segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Homenageando Daria Platonova Dugina e a sua ideia-força do Optimismo Escatológico. Com um texto dela.

Daria Platonova Dugina (1992-2022) é presentemente um símbolo da invencibilidade do espírito sábio, da filósofa, de quem ama a Sabedoria, Sophia, pois embora assassinada há dois anos, a 20 de Agosto de 2022, está hoje cada vez mais viva, com constantes publicações, colóquios, discussões, o que certamente a alegra nos planos invisíveis e provavelmente permiti-lhe inspirar algumas ideias nesta ou naquela alma mais sensível e profunda na afinidade e sintonização das forças anímicas e ideias arquétipas comuns e capaz de coragem nas acções pela justiça, o bem, a verdade.
Já lhe consagrámos alguns textos que encontra no blogue mas de novo a homenageamos com um novo escrito, sobre ela e a ideia-força ou lema do tempo que urge abraçar: o Optimismo escatológico, título do seu livro póstumo...


Transcrevo um texto de apresentação pelo seu pai Aleksandr Dugin, e extraído da editora Prav:«No Mito da Caverna, tal como é contado na República de Platão, um prisioneiro da caverna das ilusões escapa e chega a conhecer a verdadeira realidade do mundo exterior e a dos céus acima, apenas para realizar que tem de fazer uma descida de regresso para iluminar os seus companheiros humanos - correndo o risco de sofrer e até de morrer. Sócrates insiste que o verdadeiro filósofo e estadista justo não descansa contente na felicidade do conhecimento e da harmonia ascendentes, mas atreve-se a viver, pensar, ensinar e lutar no mundo das ilusões, aqui e agora. 
Optimismo Escatológico, o testemunho filosófico póstumo de Daria Platonova Dugina, explora e desenvolve esta ideia antiga no meio do caleidoscópio avassalador da caverna do mundo moderno. Envolvendo um vasto espectro de perspectivas filosóficas, teológicas, sociológicas e literárias, Dugina mostra que a decisão de decifrar e enfrentar as ilusões da nossa “realidade” é apenas o início de uma viagem intelectual, existencial, espiritual e política que diversos pensadores, antigos e modernos, ousaram empreender. Ao mesmo tempo uma teoria filosófica, uma lente hermenêutica e um modo de vida,  Optimismo Escatológico é uma palavra de ordem,  orientação e  missão que nos inspira a ousar conhecer, viver e morrer pelos princípios superiores que brilham para sempre através e para além da caverna.»
                                                          
Segue-se uma apresentação pela Daria: «O tema do optimismo escatológico é perigoso e complexo. Perigoso porque nunca foi elaborado até agora e envolve muitas armadilhas e reviravoltas inesperadas. Ao preparar a conferência de hoje, dei-me conta de que, embora a hipótese do “optimismo escatológico” possa explicar muitos processos histórico-filosóficos, dar-lhes dimensões adicionais, abrir novos contextos e uma certa profundidade, ainda subsistem muitos espaços em branco.
A minha formação consistiu num constante auto-questionamento, na pesquisa de problemas em aberto e na identificação de incoerências. E, no entanto, achei que tinha todo o direito de trazer esta hipótese ao seu debate, porque as doutrinas em que tudo converge são sempre imperfeitas e, o que é pior, aborrecidas.
Por outras palavras, propomos interpretar o optimismo escatológico como uma espécie de leitura de um texto filosófico [ou dos problemas da vida] que revela, em diferentes pensadores, uma combinação paradoxal de vivência do mundo como finitude e ilusão, como simulacro, mas também uma atitude positiva e volitiva rumo ao fim da ilusão.»
                                           
Comentário nosso: Esta é a ideia chave de Daria Platonova Dugina, o seu testamento anímico, e que devemos consciencializar-nos bem, e assim, face ao mundo e à gnoseologia il
usória, há um triplo trabalho a ser realizado: sair-se da caverna da massificação alienante, que a oligarquia ocidental neo-liberal transhumanista fomenta e subvenciona, alcançar-se a ampliação de conhecimento e de verdade e, obtida a desalienação (sobretudo dos meios de informação) e a iluminação (interior e ainda dialogante),  voltar-se à horizontalidade social mas já com um sentido dharmico ou de acção justa para o Bem, como tanto teorizou e viveu entre nós Antero de Quental, de modo a ajudarmos os seres humanos, nomeadamente os mais próximos e amigos, fracos e oprimidos  a libertarem-se das garras da sombra, do ódio, da arrogância racista e imperialista, e dos seus avençados instrumentos que tanto pululam e poluem as sociedades, tentando encerrar as pessoas em superficialidades de informações e divertimentos, em fobias e seguidismos, desviando-as dos seus fins últimos de auto-conhecimento e de realização do amor fraterno, em sociedades justas, livres e multipolares.... 
Lutemos e avancemos com alegria e confiança e em comunhão com Daria Platonova Dugina, ainda que não a possamos agora ver fisicamente, mas apenas pelo sentir e emanar do coração espiritual, ou então a ver pelo 3º olho, para quem merecer. Mas se não consegue ainda, persevere, em optimismo escatológica, em comunhão com a  Daria e o corpo místico da Humanidade... Aum, Amen...

domingo, 18 de agosto de 2024

A fabulosa homenagem a Antero de Quental que Luís de Magalhães escreveu com o sangue gotejante do amor que os unia e une.

Passado um ano do suicídio de Antero Quental (1842-1891), o seu amigo, e companheiro de luta patriótica dos últimos tempos, Luís de Magalhães (1859-1935) resolveu homenageá-lo escrevendo para o jornal A Província um breve mas muito sentido e elevado In Memoriam, que deixa transparecer a alta qualidade dos dois e da relação que tinham. Resolvemos transcrevê-lo e comentá-lo muito brevemente pela sua excelência e claridade e porque o texto não estava presente na internet, já que após a publicação em 1892 só foi transcrito numa valiosa mas rara compilação Campo-Santo. Artigos críticos sobre as mais notáveis  figuras literárias e políticas do século XIX e XX em Portugal, editada na Livraria Cruz, de Braga, em 1971, por Miranda de Andrade, que prefaciou obra, tal como Joana Inês de Lemos Magalhães, filha do notável escritor e político a quem já dedicamos no blogue dois artigos aos seus bem espirituais sonetos.

O que se destaca mais no texto é o grande amor e admiração que Luís de Magalhães sentia e nutria pela vida e obra de Antero, para ele um mestre a vários níveis, que explica, e a tristeza por ele ter sucumbido ao suicídio, que considera uma fraqueza, um erro, acto contudo que não se deve julgar, nem por ele esquecer-se ou menosprezar-se toda uma vida cheia de actos abnegados, virtuosos, heróicos, tal como ele e alguns dos amigos mais chegados testemunharam no In Memoriam oficial de Antero que sairia só em 1896, e para o qual Luís de Magalhães não só contribuiu como foi, com o malogrado Joaquim de Araújo, também o primeiro a poetizar iniciaticamente a morte de Antero,  o principal organizador.

