Apesar
de já ter mais de uma centena de anos a biografia do grande compositor e
pianista do final do século XIX António Rubinstein, escrita pelo
artista, comediógrafo e musicólogo Higino Augusto Mascarenhas da Costa Paulino para a Gazeta Musical, Jornal Ilustrado Theatros, Musica e Bellas Artes e dada à luz a
15 de Abril de 1884, resolvi ressuscitá-la das páginas já esquecidas e
transcrevê-la tanto para se conhecer a vida de um génio musical como o
que o seu contemporâneo e meu bisavô materno Higino, Gino conforme assinava, que o ouviu tocar no S. Carlos em Lisboa, a 14 de Março de 1881, nos transmitiu na sua sensibilidade e linguagem artística portuguesa de
final do século XIX.
Higino da Costa Paulino irá posteriormente viver e trabalhar para a Índia Portuguesa, onde casou com Maria Helena de Noronha e educou sábia e artisticamente os seus filhos e filhas e, em récitas e representações teatrais, várias outras crianças de Panjim durante trinta anos, até regressar de novo à urbe lisboeta, a Campo de Ourique. Oiçamo-lo segundo a sua anímica captação e descrição do mundo, do ser humano e de Rubinstein...
Para António Rubinstein não existe no mundo ideal que o atraia, subjugue e convença, senão a arte! É a sua mãe estremecida, a sua esposa devotada, a sua filha carinhosa, numa palavra é a sua família dilecta! Fora daqui figura simplesmente um homem, cuja vitalidade se denuncia pelo pulsar das artérias, pelo movimento dum corpo que se agita, muitas vezes em desarmonia com os preceitos que a sociedade impõe.
Poucos indivíduos haverá cuja excentricidade ultrapassa aquela de que se reveste o espírito do genial artista que hoje tentamos biografar.
Em Espanha recusou fazer-se ouvir numa peça a quatro mãos com a rainha D. Cristina, alegando, com a maior sem cerimónia, que nunca tocara com amadores; em Dinamarca, convidado a tomar parte num concerto, no palácio real, saiu precipitadamente, pela simples razão de que, tendo chegado à hora aprazada, lhe disseram que sua majestade se demorava ainda o tempo preciso de concluir uma partida de whist; em Colónia, executou o programa de costas voltadas para cinco ou seis mil pessoas, pelo facto de que, entre esse número avultado de espectadores se achava o insigne o insigne professor Hiller, com quem ele tivera uma pequena discussão; de Portugal só levou recordações de Sintra, adivinhando no nosso público um temperamento anti-musical de tal ordem, que esteve para terminar a meio do concerto.
À semelhança destes, muitos casos se têm dado na carreira artística deste homem notável, e que são o cunho evidente do seu génio particular, que não é exactamente aquele que nos cumpre descrever.
Desenho de Bordalo Pinheiro, amigo de Higino, para este número da Gazeta. |
António
Rubinstein, [Anton Grigoryevich Rubinstein, Антон Григорьевич
Рубинштейн, ]filho de um negociante de lápis, estabelecido em Moscovo,
nasceu em Wechwotynez [Vikhvatinets, Baltsky Uyezd], povoação da
Moldávia, nas fronteiras russas, aos 28 de Novembro de 1829.
Foi
inquestionavelmente devido a sua mãe, uma boa pianista, a quem o filho
não desamparava um momento sequer, que António Rubinstein deveu a sua
educação musical, e tanto assim que em 1835 começou a instruí-lo nos
rudimentos desta arte. Foram de tal ordem os progressos patenteados por
essa criança, que a mãe, reconhecendo-se insuficiente para mais
amplamente os dilatar, chamou em seu auxílio Viloing, primeiro professor
de piano em Moscovo, o único a quem Rubinstein deve a sua perfeita
ciência neste instrumento. Logo aos nove anos se fez ouvir em um
concerto, causando geral impressão o seu talento precoce. Motivos
imperiosos obrigaram Villoing a ausentar-se para Paris e, renitente em
não ceder o seu discípulo à vigilância de outro professor, resolveu
levá-lo consigo para a capital da França. Aí, em 1840, instigado por
grande número de notabilidades, Rubinstein deu um concerto, executando
um reportório composto dos mais difíceis trechos de Bach, Beethoven,
Chopin, Hummel e Liszt. Foi por conselho deste último que professor e
discípulo se decidiram a visitar a Alemanha, percorrendo em seguida
Holanda, Inglaterra, Suíça e Dinamarca, promovendo por toda a parte a
mais justificada admiração. De volta à Rússia em 1843, aí se demorou
pelo espaço de um ano, não descansando de promover concertos, onde
sempre foi ouvido com inúmeras provas de simpatia. Por esta época já seu
irmão Nicolau, uma criança de seis anos, denotava extraordinária
propensão para a música, e tanto assim que Madame Rubinstein, em face de
mais um nome glorioso na sua família, resolveu partir para Berlim
acompanhada de seus dois filhos, tomando a prévia resolução de consultar
em primeiro lugar o célebre Meyerbeer, o que levou a
efeito, e que teve por complemento, a entrega de António e Nicolau aos
cuidados do professor Dehn, que, durante dois anos, os instruiu, com o
máximo desvelo, em harmonia e contraponto. Achando-se gravemente enfermo
em Moscovo o pai dos jovens artistas, sua esposa teve de voltar à
Rússia em 1846, assistindo ainda aos derradeiros momentos desse honrado
homem, que baixava à sepultura sem que a Providência lhe permitisse ser
testemunho da forma gloriosa com o que o seu descendente lhe
engrandeceria o nome.
