce do alto e manifesta-se diante de alguém numa forma específica, sem ser num corpo físico, sugerindo mesmo que tal se pode considerar análogo ao Espírito, o Atman, que assume luminosamente a forma do corpo do indivíduo. E é pelo fogo da aspiração devocional que o discípulo consegue receber do guru, do espírito ou da Divindade a percepção beatifica da unidade, ou da presença unitiva divina, entre eles. 
É a repetição do nome da Divindade o meio principal que fará aumentar a visão da luz divina e diminuir a identificação ilusória à personalidade, permitindo que a unidade da alma espiritual com Deus seja sentida e realizada.
Acerca desta repetição do nome de Deus, Ranade deixou alguns ensinamentos valiosos, tal o de dizê-lo e simultaneamente ouvi-lo, primeiro em voz alta e depois só silenciosamente, conseguindo ao fim de algum tempo que o nome divino se pronunciasse interiormente sem esforço da sua parte. 
Mas outro nível mais completo da meditação acontecia quando a luz, a cor e a forma do seu Atman, a sua swarupa,  também chamado o Antaryamin, eram por ele vistas no olho espiritual, conforme até o ensinamento dos dois primeiros sutras de Patanjali já referidos, ou quando olhava para o vasto espaço de dia ou de noite, e unia o seu Antaryamin (o habitante ou regente interior) com Bahiryamin (o transcendente, Brahman, a Divindade), crescendo por essas percepções meditativas interiores (por vezes bem prolongadas e acima de fomes e dores)  a devoção (bhava), o amor (prema), a adoração, a beatitude (ananda), a unificação divina.
Possamos nós persistir mais nas meditações, nas repetições devotas dos nomes sagrados, e estabilizar mais na harmonia e paz do nosso ser espiritual, atman, na unidade divina. E possam o guru Ranade ou outros mestres, santos e santas guiarem-nos na intensificação relacional sábia e amorosa com a Divindade e a Humanidade.

terça-feira, 2 de julho de 2024

Afonso Cautela, discípulo de Camões e Antero de Quental: sonetos juvenis, um camoneano e dois anterianos. Da sua poesia reunida "Lama e Alvorada".

                             

A recente e meritória publicação da obra poética completa de Afonso Cautela, realizada por José Carlos Marques, sob o título Lama e Alvorada, em dois volumes, permite-nos conhecer dezenas de poemas inéditos, a maioria datados, e  discernir melhor as múltiplas tendências e fases no seu percurso poético criativo lírico, de crítica, de ironia e de idealismo, e assim encontrar, na sua época mais juvenil, com 13 e 14 anos, os veios e sopros baptismais de Luís de Camões e Antero de Quental. A recente participação no IX encontro do círculo de poesia do Montado do Freixo do Meio, organizado pelo Manuel Calado, a Cassandra Querido e a Fátima Sequeira Remédios, e dedicado a Afonso Cautela (com a presença da sua filha Cristina), na qual mencionei tais veios, como ainda as de Walt Whitman e de Álvaro de Campos-Fernando Pessoa, impulsionou-me a escrever este artigo, provando tais asserções com três sonetos.

No Soneto III, escrito em Beja a 13-3-1946, Afonso Cautela inicia-se com mais juvenil doçura e esperança no Amor e, seguindo a linha platónica de reconhecimento do Bem, do Belo e do Verdadeiro primordiais ou arquétipos,  glosa o famoso soneto de Camões: 

«Amor é um fogo que arde sem se ver,
é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;
é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;
é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor
nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?»

Pode ser uma imagem de 1 pessoa

Eis como o glosou Afonso Cautela, menino de treze anos:

«Amor é fogo que arde que ilumina
As trevas desta vida descontente.
Como um bem guiará eternamente
No caminho feliz a nossa sina.

Puro como a rosa amena e fina
Terno o seu calor manso e dolente.
Como eterna verdade que não mente
A saudade o amor sempre confina.