Oiçamos ou leiamos então (sublinhado por mim nas partes mais importantes) o sentido e intenso Sermo, Verbo, Logos ou Palavra de Luís de Magalhães, ainda gotejante de sofrimento pela partida abrupta do amigo e mestre, auto-consciente e sensível à unidade do espírito e do coração que os liga  e logo aspirando a comunicar com ele a fim de clarificar os mistérios tanto da morte como libertadora no Não-ser, como da vida mais ou menos sossegada que haverá no além espiritual. Quanto a nós, oiçamos e levemos ao coração e à meditação as sucessivas caracterizações notáveis sobre Antero de Quental, o seu ser, obra e demanda:
«Primeiro ano desse etern
o sono do Não-ser, tão desejado, tão ambicionado por aquela alma, sempre agitada pelas correntes desencontradas do Pensamento, sempre torturada por uma contínua dissidência com a Realidade e a Vida! Primeiro ano de eterno luto, de saudade cruciante, de solidão moral, de orfandade espiritual, para as almas que amaram aquela alma, para o espíritos que viveram da irradiação daquele espírito, para os corações que tinham idolatria daquele divino coração. [Uma excelente e original descrição da relação mestre a discípulo, rara entre nós, e que distingue com sensibilidade tanto a irradiação do génio intelectivo e intuitivo de Antero como o divino amor que perpassava pelo seu coração e os tocava e atraía.]

Dá vontade de ir em piedosa visita à beira do seu túmulo, dobrar sobre ele o joelho, colar o ouvido à pedra que o reveste, e perguntar aos despojos do mestre incomparável: - Descansaste, por fim? Cessaram todas as angústias, terminaram todas as dores, acabaram todas as lívidas agonias que te transformaram a existência num martírio? É bem de paz, bem de imperturbada calma o sono que dormes? Como a vida, não te enganou também a Morte, essa trágica e fúnebre Amante, que te inspirou os mais belos dos teus cantos e para cujo seio a tua alma parecia, em cada verso, querer evolar-se, numa atracção irresistível? Se assim é, mestre e amigo, esqueçamos que foi por tua vontade que nos deixaste, que foi por tuas mãos que rompeste a cadeia da Vida - essa térrea cadeia que a nós ainda nos acorrenta neste cativeiro do Vale de Lágrimas, onde os mais fracos se rojam entre queixumes, donde os desesperados se evadem, e onde só os santos permanecem melancolicamente conformados, sublimes de resignação e humildade. [Eis uma excessiva caracterização da vida na Terra como vale de Lágrimas, corrente no Catolicismo, uma visão errada dum bom post-mortem como apenas um sono calmo, e sobretudo uma redução da santidade à submissão ao estado do mundo e da carne, algo que Antero não aceitou e bem lutou contra, exprimindo-o seja nos seus discursos, seja poeticamente, em especial nas Odes Modernas, nas suas duas edições.]

Ah, não é difícil condenar o desespero, a alucinação, o desvario, que levam muitas vezes os melhores dentre os homens ao desgraçado exemplo do suicídio. Difícil é, porém, umas vezes resistir, entre as angústias da vida, às tentações dum eterno descanso, outras ter decisão bastante para ir, firme e sereno, ao encontro formidável do supremo  mistério, em que tudo se dissolve e que tudo se absorve. [Uma visão algo negativa, niilista, já que muito do ser sobrevive, embora "o ir firme e sereno" seja excelente. Em 1935, na série de sonetos sobre o título Em face da Esfinge, no livro Frota de Sonhos, e que já abordámos noutro artigo, vemos que Luís de Magalhães progrediu na percepção intuitiva espiritual]. Coragem ou fraqueza, corajosa fraqueza, ou fraca coragem, - seja qual for a explicação moral e psíquica que se queira dar do acto - nunca sobre ele incidam condenações orgulhosas, porque ninguém tem certos nem seguro os próprios destinos, e porque a impenetrável Fatalidade, que obscuramente joga com os homens e as coisas do mundo, pode, um dia, se lhes aprouver, fazer recair sobre nós, a tal respeito, os próprios anátemas e as próprias sentenças...
Piedade para a fraqueza ou para o
desvario, respeito pela resolução de quem se constituiu em juiz implacável de si mesmo, eis os dois únicos sentimentos admissíveis perante estes trágicos e voluntários fins de vida. Se é facto que peca quem volta contra si um instrumento de morte, não peca menos, perante a bondade humana e a indulgência cristã, o que, para tal erro, em vez de perdão piedoso, tem apenas um seco juízo de moralista inflexível.
Mas quando mesmo se capitule de culpa, d
e quase crime, o suicídio, não poderá ele nunca anular, por completo, o exemplo da grande vida, a que pôs termo. Se é triste condição da natureza humana, votada a uma fatal operação, que nenhuma existência de homem seja completa, isenta de toda a falta, pura de toda a sombra, não podemos negar, por outro lado, todas as virtudes, todos os méritos, todas as nobres acções duma vida, porque, um momento, a razão se entenebreceu e a vontade se deixou desnortear.
Por um passo errad
o, que longa marcha, serena e firme, no caminhar recto da Virtude e da Justiça! Por um desfalecimento momentâneo, quantas resoluções inabaláveis e heroicas, quantas provas de resistência aos males da vida e às agonias da alma! Por um triste exemplo dado à fraqueza humana, quantas altas lições de abnegação, de desprendimento, de sacrifício, de amor dos pequenos e dos oprimidos, de caridade sincera e de piedade generosa!
Por isso, a um ano de distância do trágico acont
ecimento, ainda aberta e gotejante a ferida rasgada pela brutal surpresa, a grande Sombra querida encontra-me de joelhos junto da sua sepultura, cada vez mais firme no meu vivo amor, cada vez mais absorvido na minha fervente adoração. [Que magnífica manifestação do amor a Antero, rara...] Nada há que diminua o zelo deste culto, porque a mesquinhez, baixeza e estultícia dos homens, palpada todos os dias, numa rude lição experimental da vida, parece que cada vez põem mais em relevo, cada vez mais elevam e ampliam mais toda a grandeza da sua eminente, da sua sublime individualidade.
Consola de ser homem o ter c
onhecido homem assim! No meio do céptico pessimismo, que a contemplação da Realidade [material e humana] infiltra no espírito [ou melhor, mais na mente e alma do que na centelha espiritual], - almas, caracteres, como o seu, dão-nos um momento a consoladora certeza de que o Bem, a Virtude, a Santidade, não são meras abstrações do pensamento, mas modalidades reais, se bem que pouco vulgares, da natureza humana. Efemeramente, estas eternas idealizações (aspiração mais alta da Humanidade e sua coroa moral, princípios que a positividade da Vida pode mostrar mal realizados, mas que nenhuma forma de especulação filosófica pode denegar abstractamente) - efemeramente, digo, essas eternas idealizações como que incarnam e tomam uma forma tangível, visível, humana, que nos mantém e nos confirma na sua crença abalada. É o Verbo da Moral que se faz carne, e, numa evidência luminosa, se revela e afirma aos homens. [Eis uma bela visão de Antero como um dos Cristos, um dos Ungidos, um dos Avatares do Bem, da moral, da virtude em Portugal]

Antero foi, na nossa idade, uma das mais belas, das mais puras destas encarnações [ou avarizações, descida de grande ser, ou da Divindade]. Se o génio assombroso do Poeta e do Filósofo garantem ao seu nome uma imorredora admiração, a grandeza da sua Alma e a estóica autoridade do seu Carácter, fixados numa tradição moral, que nunca se apagará, aureolarão a sua memória com uma coroa de amor e de saudade, - coroa divina, divino resplendor, que só irradia em torno à fronte dos Bons e dos Justos. [Belas imagens do efeito da oração e da memória devota no intensificar da aura luminosa de quem partiu do plano terrestre com uma vida justa, estoica até face a tantos sofrimentos psico-somáticos, e a fronte aberta ao bem, ao belo, ao verdadeiro e ao divino.]

