domingo, 18 de agosto de 2024

A fabulosa homenagem a Antero de Quental que Luís de Magalhães escreveu com o sangue gotejante do amor que os unia e une.

Passado um ano do suicídio de Antero Quental (1842-1891), o seu amigo, e companheiro de luta patriótica dos últimos tempos, Luís de Magalhães (1859-1935) resolveu homenageá-lo escrevendo para o jornal A Província um breve mas muito sentido e elevado In Memoriam, que deixa transparecer a alta qualidade dos dois e da relação que tinham. Resolvemos transcrevê-lo e comentá-lo muito brevemente pela sua excelência e claridade e porque o texto não estava presente na internet, já que após a publicação em 1892 só foi transcrito numa valiosa mas rara compilação Campo-Santo. Artigos críticos sobre as mais notáveis  figuras literárias e políticas do século XIX e XX em Portugal, editada na Livraria Cruz, de Braga, em 1971, por Miranda de Andrade, que prefaciou obra, tal como Joana Inês de Lemos Magalhães, filha do notável escritor e político a quem já dedicamos no blogue dois artigos aos seus bem espirituais sonetos.

O que se destaca mais no texto é o grande amor e admiração que Luís de Magalhães sentia e nutria pela vida e obra de Antero, para ele um mestre a vários níveis, que explica, e a tristeza por ele ter sucumbido ao suicídio, que considera uma fraqueza, um erro, acto contudo que não se deve julgar, nem por ele esquecer-se ou menosprezar-se toda uma vida cheia de actos abnegados, virtuosos, heróicos, tal como ele e alguns dos amigos mais chegados testemunharam no In Memoriam oficial de Antero que sairia só em 1896, e para o qual Luís de Magalhães não só contribuiu como foi, com o malogrado Joaquim de Araújo, também o primeiro a poetizar iniciaticamente a morte de Antero,  o principal organizador.

Oiçamos ou leiamos então (sublinhado por mim nas partes mais importantes) o sentido e intenso Sermo, Verbo, Logos ou Palavra de Luís de Magalhães, ainda gotejante de sofrimento pela partida abrupta do amigo e mestre, auto-consciente e sensível à unidade do espírito e do coração que os liga  e logo aspirando a comunicar com ele a fim de clarificar os mistérios tanto da morte como libertadora no Não-ser, como da vida mais ou menos sossegada que haverá no além espiritual. Quanto a nós, oiçamos e levemos ao coração e à meditação as sucessivas caracterizações notáveis sobre Antero de Quental, o seu ser, obra e demanda:
«Primeiro ano desse etern
o sono do Não-ser, tão desejado, tão ambicionado por aquela alma, sempre agitada pelas correntes desencontradas do Pensamento, sempre torturada por uma contínua dissidência com a Realidade e a Vida! Primeiro ano de eterno luto, de saudade cruciante, de solidão moral, de orfandade espiritual, para as almas que amaram aquela alma, para o espíritos que viveram da irradiação daquele espírito, para os corações que tinham idolatria daquele divino coração. [Uma excelente e original descrição da relação mestre a discípulo, rara entre nós, e que distingue com sensibilidade tanto a irradiação do génio intelectivo e intuitivo de Antero como o divino amor que perpassava pelo seu coração e os tocava e atraía.]

Dá vontade de ir em piedosa visita à beira do seu túmulo, dobrar sobre ele o joelho, colar o ouvido à pedra que o reveste, e perguntar aos despojos do mestre incomparável: - Descansaste, por fim? Cessaram todas as angústias, terminaram todas as dores, acabaram todas as lívidas agonias que te transformaram a existência num martírio? É bem de paz, bem de imperturbada calma o sono que dormes? Como a vida, não te enganou também a Morte, essa trágica e fúnebre Amante, que te inspirou os mais belos dos teus cantos e para cujo seio a tua alma parecia, em cada verso, querer evolar-se, numa atracção irresistível? Se assim é, mestre e amigo, esqueçamos que foi por tua vontade que nos deixaste, que foi por tuas mãos que rompeste a cadeia da Vida - essa térrea cadeia que a nós ainda nos acorrenta neste cativeiro do Vale de Lágrimas, onde os mais fracos se rojam entre queixumes, donde os desesperados se evadem, e onde só os santos permanecem melancolicamente conformados, sublimes de resignação e humildade. [Eis uma excessiva caracterização da vida na Terra como vale de Lágrimas, corrente no Catolicismo, uma visão errada dum bom post-mortem como apenas um sono calmo, e sobretudo uma redução da santidade à submissão ao estado do mundo e da carne, algo que Antero não aceitou e bem lutou contra, exprimindo-o seja nos seus discursos, seja poeticamente, em especial nas Odes Modernas, nas suas duas edições.]