E mesmo sendo assim todo o alento,
Da vida o mais doce e belo encanto,
Em suas garras somos fraco vime...

Abate, esmaga e fere com crueza
Sem atender ao mal de tal vileza,
- ele o belo imenso, o bem sublime».
 
Poderemos observar como Afonso Cautela, a partir do seu contacto puro com a terra e o céu alentejano e com a sua aspiração optimista juvenil, sente e vê o Amor como a força de realização dos arquétipos fundamentais do Belo e do Bem, como a estrelinha do caminho, como o Anjo da Guarda da vida, ora exigente ora doce na sua modelação da nossa alma imortalizável.  
 

Já com ecos de Antero de Quental, seja de temática ideológica, de sentimentos ou de imagens, encontramos dois poemas: primeiro o Soneto V no qual a aspiração a um estado de sonho fantástico é afirmada, embora em Antero houvesse em geral mais o encontro com  ilusão do mundo e a meta ou aspiração ao Não-ser, ou simplesmente a irmã Morte, tal como encontramos por exemplo nos sonetos Nirvana ou no VI do Elogio da Morte.

O original manuscrito do poema de Afonso com 4 anos na contracapa do II volume da Lama e Alvorada.

Sonhei a fantasia inanimada,
Sonhei a vã quimera, um louco ideal.
Sonhei o tudo imenso, o tudo nada.
Sonhei da vida a morte, o bem, o mal.

Vivi na bruma escura quão cerrada
Desse sonhar imenso, desse irreal.
Vivi a vida triste e desesperada,
Eu só, só terra e pó, fui imortal.

E perco o gosto amargo de viver,
Perco o receio, o medo de morrer,
Imploro da vida a morte que não vejo.

Quero viver num sonho de incerteza,
Trocar da vida o peso e a vileza
Por um sonhar eterno, é meu desejo!
                                                                       Beja, 20-1-1947

Já mais claro como de matriz de inspiração é o soneto seguinte de Antero de Quental dedicado piamente à Virgem Santíssima,  mas que Afonso Cautela, no seu soneto VII, sem se quedar na entrega  piedosa a Maria divinizada,  o glosará projectando o seu amor e unção do Eterno Feminino para uma mulher amada. Oiçamos Antero, primeiro:
 
À Virgem Santíssima, 
Cheia de Graça, Mãe de Misericórdia

N'um sonho todo feito de incerteza,
De nocturna e indizível ansiedade,
É que eu vi teu olhar de piedade
E (mais que piedade) de tristeza...

Não era o vulgar brilho da beleza,
Nem o ardor banal da mocidade...
Era outra luz, era outra suavidade,
Que até nem sei se as há na natureza...

Um místico sofrer... uma ventura
Feita só do perdão, só da ternura
E da paz da nossa hora derradeira...

Ó visão, visão triste e piedosa!
Fita-me assim calada, assim chorosa...
E deixa-me sonhar a vida inteira!»

Oiçamos agora o Soneto VI de Afonso Cautela:

Sonhei num sonho imenso de amargura
De ti somente ser eterno amante.
Fui sonho de uma noite já distante
Desejo louco que ainda em mim perdura.
 
E esse louco desejo foi ventura
Que vi brilhar imensa e fulgurante.
Da minha vida estrela radiante,
Foi ambição amarga, negra e dura.
 
Para quê acalentar este desejo
E querer o teu amor que em vão bosquejo,
Sofrer, um dia tarde, ao recordar?!
 
Deixa-me sempre ver a tua imagem,
Idolatrar-te a ti grata miragem,
Em ti eternamente quero sonhar.
                                                                                          Beja, 15-4-1948 
 
 
Saudemos estas três grandes almas universais mas de raiz lusitana, três elos da Tradição poética e espiritual portuguesa, agora nos mundos espirituais. Que se possam comunicar e inspirar-nos!

segunda-feira, 1 de julho de 2024

Prefácio de Georges Bernanos aos "Poemas" de Jorge de Lima, em 1939, e leitura do poema "Espíritu Paráclito", em vídeo.