De toda a sua glória, será esta a maior: reviver no coração de todos os que estudaram e meditaram a lição da sua vida. [Que magnífica consciência da possível ligação entre mestres e discípulos, entre a Divindade e os devotos] Não esqueçamos, pois, a data terrível, em que ela findou numa explosão de angústias que o desvairaram. Caia sobre essa dor suprema o bálsamo da nossa piedade. Plantemos esta flor mística sobre a terra, em que jaz, regando-a com as nossas saudosas lágrimas.» [E eis-nos com um pedido piedoso, belamente agrícola, que oremos, na comunhão do corpo místico da Humanidade, pela sua alma, que a reguemos pois com o "refrigério" divino, o que na altura certamente necessitava mas que hoje provavelmente já não, de modo a que a sua auréola, e o seu corpo espiritual, estejam mais luminosos e activos no Cosmos divino e em especial na ordem espiritual de Portugal, onde é um elo brilhante, tal como Leonardo Coimbra, Fernando Pessoa, Joaquim de Carvalho, Sant'Anna Dionísio e outros reconheceram e meditaram.]

Costa Nova, 11 de Setembro de 1892. E A Província, de 12-IX-1892.

Que o amor que unia e reúne Antero de Quental e Luís de Magalhães se manifeste nas nossas vidas e nos aproxime deles e dos Mestres, Anjos e da Divindade, e intensifique na Humanidade os valores do Bem, do Belo, do Verdadeiro que eles tanto cultuaram e encarnaram.

sábado, 17 de agosto de 2024

Stradanus: A morte ou dormição de Maria, Nossa Senhora, num belo desenho simbólico gravado no séc. XVI.

    Iohannes Stradanus foi um notável artista flamengo nascido em Bruges em 1523 e que desenvolveu excelente criatividade na pintura, nos frescos e nos desenhos para tapeçarias e gravuras, notabilizando-se nos temas da Natureza, Mitologia, História e Religião, tendo vivido muitos anos em Florença (desde  1545, donde ser conhecido também por Giovanni Stradano, tendo colaborado bastante com Vasari), trabalhando para os Medici e sendo o responsável de vários retábulos dos altares das belas igrejas, ou de pinturas e tapeçarias dos palácios (tal o Vecchio), da cidade do rio Arno, onde casado e deixando descendência veio a desincarnar em 2 de Novembro de 1605, cremos que pacífica e ascensionalmente consciente. Antes trabalhara bastante em Roma e Nápoles, e fora um dos membros iniciais da famosa Academia e Compagnia delle Arti del Disegno, fundada em Florença em 1563, sobrevivendo magníficas obras do seu lavor, entre o clássico e o maneirista florentino, numa vida e obra riquíssima e que tem merecido biografias e exposições de grande qualidade.
                                                  
Antes da sua dormição, como alquimista ou cooperador criativo na obra do Cosmos ou do todo belo ou ornamentado, preparara a preservação da sua imortalidade desenhando uma belíssima gravura  que o famoso Johannes Wierix abriu, e onde transmite os seu testamento anímicos: "Não há nada que a assiduidade não consiga". "Só a virtude permanece, tudo o resto perece. Estando providos disto, sede vigorosos e alcançai a boa reputação e a graça-glória".

Giovanni Stradano merecia tal gravura, pois destacara-se com a sua participação prolífica e perfeita no grande movimento de produção de imagens e emblemas históricos e religiosos em Antuérpia, onde esteve de 1578 a 1603, fornecendo numerosos desenhos para os grandes gravadores da época, tal o pai e os filhos Collaert, os irmão Wierix, Philipe Galle, etc., e que correrão meio mundo.
É  de Johannes Stradanus e de Adriaen Collaert, a gravura circa 1585, que resolvemos apresentar, ainda no rescaldo do dia 15 de Agosto da Ascensão de Maria e  em que partilhamos uma gravura portuguesa, embora já do séc. XVIII, anónima, da mesma Morte ou Dormição (a Koimesis) de Maria, mãe de Jesus Cristo.
Esta, já não anónima mas de Iohannes Stradanus, é bem mais perfeita e completa. Observamos que o acontecimento, sem a presença de Anjos, passa-se de noite, com três velas acessas, uma na mão de Maria, com Pedro a segurá-la, seja para manter a Fé viva nela, seja para confirmar quando ela morre, ao pender da vela. Outra  empunhada por um idoso discípulo armado de óculos e que se encontra à direita do apóstolo que lê um livro sagrado, actividade gnoseológica luminosa que se realiza também (talvez numa pausa) perto da terceira vela, a maior, junta aos pés do leito e do corpo da agonizante mãe de Jesus, talvez assinalando a ligação ao domínio maior da Terra e da morte.
Podemos considerar que as três luzes nocturnas rompem as trevas da escuridão com a sua ignicidade e permitem  a identidade, a afectividade e o conhecimento se realizarem estando por isso bem dispostas nesta cena para contemplação do palco do teatro do mundo e da vida e morte. As duas velas que ardem junto aos livros de oração simbolizarão o seu valor luminoso: as orações e ensinamentos que neles estão contidos, ao serem lidos e entoados, irradiam sabedoria, poder e amor. Por isso no grupo mais próximo de nós estão três discípulos: um a ler em voz alta, outro em atento acompanhamento, segurando uma vela já mais ardida ou empregada e resultante do ler-rezar, e um terceiro discípulo, de joelhos, adorando, manifestando o impacto do que é lido, com as duas mão juntas, talvez apontadas a Maria, talvez dardejando raios da leitura e da sua alma para ela.

Nesta linha mais próxima de nós o desenhador e gravador assinalaram, por jogos  de perspectiva de luz e sombra, alguns pontos-zonas mais brilhantes impulsionadores da ascensão anímica que se está realizar, e são o fim da túnica de um discípulo, os pés de um outro, um S serpentino do que parece um assento também iluminado, e um vaso ao pé da vela maior, junto à face iluminada do idoso apóstolo em oração de mão juntas.
Os outros discíp
ulos transmitem ou transparecem os seus pathos, os seus sentimentos e pensamentos unificados, num momento muito especial, o da passagem da vida terrena para a do mundo espiritual, através do trespasse da morte. E que se trabalha e ensina na tradição egípcia no Livro dos Mortos ou da Passagem para a Luz e que se encontra muito e complexamente desenvolvido e visualizado na tradição tibetana no seu livro do Bhardo Thodol, o da Transição para a Libertação.
A Nossa Senhora não está muit
o deificada, como lhe veio a suceder com o tempo, seja em relação ao momento original da sua morte, seja o da sua reactualização artística no séc. XVI. Ainda se está longe da dogmatização mariana posterior, e aliás as legendas da morte ou dormição e ascensão ou assunção só tinham surgido nos finais do séc. V. A auréola à volta da cabeça é como a dos discípulos muito discretamente assinalada e com o centro do seu círculo perfeito na moleirinha do topo da cabeça, de acordo com a ideia de ser aí que paira mais a centelha espiritual ou por onde o corpo espiritual sai no momento da grande passagem para a luz, menor ou maior claro, conforme a constituição e unificação anímico-espiritual alcançada na peregrinação terrestre.
Assistimos de f
acto a um ritual da arte de bem morrer, todos os discípulos estão em luta, em esforço, para que Maria morra bem, e pode haver nesta representação de Giovani Stradano um intuito pedagógico geral, ao Maria representar a alma humana, ou ainda a Humanidade e portanto quem está a morrer é não só ela mas qualquer alma humana, mormente quem souber contemplar e meditar este ícone no fundo dum bom despacho ou boa Morte.