Obrigado a dedicar-se ao comércio, Nicolau
Rubinstein não teve ocasião de desenvolver-se na arte para a qual tão
vivas tendências demonstrara, finalizando por consequência nessa época
os seus estudos. António permaneceu em Viena, conseguindo com extrema
felicidade prosseguir na sua auspiciosa carreira. Decorrido um ano mais
empreendeu uma viagem à Hungria, acompanhado do flautista Heindl,
formando em seguida projecto de se transportar à América, pensamento
este não realizado, pela intervenção dos numerosos admiradores do seu
talento, que obstaram à partida. Em vista pois desta prova do elevado
apreço em que era reputada a inteligência de Rubinstein, o artista
decidiu-se a permanecer na capital da Prússia, dando lições de piano, ao
mesmo tempo que se entregava ao estudo da composição. Em pouco tempo
esta nova fase da sua vasta capacidade lhes alcançou os foros de
nomeada, e tanto assim que pôs de parte o piano, no qual já não
encontrava segredos de espécie alguma. As revoluções de 1848
obrigaram-no a passar de novo à Rússia, fixando então a sua residência
em S. Petersburgo.
Foi em 1849, que escreveu a primeira ópera o Dimitri,
três actos representados em 1852. Teve esta composição um êxito tão
satisfatório, que a Grã-duqueza Helena, dotada de uma alma extremamente
artística, fixou as suas atenções sobre o autor, e favoráveis de tal
maneira, que António Rubinstein passou a viver no sumptuoso palácio de
Kamenoiostrow, trabalhando ali desafogadamente e rodeado dos mais apetecíveis confortos.
Durante essa época escreveu A Vingança, Os Caçadores da Sibéria e O Louco da Aldeia que, conquanto perfeitas no estilo, na instrumentação e no colorido, cópia dos costumes da Rússia, não tiveram êxito fora do vulgar.
Em 1854, os conde de Wielhorski, generosos protectores dos
artistas, e ainda hoje dos primeiros amigos de Anton Rubinstein,
aconselharam o compositor a visitar os melhores países estrangeiros,
profundar as suas escolas, consultar os melhores mestres, afim de tornar
mais evidente a fama desse nome que prometia honrar a sua pátria. À
grã-duqueza Helena deveu ainda a Rubinstein o favor de obter os meios
para a realização dessa viagem que teve começo em Maio do mesmo ano, e
na qual o artista, depois da sua apresentação em Mayence, percorreu toda
a Alemanha, sempre vitorioso em brilhantes recepções. Em 1855 foi a
Paris, organizando na sala Herz alguns concertos a grande orquestra,
causando viva impressão o desenvolvimento desse talento que os
parisienses tanto haviam festejado no seu despontar. De Paris seguiu
para Londres, onde os seus sucessos promoveram um ruído tal, que lhe
alcançaram o diploma de pianista na corte da Rússia. De 1856 a 1857 não
descansou de percorrer as principais cidades da França e da Inglaterra
coroado sempre pela profusão dos aplausos e lucros. Era então de uma
rapidez vertiginosa nas composições, e como prova, basta citar-se que de
1848 a 1857 escreveu nada menos de 80 obras, cuja maior parte nada têm
de pequenas. Nos começos de 1859 deu concertos em Viena, depois em
Pesth, excitando transportes de admiração. Voltando a Paris em abril do
mesmo ano, fez-se ouvir de novo na sala Herz com uma orquestra que
executou a maioria das suas mais difíceis composições. Feita a saison
na capital da França, partiu para Londres, atravessou a Rússia, sempre
em tournée artística, e parou em Moscovo, nessa cidade tão risonha às
suas recordações de infância, e onde viviam ainda os poucos membros da sua família.
Em
1859 efectuou novas viagens a Viena, Londres, S. Petersburgo, e em 23
de fevereiro de 1861, Antonio Rubinstein fazia representar no teatro da
Porta Corinthia, em Viena, a opera em 3 actos As crianças de Landes que não aumentaram a nomeada do autor.
