sábado, 17 de agosto de 2024

Stradanus: A morte ou dormição de Maria, Nossa Senhora, num belo desenho simbólico gravado no séc. XVI.

    Iohannes Stradanus foi um notável artista flamengo nascido em Bruges em 1523 e que desenvolveu excelente criatividade na pintura, nos frescos e nos desenhos para tapeçarias e gravuras, notabilizando-se nos temas da Natureza, Mitologia, História e Religião, tendo vivido muitos anos em Florença (desde  1545, donde ser conhecido também por Giovanni Stradano, tendo colaborado bastante com Vasari), trabalhando para os Medici e sendo o responsável de vários retábulos dos altares das belas igrejas, ou de pinturas e tapeçarias dos palácios (tal o Vecchio), da cidade do rio Arno, onde casado e deixando descendência veio a desincarnar em 2 de Novembro de 1605, cremos que pacífica e ascensionalmente consciente. Antes trabalhara bastante em Roma e Nápoles, e fora um dos membros iniciais da famosa Academia e Compagnia delle Arti del Disegno, fundada em Florença em 1563, sobrevivendo magníficas obras do seu lavor, entre o clássico e o maneirista florentino, numa vida e obra riquíssima e que tem merecido biografias e exposições de grande qualidade.
                                                  
Antes da sua dormição, como alquimista ou cooperador criativo na obra do Cosmos ou do todo belo ou ornamentado, preparara a preservação da sua imortalidade desenhando uma belíssima gravura  que o famoso Johannes Wierix abriu, e onde transmite os seu testamento anímicos: "Não há nada que a assiduidade não consiga". "Só a virtude permanece, tudo o resto perece. Estando providos disto, sede vigorosos e alcançai a boa reputação e a graça-glória".

Giovanni Stradano merecia tal gravura, pois destacara-se com a sua participação prolífica e perfeita no grande movimento de produção de imagens e emblemas históricos e religiosos em Antuérpia, onde esteve de 1578 a 1603, fornecendo numerosos desenhos para os grandes gravadores da época, tal o pai e os filhos Collaert, os irmão Wierix, Philipe Galle, etc., e que correrão meio mundo.
É  de Johannes Stradanus e de Adriaen Collaert, a gravura circa 1585, que resolvemos apresentar, ainda no rescaldo do dia 15 de Agosto da Ascensão de Maria e  em que partilhamos uma gravura portuguesa, embora já do séc. XVIII, anónima, da mesma Morte ou Dormição (a Koimesis) de Maria, mãe de Jesus Cristo.
Esta, já não anónima mas de Iohannes Stradanus, é bem mais perfeita e completa. Observamos que o acontecimento, sem a presença de Anjos, passa-se de noite, com três velas acessas, uma na mão de Maria, com Pedro a segurá-la, seja para manter a Fé viva nela, seja para confirmar quando ela morre, ao pender da vela. Outra  empunhada por um idoso discípulo armado de óculos e que se encontra à direita do apóstolo que lê um livro sagrado, actividade gnoseológica luminosa que se realiza também (talvez numa pausa) perto da terceira vela, a maior, junta aos pés do leito e do corpo da agonizante mãe de Jesus, talvez assinalando a ligação ao domínio maior da Terra e da morte.
Podemos considerar que as três luzes nocturnas rompem as trevas da escuridão com a sua ignicidade e permitem  a identidade, a afectividade e o conhecimento se realizarem estando por isso bem dispostas nesta cena para contemplação do palco do teatro do mundo e da vida e morte. As duas velas que ardem junto aos livros de oração simbolizarão o seu valor luminoso: as orações e ensinamentos que neles estão contidos, ao serem lidos e entoados, irradiam sabedoria, poder e amor. Por isso no grupo mais próximo de nós estão três discípulos: um a ler em voz alta, outro em atento acompanhamento, segurando uma vela já mais ardida ou empregada e resultante do ler-rezar, e um terceiro discípulo, de joelhos, adorando, manifestando o impacto do que é lido, com as duas mão juntas, talvez apontadas a Maria, talvez dardejando raios da leitura e da sua alma para ela.