Que ela está a ser despachada, impulsionada no momento da transição, quase que magicamente perante o espectro da morte (semi-oculta na gravura), depreende-se bem das atitudes de todos os participantes, devendo assinalar-se, além dos que rezam e leem e já mencionados, um que abençoa com a mão e outro que segura uma caldeira com água benta para lançar sobre a senhora, um anacronismo refrescante, pois certamente não ocorreu na realidade temporal histórica.
A legenda ou inscrição da grav
ura reforça, algo ameaçadoramente, a necessidade de se estar preparado para a morte, de se praticar a arte de bem morrer em vida, pois diz: Flete viri Lachrymisque viam laxate vocatis hoc iubare extinctio dirus mundo ingruet horror, assim traduzível: «Gritai, chorai homens que a aurora da extinção do chamado caminho largo deste mundo cruel avança em horror ameaçador
Estão os onze
discípulos juntos, porque segundo a lenda foram subitamente chamados pelo Espírito Santo para acompanharem a que se ergueria a Mãe divina, Ave Mater,  e já agora a trocarem realizações. Há um leve sofrimento na face de Miriam mas a imagem é a de uma boa morte, sem problemas de apego terrestre, nem remorsos, nem receio do além. A alma estava preparada para deixar o corpo físico, mas é sempre um momento difícil, o que a inscrição reforça ameaçadoramente, talvez numa linha de reforço da contrição após o Concílio de Trento.
Dois outros porm
enores devem ser mencionados quanto a esta mise en scéne de uma iniciação na arte de Bem Morrer e são os três vasos, de óleos e de qualidades anímicas que se encontram visíveis nas partes mais altas da gravura, seja um no cimo duma coluna, seja outro no cimo do dossel ou armação da cama, simbolizando que, para a lâmpada da vida eterna arder, tem de haver ao longo da vida a destilação de qualidades e virtudes morais, éticas, criativas e espirituais.
                                                                     
Quanto à presença oculta duma entidade, a Morte (que também pode ser o Diabo, como introdutor dela na Humanidade), entre nós tão namorada por Antero de Quental, António Molarinho e
outros poetas semi-apaixonados pela sua capacidade libertadora, cremos ser a subtil e semi-encoberta figuração que pouca gente terá visto e identificado ao fundo da gravura, ao longo dos seus mais de quatrocentos anos de vida, e que destacamos para os leitores e contempladores, anotando ainda que é frente a ela que se ergue a maior vela ou combustão ígnea da fé ou aspiração e da virtude e amor.
                                                       
Saiba preparar-se para a morte, trilhando o caminho do meio, ou, se quiser e conseguir mesmo, a via estreita espiritual ou iniciática, e vá morrendo e renascendo em vida, paciente, criativa e amorosamente. 

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

A 1ª história da agricultura biológica em Portugal, por António Mantas: "Raízes da Agricultura Biológica, Dos pioneiros mundiais ao movimento em Portugal".

 A primeira história da agricultura biológica em Portugal foi dada à luz em Janeiro de 2004 nas edições 5 Livros por  António Mantas, um agrónomo, com mestrado em agricultura biológica, vários anos de trabalho no sector público e desde 1999 certificador de agricultura biológica em Portugal e estrangeiro, dando actualmente cursos de formação em agricultura biológica.
                                          
A obra é volumosa, um in
-4º grande de 370 páginas, está bem ilustrada a preto e branco, embora as imagens pudessem ser maiores e leva um valioso prefácio de Alfredo Cunhal Sendim, do exemplar e futurante Montado do Freixo do Meio, a Montemor o Novo, onde enaltece a força transformadora  de uns poucos, duma «nova consciência colectiva que emergia sob a ética da Agroecologia», vitoriosa sobre «o paradigma do modelo agrícola químico-mecánico»,  e na qual discerne  como uma das origens a semeadura utópica e do Espírito Santo, de Agostinho da Silva. 
                                         

António Mantas, com os dois apresentadores do seu livro, José Amorim e Alfredo Cunhal Sendim, na Herdade do Freixo do Meio.

Intitulada  Raízes da Agricultura Biológica, Dos pioneiros mundiais ao movimento em Portugal, abrange nas cem páginas iniciais o seu desenvolvimento no mundo, descrevendo bem as pessoas e grupos pioneiros e as movimentações internacionais, com subcapítulos dedicados a Franklin King, Rudolf Steiner, Ehrenfried Pfeifer, Welleda e Demeter, Albert Howard, Northbourne, Eve Balfour, Mokiti Okada e Fukuoka, Maria e Hans Müller, Hans Peter Rusch, Jerome Rodale, Rachel Curson, Lemaire-Bucher versus Nature et Progress, propiciando uma boa visão esclarecedora das práticas, lutas, progressos, obras e líderes da agricultura biológica mundial.
A parte mais substancial e detalhada da
obra cabe naturalmente a Portugal,  e o António Mantas não se poupou a trabalhos para contactar as pessoas e encontrar os livros, jornais e documentos necessários a ser bastante exaustivo quanto ao que se passou, recuando, brevemente, as suas referências a meados do séc. XIX e citando de  agrónomos e lavradores, por exemplo, algumas recomendações de fertilização natural dos solos, tais as de Francisco Pereira Rubião, Paulo de Morais, Miguel Fernandes, Rebelo da Silva, Visconde Vilarinho de São Romão. É contudo a partir das décadas de 60 e 70, e sobretudo  desde o 25 de Abril de 1974,  que temos dados certos sobre os que voluntariamente e por consciência metodológica e ecológica não recomendavam e não usavam fertilizantes e pesticidas químicos e procuravam pelo meios naturais fortificar os solos, as plantações e semeaduras, e a biodiversidade saudável.
                                          
Na abordagem portuguesa é merecidamente realçado o papel importantíssimo do jornalist
a e ecologista Afonso Cautela em artigos de opinião, reportagens ou entrevistas, livros ou opúsculos na defesa da qualidade de vida e do meio ambiente (nomeadamente "contra o ruído - esse fascismo quotidiano") e na divulgação da agricultura biológica, a qual remontaria a alguns anos anteriores ao 25 de Abril, graças às actividades de Luís Vilar.  Um grande pioneiro e entusiasta, "A minha escola é a Natureza", dirá ele numa entrevista ao Afonso em 1976, já com 24 anos de agricultura biológica (e portanto desde os anos 50), onde revela o seu percurso, desde iniciar-se com as obras do médico neo-pitagórico Paul Carton,  tornar-se naturista,  estudar alguns dos métodos conhecidos de agricultura biológica  (Claude Aubert, Lemaire) e biodinâmica (Rudolf Steiner) e praticar perto da Trafaria. Afonso Cautela regista:«a tese de Vilar apoia-se no húmus e no carácter húmico dos solos, base de toda a fertilidade e, por tanto de toda a produção agrícola», para tal valorizando um ph neutro, e o lavrar superficial da terra, pois é dos 4 aos 12 cm que se encontra a vida microbiana, a ser preservada.