Alguns outros trabalhos de suma importância se seguiram a este e
que classificariam o maestro no mundo da arte, como uma organização
musical da mais elevada essência; as suas obras eram até então
repassadas de um sentimento de melodia não vulgar, e o ser harmónico,
abundante de interesse, adquiria sucessos inesperados.
Rubinstein escrevia nessa época com extrema ligeireza, facto que deteriorava um pouco o plano das suas produções.
Hoje o afamado maestro, verdadeiramente correcto, à custa de um
estudo profundo e aturado, das pequenas faltas que algumas vezes
tentaram afastá-lo do melhor caminho, coagindo-o a buscar nas modulações
repetidas e na exageração dos processos os efeitos imaginados, é um
artista célebre que a Europa inteira admira, e que no Daemon e no Nero alcançou triunfantemente a glória imorredoira
a que o seu talento tinha jus.
Foi em 1875, no teatro da opera em S. Petersburgo que o Daemon
subiu à cena pela primeira vez. A ovação feita nessa ocasião ao maestro
foi enorme, e mais grandiosa se tornou quando em 1881 no Convent Garden
em Londres esta ópera foi interpretada pelos notáveis artistas Albani,
Trebelli e Lassale.
O característico, o colorido e a forma rítmica, melodiosa e interessante, ornamentos essenciais do Daemon, conquistaram a António Rubinstein um lugar proeminente entre os primeiros compositores.
Neste mesmo ano, quando a celebridade parecia sorrir-lhe a cada passo,
quando o íntimo se lhe replectava de incomparável ventura, quando alfim
a recompensa a tantos anos de um trabalho pertinaz, consecutivo, surgia
lisonjeira, um golpe cruel, impiedoso, veio roubá-la à realidade dos
prismas encantadores, para o abismar na realidade dos transes
dolorosos. Nicolau Rubinstein, o irmão que ele tanto adorava, e por
quem nutria uma dedicação excessiva, finava-se, vítima de uma
tuberculose pulmonar. António ainda correu junto do leito do moribundo, porém, apenas abraçou um cadáver.
O desgosto magoou-o de tal forma, que o artista, de então para cá, mais reservou o seu carácter já triste e melancólico.
A arte, no seu majestoso poderio não sofreu que a violência de um
golpe prostrasse aquele, que os louros da glória não conseguiram
adormecer. E tanto assim que há pouco mais de um mês a ópera italiana de
S. Petersburgo engrinaldava de novo o seu templo para prestar ao
talento de António Rubinstein a maior das ovações de que há memória na
capital da Rússia. O Nero confirmava mais uma vez a pujança dessa
concepção grandiosa que, desde tenros anos labuta em proveito da mais
sublime das artes - a música. Desde o czar a toda a corte, até ao mais
humilde dos espectadores todos de pé aplaudiam essa obra maravilhosa,
acenando com os lenços, e festejando o autor, que debaixo da profusa
chuva de oiro e flores, agradecia comovido. Durand, Repetto, Stahl,
Cotogni, Silva, intérpretes do spartito, e os demais artistas da
companhia ofereceram ao maestro uma riquíssima coroa de prata,
proferindo nesse momento o empresário frases de louvor, que decerto
servirão de eterna memória a António Rubinstein.
Há quarenta e dois anos, uma das opiniões mais autorizadas da
Alemanha, ouvindo num pequeno concerto o pequeno artista, profetizava
que o seu futuro havia de associar-se à arte como o mais sublime, puro e
nobre que a natureza criou. O sábio doutor Bechar há vinte e quatro anos
que morreu, mas o seu vaticínio atinge a eminência do alvo a que se dirigia.
Eis
pois os traços biográficos que podemos coligir para descrever a
existência artística de uma das primeiras notabilidades da época.
Como pianista teve o público português ocasião de adivinhar, ainda que
em pouca horas, quanto é poderosa essa inteligência musical, que não
produz somente a bravura, a agilidade, a expressão estudada, as quais
receberam umas nuances artificiais, mas também o sentimento vivo,
próprio, brotando do íntimo do coração, que se envolve nos sons,
aprofunda-os e, inspirando-se, torna-se com eles um organismo
incomparável, sublime! Esta foi sem dúvida a impressão legada aos
portugueses pelo talento do célebre virtuose António Rubinstein.»
Gino.
Anote-se que há outra biografia de Rubinstein e a reconstituição do seu concerto pelo insigne musicólogo Michel'Angelo Lambertini, na revista Arte Musical, nº 25, de 1900, online em http://hemerotecadigital.cm-lisboa.pt/Periodicos/ArteMusical/1900/N25/N25_master /ArteMusical_A2_N25_15Jan1900.pdf
*** Muita Luz e Amor Divinos em Anton Rubinstein, Higino da Costa Paulino e Michel'Angelo Lambertini, e que nos possam inspirar...