Em C. G. Jung, o seu mito no nosso tempo, editado originalmente em 1972 (C. G. Jung, seine mythos in unserer seit, e que li na edição francesa de 1988), Marie-Louise von Franz (1915-1998), oferece uma sábia visão do ser, vida, pensamento e obra de Carl Gustav Jung a partir das suas acções, narrativas e vivências (onde destaca as oníricas), dividindo a obra em quatorze capítulos e citando frequentemente conhecidos filósofos, místicos, gnósticos, antropólogos e historiadores das religiões e mitos, inserindo assim o mais possível Jung seja na perene tradição hermética e alquímica europeia, e até universal, já que há bastantes referências às tradições orientais, seja na moderna psicologia e antropologia, referenciando até os autores que segundo Jung e Marie-Louise ora erraram nas suas teses ora se afinizaram com Jung, tal neste caso, por exemplo, o teólogo bem profundo Paul Tillich.
A obra é antecedida duma Introdução, na qual confessa a sua intencionalidade: explicar o
pioneirismo e a importância de Jung no estudo do inconsciente, já que «para Freud o inconsciente era um fenómeno secundário formado de desejos incestuosos recalcados que poderiam ser também conscientes», e a sua
influência no contexto da história civilizacional, nisto exagerando um pouco pois, depois de dizer que ele estava muito desinteressado da opinião que os outros («o que era raro entre pessoas marcantes») faziam de si, justifica a enorme correspondência mantida por ele, «para não ficar interiormente isolado com as suas ideias, mas mais ainda na convicção que da realização delas dependia em boa parte a sorte da nossa civilização ocidental».
Marie-Louise von Franz (1915-1998) surge aqui, como noutras partes do livro, quase como uma evangelista de um novo mestre ou de uma nova mensagem redentora. Baseava-se na expectativa que as «artes, religiões e comportamentos sociológicos estavam a ser iluminados completamente de novo pela descoberta do inconsciente, e que de uma concepção justa ou falsa deste inconsciente depende o julgamento de valor que a nossa civilização faz sobre si mesma, e talvez mesmo a sua sobrevivência».
Há nesta crença, natural para quem foi secretária de Jung e o acompanhou em tantas investigações e compreensões psicológicas ou mesmo curas, uma excessiva valorização do trabalho sobre inconsciente, «o solo maternal autónomo e criador da vida psíquica normal», e dos efeitos transformadores da psique humana e da civilização que os estudos de Jung sobre a importância da criatividade do inconsciente causariam.
Essa falha de sucesso e impacto previsto, ou melhor desejado, acaba Marie-Louise por a justificar, quando, sincera mais do que ingénua, interrogando-se sobre o que é o inconsciente, confessa que «em verdade, é uma expressão objectiva moderna para designar uma experiência imemorial da humanidade. Ela abraça elementos estranhos e desconhecidos do nosso mundo interior, pulsões de forças capazes de nos mudar subitamente, sonhos e ideias espontâneas que, sentimos, não são criações próprias nossas [ou serão, de um nós mais vasto?], mas sobem do fundo de nós próprios dum modo estranho e todo poderoso. Noutras épocas estas acções foram atribuídas a um fluido divino (mana) a um deus, a um daimon ou a um espírito. e exprimia-se assim dum modo impressivo o sentimento da existência objectiva e mesmo estranha dessas forças, e simultaneamente a experiência de uma realidade toda poderosa à qual se encontra entregue [ou submetido] o eu consciente. Desde a sua idade mais tenra Jung, fez tais experiências de sonhos, de ideias espontâneas e de factos interiores, que ele conta no seu livro a Minha Vida. Mesmo se os fenómenos que ele experimentou foram muito frequentes e intensos e os tomou bastante a sério, eles não oferecem em si mesmos qualquer carácter de raridade.» Observamos um reconhecimento que o inconsciente é uma expressão moderna para algo que sempre existira e que fora reconhecido no passado, recebendo certos nomes que o objectivavam no exterior ora como energia poder, ora como o resultado da acção de certas entidades, mas de facto esses sonhos, ideias espontâneas e factos interiores seriam simplesmente do fórum psíquico profundo de cada ser.