 Em 1978, Luís Vilar, em nove números,  da revista Agrosanus, que fundou "Órgão da divulgação de conhecimentos atinentes à promoção integral do Agricultor e à sua emancipação económica pela Agricultura Ecológica, privativo da União Fraternal dos Agricultores (em organização)" partilhou muitos dos seus conhecimentos (tal como a preparação do estrume, do composto, do terriço, interacção das plantas hortícolas),  e António Mantas realçou bem os aspectos mais valiosos tanto da entrevista-reportagem em seis números d' O Século Ilustrado, como dos oito números da Agrosanus.
Os elos seguintes desta fascinante história da Agricultura biológica em Portugal são: 1º o Centro Ignoramus da Macrobiótica Zen, com o nº 1 da sua revista em 1969, onde surge a 1ª menção e artigo intitulado Agricultura biológica, com bons conselhos de rotação,  uso de leguminosas e algas, e que deverá ter sido escrito por Fernando Mesquita. 2º, o Adeodato Santos e a sua mulher Inge Wollf, a produzirem hortícolas no Barão S. João e a dinamizarem a vida cooperativa e alternativa do município algarvio. 3º o Jacinto Vieira, produtor de cereais desde os anos 60 em Vila do Bispo e no Alvor e depois fundador e dirigente da Unimave, e co-fundador do Movimento Ecológico Português, com o Afonso Cautela. 4º Taciano Zuzarte, grande entusiasta da agricultura biodinâmica,  da Pedagogia Curativa e Socioterapia, inspiradas em Rudolf Steiner e que vai desenvolverá em Portugal, nomeadamente desde 1980, na Casa de S. Isabel em S. Romão. Membro, ora co-fundador ora activo no Movimento Ecológico Português,  na Associação Waldorf, na Biocoop, na Agrobio.
Nos subcapítulos s
eguintes destacaremos as excelentes resenhas do que foram as intenções, actividades e história da 1º, UNIMVE, Centro Macrobiótico e Vegetariano (a que pertenci e cheguei a dar um curso de yoga e meditação por iniciativa do Afonso Cautela, e que ele e a  filha Cristina  participaram), fundada em 1972, e que chegou a produzir vários cereais e leguminosas biológicos em Almoster; 2º, o Movimento Ecológico Português, fundado em Maio de 1974, nas instalações da Unimave, e que congregou numerosas individualidades na sua subscrição ou participação, tais como Agostinho da Silva, Fernando Namora, Raul Esteves Traveira, António Quadros, José Gomes Ribeiro, José Carlos Marques, etc., e que terá papel importante em vário encontros e dinamismos agro-ecológicos e anti-nucleares. Na história dos encontros, descrita em várias páginas destacam-se Ribeiro Teles, Afonso Cautela, Jorge Leitão, e outros. 

Uma fotografia recente (15-V) de José Carlos Marques, na apresentação das obras completas de poesia de Afonso Cautela, preparadas e editadas por ele, e em que participaram também José Luiz Fernandes, António Cândido Franco e eu.

3º, a acção de José Carlos Marques  e das suas Edições Afrontamento, com a colecção Viver é Preciso, é outro dos elos importantes bem apresentado nos seus aspectos agro-biológicos, éticos e ideológicos, tal como o 4º, Afonso Cautela que com os números da Frente Ecológica, e as reportagens em O Século e O Século Ilustrado ia revelando o panorama alternativo, tal a cooperativa SoldadoLuís, em Alcácer do Sal,  com o arroz biológico, os apoios de João dos Santos Júnior na pedagógica e dietética Diese (alimentação racional, com que me iniciei aos 16 anos) que o comercializou; a Biológica do João Lúcio Gamito, e entrevistando ainda o  arq. Jacinto Rodrigues e o eng. agrícola José Lacerda da Fonseca. Os números iniciais da revista Raíz e Utopia, até ao 3-4,  são também bem analisados quanto aos seus aspectos ecológicos e de agricultura biológica, outros se seguindo mais culturais e políticos.
No Porto,
o GAEIP, Grupo Autónomo de Intervenção Ecológica do Porto,  formado em Setembro de 1975 e liderado por José Carlos Marques e Jacinto Rodrigues, dinamiza reflexões e publicações para uma sociedade mais ecológica e com agricultura biológica, e dela nasce em Outubro de 1977 a  Pirâmide, Cooperativa Cultural para o desenvolvimento de uma sociedade em harmonia com o Universo, e que funcionará como centro macrobiótico, ecológico e espiritual (tendo eu e o meu irmão Luís, por exemplo, organizado um exposição dedicada a utópica Auroville de sri Aurobindo e a Mãe, às obras do alemão Bô Yin Râ e do russo Nicholai Roerich. Aí se destacarão Pedro Cavaco e Margarida Romão, Cláudio Coquet e Anabela Romão e o Filipe Rocha.
De 1978 a 1985 saem os bem importantes dezanove números da revista Urtiga, feitos pelo Pedro Cavaco e a sua mulher Margarida Romão, e onde colaborarão algumas pessoas, nomeadamente o Carlos Pissarro, Sylvia Montarroyos, José Carlos Marques, Cláudio Coquet, Pedro Teixeira da Mota, etc., num vasto campo alternativo, desde a não-violência de Lanza del Vasto e da Arca à agricultura biológica e à natural de Fukuoka.
A dinamização que Jean-Claude Rod
et realizou em Portugal desde 1978, iniciada pelo convite de João Santos, da Diese, e o apoio do poeta e ecologista Júlio Roberto, fundador da Itau (Instituto Técnico de Alimentação Humana), desde 1980 é bem descrita em algumas páginas, sendo bem historiadas as reuniões que houve na sede da Diese, na av. da República, e onde Jean-Claude Rodet conheceu o Arq. Gonçalo Ribeiro Teles e D. Duarte Nuno de Bragança, fortes apoiantes da agricultura biológica. Acrescente-se que em Julho de 2024,  foi Jean-Claude Rodet, com a sua mulher e "secretária" Francine, homenageados merecidamente em Idanha-a-Nova, onde finalmente conseguiu instalar o seu vasto arquivo, com o apoio da Câmara Municipal, tendo estado presente um grupo razoável de pessoas amigas, entre as quais o António Mantas.
Retornando,
In illo tempore, como diria Trindade Coelho, autor com interesses na cultura e folclore agrícolas, em 1984 nasce o Grupo de Agricultura dos Amigos da Terra, com o Luís Carloto Marques, João Santos, Jorge Ferreira e José Eduardo Agualusa, que dinamizará várias actividades. E pouco depois em Fevereiro de 1985 surge a que se tornará a associação mais importante e dinâmica, a AGROBIO, coordenada de início por Jean-Claude Rodet, Furtado Mateus (abnegado médico e agricultor bio-dinâmico), António Pena Gaspar, João Cruz Alves, Luís Carloto Marques, José Miguel Fonseca (ainda hoje lutando pela preservação das sementes) e onde depois se destacarão José Amorim, Ângelo Rocha, Pucariço, com o boletim a Joaninha, desde 1987, a transmitir muito informação agro-biológica e alternativa.
Os encontros nacionais de
Agrobiologia, os seminários e actividades de Agricultura Biodinâmica, os festivais da Terra Sã, com o do ano de 1983 a apresentar 83 expositores; em 1992, o nascimento da Associação Portuguesa de Produtores Agrobiológicos,  e da Urze,  e finalmente em Março de 1993 a cooperativa Biocoop, nascida de 50 produtores e consumidores biológicos, cm liderança de Ângelo Rocha, são alguns dos eventos e grupos marcantes. Pelo caminho ficou a Trigrama do Eng. Gomes Ribeiro, comercializando produtos integrais e biológicos. E até aos nossos dias seguem-se ainda várias páginas de história, repercussões na Imprensa, interacção com o Estado, feiras, publicações. Na penúltima parte são dada  explicações bem documentadas  de aspectos fundamentais da agricultura biológica, tais como definição, cadernos de normas, regulamentação, sistemas de certificação e controlo, fraudes, incomprimentos e sanções. E, por fim, várias tabelas com os números de produtores, produtos, distribuidores, acompanhadas de reflexões que culminam com o subcapítulo: Agricultura Biológica agora e no Futuro, sem dúvida desafiante para todos nós produtores ou consumidores, face às tentativas de globalização e manipulação de conceitos, práticas, tendências e meios de informação. Um registo grande de referências de livros e publicações, webgrafia, vídeos ou gravações de som, fotografias, e regulamentos e normas é fornecido nas oito páginas finais.
Eis-nos com uma obra pioneira, bastante abrangente, documentada e realizada com boa empatia e conhecimento, embora certamente possa vir a ser dada à luz uma edição ampliada no futuro.
Uma boa ideia de António Mantas foi ainda a d
e convidar  pessoas que de algum modo estiveram ou estão ligadas à agricultura biológica para darem algum tipo de testemunho, Retratos se chama o capítulo, com dezasseis contributos, destacando-se o de Jean-Claude Rodet, já que caracterizou breve, sagaz e divertidamente vinte e seis produtores e activistas da agricultura biológica com quem contactou mais.
                                     