George Bernanos (20-2-1888 a 5-VII-1948), o lutador heróico na 1ª grande guerra, o escritor católico de grande sucesso após 1926, o notável homem de acção anti-fascista na guerra civil espanhola, pois após as suas vivências pró-humanas e anti-franquistas na guerra de Espanha e sendo crítico de Hitler e Mussolini, preferiu emigrar para o Brasil onde, pouco depois de chegado, em 1939, conheceu Jorge de Lima e, lendo a sua poesia e ficando encantado com ela, resolveu pagar o seu reconhecimento com um valioso prefácio escrito e publicado em francês no livro Poemas, no qual descreve a sua desilusão da pátria francesa e o seu encanto com a poesia de Jorge de Lima, levando-o a dissertar com grande sensibilidade sobre a Poesia, arte que ele não desenvolvera na sua obra literária mas que manifesta conhecer muito bem, valorizando-a como a voz da aspiração humana, por entre as suas dores e lamentos, à liberdade, ao amor, aos céus, à religação divina.
 A obra contém nas suas cento e trinta e sete páginas, as sete do prefácio que li e gravei, e cerca de sessenta poemas traduzidos para espanhol, dos quais lemos um, o V, Espíritu Paráclito, e saiu nas oficinas gráficas de A Noite, no Rio de Janeiro. 
Da excelente relação por mais de três anos que George Bernanos conseguiu com a terra, o povo e os intelectuais brasileiros, pois além de Jorge de Lima deu-se com Álvaro Lins, Alceu Amoroso Lima, Frederico Schmidt, Virgílio de Mello Franco, Hélio Pelegrino e vários outros, podemos saber por vários testemunhos, livros e estudos (vários on-line) existindo mesmo um museu George Bernanos, em Barbacena, onde ele estabilizara antes de ser chamado para a França pelo general de Gaulle, após a derrota do nazismo alemão, e onde, não sentindo o ambiente afim do seu idealismo, poderá ter pensado com saudades no fabuloso mundo emergente brasileiro que deixara...

                                           
O exemplar que utilizamos tem a particularidade de ter uma dedicatória agradecida de Jorge de Lima a Luís Forjaz Trigueiro (que conheci e ainda o visitei em sua casa) escrita em português, tornando a obra de certo modo trilingue. 
                              

Como George Bernanos foi um escritor bastante valioso, seja pelos romances (tal os Sob o Sol de Satan e o Diário de um Pároco de aldeia), seja pelos seus ensaios e manifestos, seja pelo seu texto para o filme que sairá como o Dialogues des Carmelites (on-line) e que recusou até entrar na Academia Francesa, e é hoje quase desconhecido em Portugal, e ainda porque não lera o prefácio e me pareceu valioso, resolvi traduzi-lo gravando-o, e creio que valeu a pena, tanto mais que ainda houve tempo para ler, desta vez na tradução espanhola, o poema Espíritu Paráclito, sem dúvida forte e inspirador. 
De realçar a sua noção dos ciclos dos estados e impérios, muito actual (adveniat BRICS), e a forte e bela valorização da poesia expressa por Bernanos e que para mim, após ter participado no IX encontro do círculo de Poesia no Montado do Freixo do Meio dedicado a Afonso Cautela, outro militante da liberdade e poeta, veio mesmo em sincronia inspiradora de almas, como acabei de referir até em nota da leitura. 
Jorge de Lima (23-4-1893 a 15-XI-1953)
Boa audição, e que estas almas poéticas e luminosas, Georges Bernanos, Jorge de Lima, Luís Forjaz Trigueiros e Afonso Cautela brilhem no Empireu, no Parnaso, no mundo espiritual e nos inspirem...