Continua logo de seguida Marie-Louise: «Todo o medicine-man primitivo vive das suas visões e dos seus sonhos, todo o caçador recebe o seu saber de inspirações sobrenaturais, todo o ser humano religioso conhece experiências semelhantes a dado momento da sua vida. No próprio seio da nossa civilização existem de certo numerosos seres que experimentam tais estados semelhantes. Contudo raramente falam, com receio do choque do repúdio pelo meio ambiente racionalista». Observamos M.-L. von Franz, talvez com pouco rigor, equiparar e unificar vários fenómenos com diferentes origens, chegando mesmo a usar a expressão "inspirações sobrenaturais", curiosamente para o exemplo mais terra a terra, o faro do caçador, sob a designação de actividades do inconsciente.
Continua em seguida, explicando como Jung estendeu o seu interesse «às manifestações psíquicas mal afamadas às quais se dá o nome de parapsicológicas», registando que a sua 1ª obra, a tese de doutorado, era sobre tais fenómenos, e como foi estabelecendo a sua interpretação deles como manifestações do inconsciente não recalcado mas potente na sua força de devir:«Jung descobriu nessa ocasião que o "espírito" todo poderoso que se manifestava nas sessões mediúnicas descritas por ele era uma parte ainda não integrada da personalidade da médium, parte que se tornou um aspecto essencial da personalidade dessa jovem no decorrer da sua maturação. e deixou de repente de se manifestar de modo autónomo, como um "fantasma". Desde então um passo essencial foi feito em direcção das suas descobertas posteriores. Ele adquirira a intuição da existência de fenómenos psíquicos objectivos inconscientes e contudo relativamente religados a uma pessoa onde eles não constituem um elemento recalcado, mas um vir a ser [ou devir] novo. Toda a sua obra posterior foi consagrada a explorar a fundo este mistério que é a qualidade criativa do inconsciente».
Resta saber se existência das forças psíquicas existentes no nível inconsciente da psique humana exclui a existência de espíritos individuais reais no mundo subtil ou astral planetário e a sua capacidade de se manifestarem nas auras e psiques humanas, podendo pensar-se que é apenas um núcleo ou uma sub-personalidade do inconsciente.
Depois dessa boa clarificação do que era o inconsciente que, por contraposição ao eu consciente que se desenvolve ao longo da vida, Jung chamava também o seu génio, daimon interior e o seu inspirador, sem lhe querer dar um valor absoluto como alguns inspirados religiosos fizeram, Marie-Louise von Franz realça que actualmente a demanda profunda necessária, tal como Jung fazia, é «na camada mais natural, mais original e mais universal do ser», e que está associada aos estados primitivos do fenómeno religioso, ao chamanismo, e não ao cristianismo eclesiástico, que para Jung transmitia pouco ou nada de respostas. E tal como Jung teve de «procurar em si mesmo na psique inconsciente as instruções para o seu caminhar», assim cada pessoa tem de se «encontrar com o seu próprio deus ou daimon, com o que sobe das suas profundezas, carregado de potência: emoções, afectos, fantasmas, inspirações criadoras e bloqueios», com razão apelando-se a uma unificação da concepção transcendente divina com a vivência imanente dela.
Os títulos dos valiosos capítulos, assentes nas vivências (sobretudo oníricas), e nas explicações interpretações de Jung, e cheios de referências a autores, tradições e casos, são os seguintes: I. O deus subterrâneo, II. A lâmpada-tempestade, III. O médico, IV. Simetria em espelho e polaridade da psique. V. A viagem no além, VI. O antrophos, VII. O mandala, VIII. Coincidentia oppositorum, IX. Conhecimento matinal e conhecimento vespertino, X. Mercúrio, XI. A pedra filosofal, XII. Penetração no "unus mundus". XIII. O indivíduo e sociedade. XIV. O grito de Merlim. E conclui com uma tabela cronológica da vida de Jung e a sua bibliografia.A tabela cronológica ou biográfica tem trinta e três datações e vamos transcrever as principais:
1875 26 de Julho, nascimento de Carl Gustav Jung, filho do pastor Johann Paul Achilles Jung (1842-1896) e de Emília Preiswerk (1848-1923) em Kessil (Thurgovie, Alemanha). 1900 Conclui os seus estudos de Medicina. 1903 casa-se com Emma Rauschenbach, filha de um industrial e tem cinco filhos. 1913 Qualifica-se para ser o docente de Psiquiatria na Faculdade de Medicina, que exercerá até 1913, e médico chefe da clínica psiquiátrica de Zurique. 1907 Encontro com Freud. 1911 Fundação da Sociedade Psicanalítica internacional da qual será Presidente até 1913, quando se separa de Freud. 1916 Fundação do Clube Psicológico em Zurique. 1918 Estudos sobre mandalas. 1918-1926 estudos sobre os gnósticos. 1925 Viagens de estudo aos povos indianos nos USA e aos habitantes do monte Elgon, no Quénia. 1932 Prémio literário da vila de Zurique e Presidente da Sociedade Médica Internacional de Psicoterapia. 1933 a 1952 Participação nos famosos encontros de Eranos em Ascona, onde conhece e convive com os principais sábios da antropologia espiritual. e do que resultou um conjunto de livros muito valiosos das conferências proferidas. 1934 começo do estudo da alquimia. 1938 viagem curta à Índia. 1944 Professor de Psicologia Médica na Universidade de Bale. Fundação e Presidente da Sociedade Suíça de Psicologia prática. 1948 Fundação do Instituto de Jung em Zurique. 1961, 6 de Junho desincarna na sua casa em Küsnacht.