Para quem gosta da natureza e defesa do ambiente
, da agricultura e em especial da biológica, eis uma obra que gerará vivo interesse, e resta-nos agradecer ao António Mantas por ter juntado e historiado tão bem tantas peças levedantes da agricultura biológica e lançar votos para que o livro  possa ainda crescer metamorficamente, e para isso o domínio na web por ele criado, https://www.raizesab.com/raizes-agricultura-biologica, ao receber informações, correcções e sugestões, contribuirá certamente...
                                      
                                           
Contracapa do livro.

quinta-feira, 15 de agosto de 2024

A Dormição de Maria, numa invulgar representação do séc. XVIII, e de Coimbra. No dia 15 de Agosto de 2024, dia da festividade da Assunção, outrora muito celebrada pela cavalaria templária, orando à Dama nos céus.

                                     

Comemorando-se a 15 de Agosto a morte ou dormição, e a ressurreição, a ascensão ou assunção em corpo e alma, de Maria, Mãe de Jesus, além de a sintonizarmos ou celebrarmos, na esteira até do cavaleiros templários, poderíamos investigar como se foi formando esta bela legenda mariana, nomeadamente a partir do séc. IV, e como gerou tanta devoção e obra de arte, provavelmente em parte pela necessidade do sagrado Feminino ter um papel maior no Cristianismo, que desde o início sofreu o pesado peso da tradição patriarcal judaica, com uma concepção bastante machista da Divindade, talhada contra os cultos da grande Deusa, ou de Ishtar, a Afrodite ou Vénus do Médio Oriente.

Contudo, Maria destacou-se cedo, pois, baseados na realidade ou apenas numa lenda, os redactores dos Actos, na parte final dos Evangelhos, descrevem a mãe de Jesus liderando os discípulos em Jerusalém no momento em que teria havido uma descida do Espírito santo, ou mesmo a Descida, o derramamento que até aí não houvera do Espírito Santo, designação de uma Pessoa divina, ou do Espírito divino, ou da (ou duma) energia  divina, conforme as muitas tentativas de compreensão ou identificação de tal misterioso sopro ou fogo, que desde as descrições iniciais e depois as hermenêuticas dos primeiros padres da Igreja sempre se pautou por uma falta de unanimidade,  suscitando naturalmente  debates, heresias, concílios e dogmatizações.

Com o desenvolvimento no Médio Oriente e no continente europeu do Cristianismo, o culto de Maria foi crescendo, com sucessivas valorizações e dogmatizações, e uma avatarização da Divindade Feminina nasceu no Cristianismo (com pequenas diferenças entre a Igreja Ortodoxa e a Católica Romana), suplementando tanto o terrífico Jehova como a visão mais bondosa de Jesus do Deus Pai, bom mas desconhecido e invisível, com uma Nossa Senhor crescentemente divinizada, capaz de se desdobrar em muitas Nossas Senhoras que se desvendarão ora na visão ora na imaginação de seres,  gentes e  povos.  Assim em Portugal há centenas de Nossas Senhoras, cada uma com a sua génese, a sua representação tipificada, as suas fontes miraculosas e os seus feitos agraciadores. Frei Agostinho de S. Maria (1642-1728), um frade historiador erudito, e até teólogo apoiante das nossas sorores místicas, compilou e deu à luz em 1707 nos dez volumes do seu monumental Santuário Mariano as histórias de centenas de santuários milagrosos, muitos deles ainda hoje sobrevivendo, embora frequentemente sem as estátuas antigas salvíficas, embora gravuras e pinturas subsistam.
                                          
Se as pinturas (mas também as gravuras) se conservam em igrejas, sacristias, paços episcopais, museus e casas particulares, já as muito mais numerosas gravuras, os chamados registos, de tamanho manual ou de bolso, circularam muito pessoalm
ente e encontramos em casas e dentro de livros de orações algumas dessas Nossas Senhoras que inspiraram ou abençoaram os fiéis que as tinham assim mais próximas das suas almas e necessidades. 

Muitas delas em modestas molduras de cartão afixadas nas paredes iluminaram vidas e dramas, pois sempre foi regra religiosa e de costumes que a imagem é um ícone, uma representação que se pode tornar animada pelo ser ou pelas energias de quem está representado, e assim a devoção diante de tais imagens teve sempre cultores, mais ou menos conscientemente, e que tanto recebiam as energias das formas e sentimentos ou mesmo seres expressados, como também despertavam as suas respostas anímicas, o que podia causar contrição, pacificação, alegria, amor ou mesmo cura.

A morte da Nossa Senhora não será das imagens mais estimulantes nem curativas, mas para quem estava para morrer, quem tinha medo de morrer, quem estava rodeado da morte constantemente, a imagem era útil e assim se compreende, por exemplo, que uma invulgar estampa portuguesa de final do séc XVIII tivesse representado Maria no momento da desencarnação, rodeada dos discípulos, como narra a tradição, e com a particularidade valiosa da pomba do Espírito santo ver-se a pairar e a irradiar luz sobre ela.
                                        
Seria um trabalho valioso apurarem-se (ou c
onjecturarem-se) os motivos de tal escolha pelo artista português, se cumpriu a orientação do comendatário, se seguiu modelos artísticas, ou se antes inovou e sobre que bases, pois quanto à ideia ou fé que subjaz tal aparecimento da pomba podemos pensar que foi levado a tal para replicar o Pentecostes: agora de novo, o Paráclito, estava presente, seja para elevar o momento e Maria, seja para abençoar os presentes, e numa percepção iniciática sabemos como na hora da morte certas energias se desprendem para os mais próximos.
Creio porém que, dentro de uma hermenêutica mais espiritual
, pela qual o que se representa é visto como actualizado pela alma contempladora devota, a bênção do Paráclito, o Consolador, pode dirigir-se e acontecer tanto no passado como para o presente da alma devota que a contempla ou reza, e assim o artista convida-nos a vivermos, a experimentarmos o pathos da santa dormição mariana, no aqui e agora, ou mesmo na futura hora da morte...
O subtil Espírito sa
nto, que se diz unir o Pai e o Filho, o Mundo Divino e Humano, e é Amor dinâmico, simbolizado na ave ou pomba, tal como abençoou Maria e os discípulos, também agora pode fazer descer o seus raios na alma devota e harmonizá-la.