Nesta linha mais próxima de nós o desenhador e gravador assinalaram, por jogos  de perspectiva de luz e sombra, alguns pontos-zonas mais brilhantes impulsionadores da ascensão anímica que se está realizar, e são o fim da túnica de um discípulo, os pés de um outro, um S serpentino do que parece um assento também iluminado, e um vaso ao pé da vela maior, junto à face iluminada do idoso apóstolo em oração de mão juntas.
Os outros discíp
ulos transmitem ou transparecem os seus pathos, os seus sentimentos e pensamentos unificados, num momento muito especial, o da passagem da vida terrena para a do mundo espiritual, através do trespasse da morte. E que se trabalha e ensina na tradição egípcia no Livro dos Mortos ou da Passagem para a Luz e que se encontra muito e complexamente desenvolvido e visualizado na tradição tibetana no seu livro do Bhardo Thodol, o da Transição para a Libertação.
A Nossa Senhora não está muit
o deificada, como lhe veio a suceder com o tempo, seja em relação ao momento original da sua morte, seja o da sua reactualização artística no séc. XVI. Ainda se está longe da dogmatização mariana posterior, e aliás as legendas da morte ou dormição e ascensão ou assunção só tinham surgido nos finais do séc. V. A auréola à volta da cabeça é como a dos discípulos muito discretamente assinalada e com o centro do seu círculo perfeito na moleirinha do topo da cabeça, de acordo com a ideia de ser aí que paira mais a centelha espiritual ou por onde o corpo espiritual sai no momento da grande passagem para a luz, menor ou maior claro, conforme a constituição e unificação anímico-espiritual alcançada na peregrinação terrestre.
Assistimos de f
acto a um ritual da arte de bem morrer, todos os discípulos estão em luta, em esforço, para que Maria morra bem, e pode haver nesta representação de Giovani Stradano um intuito pedagógico geral, ao Maria representar a alma humana, ou ainda a Humanidade e portanto quem está a morrer é não só ela mas qualquer alma humana, mormente quem souber contemplar e meditar este ícone no fundo dum bom despacho ou boa Morte.

Que ela está a ser despachada, impulsionada no momento da transição, quase que magicamente perante o espectro da morte (semi-oculta na gravura), depreende-se bem das atitudes de todos os participantes, devendo assinalar-se, além dos que rezam e leem e já mencionados, um que abençoa com a mão e outro que segura uma caldeira com água benta para lançar sobre a senhora, um anacronismo refrescante, pois certamente não ocorreu na realidade temporal histórica.
A legenda ou inscrição da grav
ura reforça, algo ameaçadoramente, a necessidade de se estar preparado para a morte, de se praticar a arte de bem morrer em vida, pois diz: Flete viri Lachrymisque viam laxate vocatis hoc iubare extinctio dirus mundo ingruet horror, assim traduzível: «Gritai, chorai homens que a aurora da extinção do chamado caminho largo deste mundo cruel avança em horror ameaçador
Estão os onze
discípulos juntos, porque segundo a lenda foram subitamente chamados pelo Espírito Santo para acompanharem a que se ergueria a Mãe divina, Ave Mater,  e já agora a trocarem realizações. Há um leve sofrimento na face de Miriam mas a imagem é a de uma boa morte, sem problemas de apego terrestre, nem remorsos, nem receio do além. A alma estava preparada para deixar o corpo físico, mas é sempre um momento difícil, o que a inscrição reforça ameaçadoramente, talvez numa linha de reforço da contrição após o Concílio de Trento.
Dois outros porm
enores devem ser mencionados quanto a esta mise en scéne de uma iniciação na arte de Bem Morrer e são os três vasos, de óleos e de qualidades anímicas que se encontram visíveis nas partes mais altas da gravura, seja um no cimo duma coluna, seja outro no cimo do dossel ou armação da cama, simbolizando que, para a lâmpada da vida eterna arder, tem de haver ao longo da vida a destilação de qualidades e virtudes morais, éticas, criativas e espirituais.
                                                                     
Quanto à presença oculta duma entidade, a Morte (que também pode ser o Diabo, como introdutor dela na Humanidade), entre nós tão namorada por Antero de Quental, António Molarinho e
outros poetas semi-apaixonados pela sua capacidade libertadora, cremos ser a subtil e semi-encoberta figuração que pouca gente terá visto e identificado ao fundo da gravura, ao longo dos seus mais de quatrocentos anos de vida, e que destacamos para os leitores e contempladores, anotando ainda que é frente a ela que se ergue a maior vela ou combustão ígnea da fé ou aspiração e da virtude e amor.
                                                       
Saiba preparar-se para a morte, trilhando o caminho do meio, ou, se quiser e conseguir mesmo, a via estreita espiritual ou iniciática, e vá morrendo e renascendo em vida, paciente, criativa e amorosamente. 

2 comentários:

Filomena Maciel disse...

Grata Pedro por este texto e por lembrar-nos de trilhar o caminho da espiritualidade, preparando-nos para envergar as vestes celestiais.🙏💫🤍

Pedro Teixeira da Mota. disse...

Graças muitas, Mena, pela sua sensibilidade e apreciação. Sim, oremos, trabalhemos e meditemos para que elas sejam cada vez mais luminosas. Abraço cordial.