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Como terá sido animicamente a desincarnação de Jung? Estava desperto para avançar logo no além em corpo psico-espiritual? Receberam-no, ou acompanhou-o alguém?
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Destaque o capítulo V, a "Viajem no Além", por ser bem valioso e embora já o tenha abordado parcelarmente num artigo, em que anotei o que me parecem certas perspectivas menos correctas, voltei publicar algumas partes, acrescentando várias outras.
Assim no 1º parágrafo a afirmação bem discutível: «Ao lado do
sacerdote, que vela sobre o ritual e as tradições da sociedade,
encontra-se a figura do shaman, que se distingue por uma experiência
individual dos espíritos (ou seja do que nós chamamos hoje o
inconsciente) e que é especialmente responsável pela cura de indivíduos e de problemas da colectividade». A
fonte adoptada, ou no fundo justificadora de tal equiparação que o "conhecimento do inconsciente = shaman" por Marie-Louise von Franz é Mircea Eliade e remete para o seu volumoso
e bem documentado Chamanismo e as técnicas arcaicas do extase.
Ora
é enganador, ou então muito reducionista. considerar que os
espíritos são o inconsciente. Podemos quanto muito dizer que o mundo
dos espíritos não nos está em geral consciente, ou que estamos
inconscientes deles, mas considerar que entidades individuais e
determinadas, os espíritos, são apenas aspectos, configurações ou símbolos que brotariam ou habitariam o
inconsciente é redutor, e insere-se numa linha de antropologia algo materialista que considerava os espíritos como animações e simbolizações que o ser humano fazia dos seus desejos, medos, ou ainda dos elementos da natureza. Poderemos pensar ainda que ela desse modo podia considerar mais fundamentadamente C. G. Jung como o grande shaman da época.
Talvez uma correcta perspectiva seja admitirmos que no nosso mundo dos sonhos, provenientes do inconsciente profundo ou de um estado de consciência subtil que nos é semi-consciente, os espíritos ou outras pessoas podem-se
manifestar e portanto implicitamente poderíamos ficar mais conscientes de que somos espíritos individuais e que nos movemos enquanto tais, ao conseguirmos não nos limitarmos à identificação corporal adormecida, conservando a consciência individualizada noutra dimensão de vida, subtil. Tal todavia não é tão frequente, embora alguns afirmem facilmente as suas viagens astrais, talvez algo de ânimo leve e haja ainda os sonhos lúcidos.
Podemos ver neste passo e no decurso da obra que Carl G. Jung
e M.-L. von Franz tendem a diminuir ou a não valorizar nas individualidades a visão espiritual de certas realidades e propõe antes um saco ou fundo vago e amplo, o inconsciente, acessível pelos sonhos, as
imaginações, os desenhos e as terapias de psicólogos e psiquiatras.
A visão do processo da vida como um caminho para a individuação do ser humano na perspectiva jungiana não parece ser verdadeiramente o da auto-consciência espiritual, o da ligação
directa com a centelha do espírito, antes assemelhando-se a mergulhos mais ou menos criativos e com mais ou menos sentido num inconsciente individual e colectivo, embora pelos seus estudos crescentes com o tempo de alquimia, hermetismo e espiritualidades orientais Jung tenha vindo a poder compreender melhor as dimensões psico-espirituais do ser humano.
Como a ligação ao espírito individual é fundamental mas não é fácil dada a sua subtileza, compreende-se que Jung não a tenha conseguido realizar, empenhando-se mais em diversos meios que podem ajudar a limpar e a centrar o inconsciente e o que da personalidade e seus conteúdos mentais deverá renascer para se atingir uma individuação harmoniosa, o que tem a sua razão de ser dado que trabalhava sobretudo com doentes e não com místicos, gnósticos e iniciados, que contudo estudava.