Já na forma materializadora, de descida à matéria,  algo interesseira para o dono da chapa de cobre que dará origem aos exemplares ou cópias que serão vendidos aos fiéis, na legenda da estampa está uma promessa que actualiza o ritual da boa dormição ou adormecimento de Maria (e a sua ascensão), estendendo-o mesmo no tempo, e no caso  pelos míticos quarenta dias:
«O Ex.º e Rev.º Bispo Conde [de Coimbra] concede
40 dias de indulgência a quem rezar a Salve Rainha [Salve, Rainha, mãe de misericórdia,vida, doçura, esperança nossa, salve! A Vós bradamos, os degredados filhos de Eva. A Vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas. Eia, pois, advogada nossa, esses Vossos olhos misericordiosos a nós volvei. E, depois deste desterro, nos mostrai Jesus, bendito fruto do Vosso ventre. Ó clemente, ó piedosa, ó doce Virgem Maria] pedindo à Senhora para a hora da morte a sua protecção.»...

Embora o traço do artista anónimo não seja de grande perfeição, e  os discípulos estejam quase todo chorosos, menos um que lê o livro da Gnose, do Conhecimento (e em qual o desenhador pensou?),  o que se representa é apenas a morte e libertação-ascensão da alma e espírito, e nada de Assunção também do corpo, como virá a ser proclamado como dogma, bem mais tarde e com uma riquíssima tradição artística (como observará nas 2 gravuras seguintes),  no 1º de Novembro de 1950 pelo Papa Pio XI, e que se comemora hoje, 15 de Agosto.

Gravura de Schelte Adamsz e Bolswert, segundo pintura de Peter Paul Rubens.
Contemple melhor o Anjo que vai deitando flores perfumadas, do que se dirá mais tarde numa bela lenda que perfumadamente tomaram o lugar do seu corpo na tumba  e abra-se agora e sempre ao luminoso Espírito, e seja um espírito auto-consciente e determinado no caminho da verdade, do bem, do amor e da multipolaridade criativa  que está, no BRICS, em grande luta de parto, de nascimento libertador e harmonizador da Humanidade mais religada à Divindade na fraternidade.

Quando a obter a indulgência, e mesmo que reze ou diga apenas o título, sentindo-o bem,  Salvé Rainha, ou Avé Maria, cheia de Graça, se souber cruzar a vida dentro de uma arte de bem viver para bem morrer, certamente desincarnará e avançara bem no Além, com os guias ou protectores que por afinidade possa merecer. E para tal momento, pode fixar este ícone português do Bom Despacho ou Boa Morte, gravando e assimilando mais na sua alma Maria, bela e harmoniosamente deitada no seu vasto e ondulado leito, qual tapete de Aladino, certamente contemplando o Céu aberto e a Divindade pelo seu olho espiritual, e sem ter que fazer milagre desnecessário de levar o corpo físico para o outro lado, antes ressuscitando em corpo de Glória, e nisto se aponta a verdadeira realidade do que se deve entender pela ressurreição, ascensão e assunção  e que o Papa Leão XIV bem poderia tentar clarificar...

Bons adormecimentos e sonhos, boa morte e viajem! Que o Sagrado e Eterno Feminino, e suas mestras, sorores e mulheres de virtudes, mães, sibilas, daenas e musas nos guiem agora, sempre e na hora da morte, Amen...

terça-feira, 13 de agosto de 2024

Luís de Magalhães, foi de Antero um discípulo espiritual? Provas poéticas... Escrito a 13 de Agosto 2024.

 De Antero Quental e da sua sensibilidade e demanda, ideias e ideais, lutas e criatividade, quais foram os seus amigos mais influenciados, ou  que melhor prosseguiram a sua demanda, talvez podendo mesmo dizer-se seus discípulos, seja porque ele os iniciara em ideias, sentimentos e emoções, seja porque sentiram o brilho do seu carácter, o valor da sua abnegação e generosidade ou mesmo a dimensão espiritual de Antero e da sua demanda e a tentaram aprofundar, realizar ?

Fotografia do espólio da família e retirada do Campo-Santo, por Luís de Magalhães, Braga, 1971, obra excelente e que tencionamos apresentar em breve.

Não é fácil discernir-se quais foram, além dos amigos mais conhecidos, os que melhor o sentiram como mestre e tomaram, continuaram e aprofundaram seu testamento anímico espiritual, pois alguns pouco ou nada tendo deixado escrito não entram na história. Outros, embora tendo publicado prosa ou poesia marcada ou devedora de Antero, não conseguiram alcançar aquela notoriedade que os faz sair das prateleiras esquecidas de algumas bibliotecas públicas ou privadas, onde, por não serem reconhecidos e trabalhados, jazem numa certa lamentação, para os bibliotecários ou bibliófilos que os sabem intuir ou escutar.  Alguns desses poetas menores ouvi eu, e já dei conta no blogue, mas agora vou antes dirigir-me aos seus amigos, aos que o conheceram e se consideraram amigos, condiscípulos ou mesmo discípulos.
Quem devermos destacar, em especial na poesia como voz ampla e profunda do coração e da mente em busca do conhecimento, da verdade, dos ideais? António de Azevedo Castelo Branco, Jaime Batalha Reis, Jaime de Magalhães Lima, Luís de Magalhães, Joaquim de Araújo, Vasconcelos d'Abreu, Fernando Leal, Manuel d'Arriaga, António Molarinho?
Ou ainda alguns daqueles com quem Antero partilhou mais frequentemente da sua sábia e iluminante palavra, tais como João de Deus, Oliveira Martins, os irmão Sampaio e em especial o Alberto, os irmãos Faria e Maia, Rodrigues de Freitas, Lobo de Moura, Germano Meireles?
Embora seja bem difícil avaliar, cremos que os principais discípulos, e a um nível ético e espiritual, t
erão sido  Jaime de Magalhães Lima,  Luís de Magalhães e Joaquim de Araújo e como neste blogue já escrevi sobre dois deles, nomeadamente sobre o tolstoianismo de Jaime de Magalhães de Lima e o excelente poema com que Joaquim de Araújo homenageou a  partida da terra de Antero, em termos iniciáticos, glosando o famoso dito:"Morrer é ser iniciado, mas para onde?" https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2017/09/na-morte-de-antero-joaquim-de-araujo.html ...
Vamos tentar mostrar co
mo Luís de Magalhães foi dos melhores discípulos tanto poéticos como espirituais de Antero, transcrevendo alguns dos seus sonetos onde é mais evidente a filiação espiritual, e onde ele no fundo aprofunda e talvez até "redima" ou "reze" os impasses, limitações e fraquezas de Antero, e não referirei os seus dois pouco estudados e valorizados mas fabulosos In Memoriam  de Antero, o que ficará para outras vezes. [No dia 18-VIII publiquei o primeiro: https://pedroteixeiradamota.blogspot.com/2024/08/a-fabulosa-homenagem-antero-de-quental.html ]


Luís de Magalhães (13-IX-1859 a 14-XII-1935, uns dias depois de Fernando Pessoa, que bastante valorizou Antero e foi um dos seus elos posteriores) publicou em 1924, sob o título Frotas de Sonho, (num in-4º gr. de 177 p. da famosa  tipografia Costa Carregal),  um  conjunto de  cento e trinta e nove sonetos, aglomerados sob sete títulos temáticos: O Facho do Amor, Ara íntima, Natura Mater, Em Face da Esfinge, Tuba Épica, Os Cantos do Prisioneiro (onze, escritos quando esteve preso dois anos pela participação na Monarquia do Norte, e creio que alguns podem ter influenciado a Mensagem de Fernando Pessoa, tal como os da Tuba Épica) e por fim Traduções (sete sonetos, um deles atribuído a Santa Teresa).