Outro aspecto discutível é Marie-Louise dizer do shaman «é ele que cura os doentes pelo seu transe, acompanha os mortos
no reino da sombra e serve de mediador entre eles e os seus deuses.
Num certo sentido ele vela pelas suas almas»,
Eis afirmações algo exageradas, tomadas de Mircea Eliade, possíveis num ou noutro caso de bons shamans, mas
de modo algum com este tipo de absoluto: quantos deles conseguem ver a ascensão das almas, quantos conseguem acompanhar na
visão, ou com meras energias que possam enviar, uma alma
no caminho ascensional post-mortem, tão individual, tão subjectivo,
tão misterioso?
Estas viagens no Além, de que nos ficaram vários relatos iranianos, judaicos, greco-romanos e da literatura medieval cristã e islâmica, e que Marie-Louise referencia e descreve bem, são em geral mais imaginações do que visões espirituais objectivas, tal como o ver à distancia, o sair do corpo, a clarividência verdadeira do processo da morte e dos caminhos ascensionais. Reflectem em geral as crenças religiosas da época e o que foi mesmo visão ou vivência espiritual, não condicionada por crenças nem apenas imaginação, tem sempre de se tentar discernir.
Bem
se pode clamar que o shaman serve de mediador entre os seus pacientes e os seus
deuses, pois em geral os deuses representam entidades e planos bem
próximos da Terra e que nem exigirão grandes mediações, embora
certamente quem executa as danças ou orações que mexem as energias
faça algo desse trabalho de elevação dos mortos, faltando saber ainda se há uma existência real dos tais deuses no post mortem, para os seres que acreditavam neles, bem como que forças são precisas para as pessoas poderem despertar mesmo e avançarem conscientes nos mundo subtis por si próprias, ou mais provavelmente com algum tipo de guias ou mestres, seja o shaman incarnado, sejam já viventes no além.
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Uma shaman moderna coreana, país onde se conserva muito a tradição.
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Um
pouco mais à frente outra afirmação algo mistificante ou exagerada, de
Mircea Eliade, algo frequente nele e em geral diminuindo a força
espiritual de cada ser: «O shaman, diz Eliade, é
o grande especialista da alma humana: só ele a vê, pois ele
conhece a sua forma e o seu destino». Como se ele fosse o único ou quem mais tem sensibilidade, intuição
clarividência. Ou como se a clarividência que ele possa ter seja assim
tão segura que veja o presente e o futuro de um ser. Sabemos bem
como a maior parte dos shamans tem uns vislumbres dos planos
inferiores do Cosmos, frequentemente ligados a espíritos elementais
e de animais.
Não vamos discutir agora o que entendem por espírito Eliade nem Jung e Maria-Louise von Franz, para eles mais símbolos de que entidades, e a que "forma do espírito" se refere Mircea Eliade como vista pelos shamans, apenas sugeriria que para tal afirmação ser minimamente correcta a interpretássemos neste sentido: eles podem ver algumas almas-espíritos, nos seus corpos subtis, já fora dos corpos físicos mas muito provavelmente o núcleo íntimo do espírito, a centelha, escapa-lhes e portanto a forma primordial dele...
Em
seguida cita Marie-Louise von Franz várias viagens no além que podem ser vividas em
sonhos e como desmembramentos e mortes sucedem nessa linha iniciática
de confrontações e de morrer e renascer e que Mircea e muitos outros antropólogos têm
encontrado em muitos povos, sobretudo africanos e asiáticos mas também europeus e que têm algo de iniciação de jovens para discernir e vencer os males, devendo-se destacar ainda tal universalidade com o dito registado na Antologia grega, "Morrer é ser iniciado" e que entre nós Antero de Quental, Joaquim de Araújo e Fernando Pessoa poetizaram belamente, como já abordei neste blogue.
Faltaria
ainda discernir a que níveis se peregrina no além, se é meramente no inconsciente onírico, ou se tais viagens acontecem no mundo subtil ou astral e são fontes de informação fidedigna, tal como também discernir-se se os espíritos
que falam pela boca do shaman não são senão falas automáticas (quais escritas automáticas de inspirados, mediuns ou surrealistas) de núcleos do seu psiquismo ou inconsciente (como Jung discernira, pelos menos nos casos que observou) ou então possessões interiores e em geral de espíritos pouco desenvolvidos ou apenas entidades menores, embora certamente pudesse haver guias bons, mestres de linhagens shamanicas e que ajudavam o que estivesse incarnado e em acção.
Se os centros espíritas em quase todo o mundo são suspeitos nas suas mensagens, sobretudo quando é Jesus ou outro grande ser a debitar banalidades morais, quanto mais não o serão as múltiplas canalizações actuais dos canalizadores, mestres ou shamans da nova Era, de Elizabeth Claire Prophet a Babaji, de Rampta e Kryon a Denis Walsh, este com a arrogância total de assumir o que escreveu como resultando de um falar directamente com Deus, claro, da sua imaginação.... Ora nestes casos não são mais do que pessoas a falarem por si próprias e a mistificarem, ou então a receberem alguns fragmentos ou influências seja do inconsciente colectivo ou individual, seja de entidades astrais, em geral bem menos elevadas do que se pensa e se afirma.
Talvez neste capítulo um
dos aspectos mais interessantes referidos, pelo que pode apontar para o anjo da guarda ou um guia, seja o que
diz Eliade e seguindo-o Marie-Louise: «Muitos shamans possuem assim uma
esposa celeste invisível, outros tem como auxiliar supremo o
espírito de um grande shaman defunto, um velho sábio que os conduz,
e que frequentemente, durante o transe, fala directamente através da
sua boca».
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Uma shaman da zona de Clayoquot na ilha de Vancouver Island. Imagem de final do séc. XIX pelo notável etnógrafo e fotógrafo dos Índios Edward Curtis. |
Pese a certa popularidade que alguns tipos de shamanismo têm ganho dentro dos grupos e actividades estilo nova Era, em certos casos com sessões de Ayahuasca ou de baba de Sapo (que chegaram a matar um amigo português, o Miguel: muita luz e amor para ele), tal não é o mais indicado para os nossos dias, em especial as incorporações de entidades invisíveis, ou o entrar-se em
transe e alguém falar por nós, aspecto primitivos de inspiração e que não
levam nem a planos e conhecimentos elevados, ou a estados de harmonia
e saúde, pois o verdadeiro diálogo com os mestres ou guias, a haver e é raro, passa-se no nosso interior e sem incorporações e vozes exteriores. Mas certamente o shamanismo nos seus locais tradicionais e milenários e realizados por pessoas dotadas de certos poderes psíquicos e abnegadas terá um papel valioso e importante nas populações locais nos casos em que necessitam de tal clarividência, conhecimentos, poderes, curas e ligações.
Do melhor
que transmite Marie-Louise, na esteira de Eliade, é quando diz que os shamans inventam as suas canções e orações, pois tal
é certamente algo que todos devemos fazer: orar do coração,
espontaneamente. E eventualmente irmos descobrindo os sons, as invocações, as jaculatórias que harmonizam ou elevam melhor os seres e os ambientes ou que nos religam com os níveis elevados de consciência.
Poderemos dizer que os shamans representavam nas populações pré-históricas ou ditas mais primitivas os seres que se notabilizam ou destacavam por certas capacidades de sentirem, identificarem e conhecerem alguns tipos de energias e entidades subtis, nomeadamente as vitais e anímicas, humanas e da natureza, e por possuírem certos poderes psíquicos, servindo-se de tal para gerarem, com mais ou menos espetacularidade, resultados e efeitos que as sociedades em que viviam precisavam e acolhiam com respeito, em certos casos sendo verdadeiramente polos entre a terra e o céu dos mortos e de algumas formas divinas que acreditavam e nutriam.
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Mulher shaman nos Altai, Sibéria, zona de uma das tradições mais antigas e conservadas de shamanismo.O ritmo do tambor vai provocar a intensificação e alteração de consciência necessária a viagem no além, o que era em geral facilitado ainda pela ingestão de cogumelos ou outras substâncias indutoras seja de visão subtil seja de alucinações.
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Uma certa ressurgência destas formas primitivas de espiritualidade que designamos por Shamanismo tem a sua razão de ser face a sociedades actuais tão materialistas e artificiais, despidas de comunhão com a natureza e os seus seres e forças, mas há que ter cuidado para as pessoas não se deixarem envolver em egrégoras ou formas de pensamento de grupos limitadoras e em práticas de ligação com seres ou entidades meramente etéricas e astrais e despidas do conhecimento do espírito e dos planos mais elevados do Cosmos.