Ora  no capítulo intitulado Em face da Esfinge, os trinta e três sonetos (tal como alguns  nos outros capítulos, e já abordamos no blogue o Anjo da Guarda) contêm boas indicações acerca do percurso filosófico, religioso e espiritual de Luís de Magalhães, em ressonância muito evidente por vezes com o de Antero de Quental, e pelo que ele escreveu sobre a morte de Antero, creio que foi provavelmente o discípulo mais próximo, ou o que o sentiu mais como mestre espiritual, ainda que também Jaime de Magalhães Lima e Joaquim de Araújo, e outros, o sentissem. Anote-se que na última intervenção pública de Antero, uns meses antes de partir da Terra,  quando liderou nos primeiros meses de 1890 a Liga Patriótica do Norte, contra o Ultimato do imperialismo britânico, fora Luís de Magalhães  quem o convidara para Presidente da Liga, em nome dos estudantes, intelectuais e trabalhadores, tendo as sessões patrióticas e revolucionárias decorrido no Ateneu Comercial do Porto.

 Luís de Magalhães  foi depois da desencarnação de Antero a alma principal, com o dedicadíssimo Joaquim Araújo, da laboriosa organização do In Memoriam, que teve ainda  a colaboração, frequentemente mesquinha, de Joaquim de Vasconcelos.  Ana Maria Almeida Martins estudou muito bem esta magna obra de preservação da alma de Antero,  elogiando muito Luís de Magalhães e Luís de Araújo e criticando Joaquim de Vasconcelos, no seu incontornável Antero de Quental e a Génese do In Memoriam. Leitura, transcrição, prefácio e notas. Angra do Heroísmo, 2001, onde reuniu 373 cartas, muitas bem valiosas, respeitantes ao  demorado parto de cinco anos, pois só saiu à luz em Junho de 1896, acompanhado de uma comenda da Ordem de Cristo para o seu editor (capitalista) francês Mathieu Lugan.
                                                   
Mas avancemos
então para a espiritualidade poética anteriana de Luís de Magalhães, filho do grande orador José Estêvão, e muito rico no seu percurso político e ministerial monárquico, publicista, memorialista, patriota e poético, bem patente na Frota de Sonhos. Transcreveremos alguns dos sonetos do capítulo Em face da Esfinge, o primeiro  mostrando-nos a base ou raiz,  A Esfinge:

«Onde vamos, levados na torrente
Fatídica e invencível do Destino?
O que somos? O que é este divino
Raio de luz, que brilha em nossa mente?

O que é todo este assombro refulgente,
O infindo Cosmos, de que, em vão, me obstino
A interpretar o verbo sibilino
A procurar a origem transcendente?

Que há para além da cúpula azulada?
Que são o Tempo e o Espaço, a Vida e o Nada?
Se há Deus, porque é que ao nosso olhar se esconde?

- Assim, febris e ansioso, exclamamos
Em frente à Esfinge eterna, que adoramos.
Mas a Esfinge impassível não responde!»
 
Eis-nos num soneto bem ecoante das interrogações anímicas, filosóficas e poéticas de Antero e dos seus. Realçaremos de melhor a tentativa de resposta dada à eterna questão iniciática da gnose, do auto-conhecimento e que a Esfinge lança: - Quem és tu, ou "O que somos? O que é este divino raio de luz, que brilha em nossa mente?"
O "divino raio de luz que brilha na nossa mente", ou alma, ou ser, meditou-o Luís de Magalhães suficientemente para o sentir, ou intuir, ou ver no olho espiritual? E com que forma? Raio, chispa, centelha, partícula? Não sabemos, e são mistérios iniciáticos, mas pelo menos mencionou-o logo de início, redimindo o Antero algo filósofo do Inconsciente ora budista da não alma individual....
O 2º soneto, Lacrimae Rerum ecoa os sonetos de Antero onde perpassam a metempsicose e a aspiração à imortalidade das próprias coisas e animais. O 3º O Ignoto é uma glosa, muito evidente, de alguns sonetos e poemas a Deus de Antero. O 4º O Homem, canta a evolução do animal ao humano, corrente no evolucionismo da época e que Antero acolhera. O 5º Á porta do Mistério, ecoa o Palácio da Ventura. Nos seguintes perpassam as ideias, demandas e sonetos de Antero, e nos títulos transparece tal: a Ilusão, a Verdade; Vanitas Vanitarum, Ad Deum (algo do "Na Mão de Deus"), O Naufrágio, Crêde, Catedral, talvez um dos melhores e bem original, a Fé, a Dor, o Santo Lenho, Homem ou Deus, Ele! (eco do Espectro anteriano), Presépio, A Morte de S. Francisco (muito bom), O Milagre, S. Martinho, O Conselho da Serpente, Sonhemos, Ser e Não-Ser (um dos muito anteriano),  Por Onde, Imanência (um dos melhores, ecoando e respondendo a Antero, mas com limitações), Ciência, Síntese (anteriano), Ao Deus interior (uma resposta a Antero, muito boa), O Guia, Nada (algo na linha do niilismo parcial anteriano), Em frente ao Monstro (bastante anteriano), e o último, quase uma resposta final ou sossegante para Antero, Acto de Fé:

    «Creio em Deus, - Ser ignoto omnipotente,
Criador do Universo, ou sua essência,
Guia-me a Lei de Cristo, que a consciência
Nos ilumina como um facho ardente.
 
Ante o mistério das Origens, sente
Minha pobre razão sua impotência:
Mas, todavia, à incerta luz da Ciência,
Busca a Verdade esquiva, ansiosamente.
 
Creio na oculta flama, em nós acessa,
No Génio, que subjuga a Natureza
E, à luz do ideal, conduz a Humanidade.
 
E, num místico anelo espiritual,
Penso que alguma coisa há de imortal
Nisso que, em nós, aspira à Divindade!»
 
Realcemos a valorização da consciência como luz que nos guia, e a aspiração mística e espiritual à Divindade que sente, como sinal de algo imortal, no fundo do espírito que contudo não nomeia, pois ainda não o conhece mas nele crê. 
Considerando a excelente qualidade de vários dos centro e trinta nove sonetos compilados, vamos apresentar mais um, Imanência:
 
«Abismos do Infinito, Astros dos Céus,
Mares, montanhas, testemunhas vivas
Das origens e Idades primitivas,
Rasgai-me do Mistério os negros véus!

Dizei-me quem é Deus, onde está Deus
Coisas eternas, Formas sempre vivas!
Assim, em angustiadas invectivas,
Se perdem, pelo Espaço, os brados meus.

E diz-me a vossa prodigiosa voz:
«Deus está no Universo em corpo e alma!
Deus é a essência do Ser - e habita em nós!

Deus é o sonho divino em que te embebes
No anseio do saber, que não se acalma!
Homem, Deus vive em ti quando o concebes!»
 
O soneto que aborda a Imanência acaba contudo por corresponder a uma actividade mental e não realização espiritual. Há uma certa dependência da exteriorização espiritual e divina a que as religiões do Deus no Céu geraram, pois clama-se para o exterior quando devia ser aspira-se, medita-se, silencia-se no interior. De qualquer modo, e por vezes mesmo por esse meio do clamor exterior, pode vir a resposta, que é ouvida como exterior mas que revela a imanência e Luís de Magalhães intui (ou pensou) bem: "Deus é a essência do Ser - e habita em nós." 
Quanto ao "Deus está no Universo em corpo e alma", afirmação subtil, poderosa e complexa, esperamos um dia dialogar com Luís de Magalhães e Antero de Quental nos mundos espirituais, com Ela bem mais patente e vivenciada maravilhosamente por nós...
 
As correntes auríferas e das Tágides,  no rio Tejo no dia 13 de Agosto de 2024.