Embora o que conheçamos do shamanismo seja como que a religião natural mais antiga, tanto na Europa e na Ásia, como em África e nas Américas, não devemos mitificar, atribuindo aos shamans, aos feiticeiros e magos tantas capacidades elevadas, e antes cumpre-nos saber discernir bem como podem ser nocivas para o cérebro ou mesmo a psique a ingestão de certas poções, embora certamente a comunhão com a Natureza e a utilização das ervas medicinais, ou dos cinco elementos, seja um dever de qualquer ser que quer sobreviver à massificação consumista e à opressiva dependência dos fármacos, e nestes sentidos todos nós devemos ser shamans, medicine man, ou meigas, da Galiza irmã...
Embora Jung tenha estado em África e na América do Sul, em contacto com povos mais plenamente imersos na Natureza, Marie-Louise acaba por destacar (no 2º capítulo) mais a sua relação naturalista com Goethe e a suas investigações sobre as plantas, as cores e as metamorfoses que estava muito a par dos teósofos e hermetistas cristãos daqueles tempos. Na mesma linha de valorização do goethianismo esteve Rudolfo Steiner (1861-1925), com desenvolvimentos impressionantes (por ele e seus discípulos) no estudo das cores e formas, da cura e da agricultura biodinâmica, já que estava dotado de uma clarividência, ou capacidade de conhecer os mundos superiores, certamente com subjectividades. Sabemos porém que Jung não apreciou muito Steiner e punha em causa a sua clarividência, preferindo manter-se numa aproximação factual, objectiva, científica, valorizando mais o trabalho dos sonhos, a observação do inconsciente seu e dos seus pacientes e o desenho, estudo e contemplação das mandalas, que têm valiosos efeitos terapêuticos e que ele desenhou até genialmente, algo que Rudolf Steiner também realizou, tal como Bô Yin Râ, para mencionar dois mestres espirituais a que Carl Gustva Jung se referiu com alguma desconfiança, tal como já descrevi neste blogue.
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Jung apontando para o centro do microcosmo da mandala, o Eu individuado ou harmonizado
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Neste capítulo Quinto, que temos abordado levemente, descrevem-se os sonhos obtidos por Jung ao longo dos anos e que ele considerou como uma viagem no além e no qual interagiu tanto com o seu astral individual como com o colectivo da época, bem patente nos que teve antecedendo a 1ª grande guerra. Contudo, Jung identifica certas personagens arquétipas neles e sente bastante as suas lutas contra as sombras e o mal como o seu caminho e do Ocidente, «atravessar o inferno das paixões, resgatar a sombra e não como «o Oriente que aspira a libertar-se da Natureza e dos opostos interiores». Marie-Louise dedicará no final do capítulo umas seis páginas à apreciação e interacção que Jung fez com o Oriente, e em especial com a China, e o seu Tratado da Flor de Ouro.
Valorizando um diálogo ou o desenvolvimento de uma imaginação activa face ao inconsciente, Jung não negava que com isso se pretendesse chegar ao ser divino ou universal, pois era uma fase transitória rumo à personalidade total, ou individuação, em que se adquiria o seu próprio ser. Mas afirmou: «a Natureza, a alma e a vida são para mim a divindade», no que representa uma certa limitação pois a Divindade ainda que imanente no ser humano e na Natureza também é em Si mesma, como fonte, e Ser primordial. Por isso o culto, adoração e conhecimento da Divindade em si ou na sua manifestação pessoal no íntimo de cada ser, acabou por não acontecer tanto nele, ou não foi tão exprimida por ele, talvez algo limitado tanto por um inconsciente seu demasiado forte ou independente como por um contexto adverso da religiosidade institucional, que para ele estava desprovida de vitalidade, e que sentira mesmo dramaticamente na vida de seu pai, pastor protestante mas morto interiormente para qualquer vivência do Divino.
Para restaurar a sua gnose e fé no ser humano, na psique e na sacralidade do Cosmos, Jung teve de aprofundar muito as profundezas, e em sofrimento tantas vezes, do inconsciente de si mesmo, dos seus pacientes, do humano, pelo que certamente foi um medicine man, um shaman, com as suas obras terapêuticas, diálogos e livros tentando apontar métodos e caminhos que ajudam a Humanidade a ser e a viajar melhor tanto no aqui e agora, como no além, interior e exterior.
Que a Divindade, a Natureza fecunda, os mestres e os anjos os abençoem e a nós todos, para que tanto das profundezas do inconsciente, como da claridade do espírito e da transcendência, nos chegue a Luz esclarecedora e o Amor criativo e libertador.