Ah, não é difícil condenar o desespero, a alucinação, o desvario, que levam muitas vezes os melhores dentre os homens ao desgraçado exemplo do suicídio. Difícil é, porém, umas vezes resistir, entre as angústias da vida, às tentações dum eterno descanso, outras ter decisão bastante para ir, firme e sereno, ao encontro formidável do supremo  mistério, em que tudo se dissolve e que tudo se absorve. [Uma visão algo negativa, niilista, já que muito do ser sobrevive, embora "o ir firme e sereno" seja excelente. Em 1935, na série de sonetos sobre o título Em face da Esfinge, no livro Frota de Sonhos, e que já abordámos noutro artigo, vemos que Luís de Magalhães progrediu na percepção intuitiva espiritual]. Coragem ou fraqueza, corajosa fraqueza, ou fraca coragem, - seja qual for a explicação moral e psíquica que se queira dar do acto - nunca sobre ele incidam condenações orgulhosas, porque ninguém tem certos nem seguro os próprios destinos, e porque a impenetrável Fatalidade, que obscuramente joga com os homens e as coisas do mundo, pode, um dia, se lhes aprouver, fazer recair sobre nós, a tal respeito, os próprios anátemas e as próprias sentenças...
Piedade para a fraqueza ou para o
desvario, respeito pela resolução de quem se constituiu em juiz implacável de si mesmo, eis os dois únicos sentimentos admissíveis perante estes trágicos e voluntários fins de vida. Se é facto que peca quem volta contra si um instrumento de morte, não peca menos, perante a bondade humana e a indulgência cristã, o que, para tal erro, em vez de perdão piedoso, tem apenas um seco juízo de moralista inflexível.
Mas quando mesmo se capitule de culpa, d
e quase crime, o suicídio, não poderá ele nunca anular, por completo, o exemplo da grande vida, a que pôs termo. Se é triste condição da natureza humana, votada a uma fatal operação, que nenhuma existência de homem seja completa, isenta de toda a falta, pura de toda a sombra, não podemos negar, por outro lado, todas as virtudes, todos os méritos, todas as nobres acções duma vida, porque, um momento, a razão se entenebreceu e a vontade se deixou desnortear.
Por um passo errad
o, que longa marcha, serena e firme, no caminhar recto da Virtude e da Justiça! Por um desfalecimento momentâneo, quantas resoluções inabaláveis e heroicas, quantas provas de resistência aos males da vida e às agonias da alma! Por um triste exemplo dado à fraqueza humana, quantas altas lições de abnegação, de desprendimento, de sacrifício, de amor dos pequenos e dos oprimidos, de caridade sincera e de piedade generosa!
Por isso, a um ano de distância do trágico acont
ecimento, ainda aberta e gotejante a ferida rasgada pela brutal surpresa, a grande Sombra querida encontra-me de joelhos junto da sua sepultura, cada vez mais firme no meu vivo amor, cada vez mais absorvido na minha fervente adoração. [Que magnífica manifestação do amor a Antero, rara...] Nada há que diminua o zelo deste culto, porque a mesquinhez, baixeza e estultícia dos homens, palpada todos os dias, numa rude lição experimental da vida, parece que cada vez põem mais em relevo, cada vez mais elevam e ampliam mais toda a grandeza da sua eminente, da sua sublime individualidade.
Consola de ser homem o ter c
onhecido homem assim! No meio do céptico pessimismo, que a contemplação da Realidade [material e humana] infiltra no espírito [ou melhor, mais na mente e alma do que na centelha espiritual], - almas, caracteres, como o seu, dão-nos um momento a consoladora certeza de que o Bem, a Virtude, a Santidade, não são meras abstrações do pensamento, mas modalidades reais, se bem que pouco vulgares, da natureza humana. Efemeramente, estas eternas idealizações (aspiração mais alta da Humanidade e sua coroa moral, princípios que a positividade da Vida pode mostrar mal realizados, mas que nenhuma forma de especulação filosófica pode denegar abstractamente) - efemeramente, digo, essas eternas idealizações como que incarnam e tomam uma forma tangível, visível, humana, que nos mantém e nos confirma na sua crença abalada. É o Verbo da Moral que se faz carne, e, numa evidência luminosa, se revela e afirma aos homens. [Eis uma bela visão de Antero como um dos Cristos, um dos Ungidos, um dos Avatares do Bem, da moral, da virtude em Portugal]

Antero foi, na nossa idade, uma das mais belas, das mais puras destas encarnações [ou avarizações, descida de grande ser, ou da Divindade]. Se o génio assombroso do Poeta e do Filósofo garantem ao seu nome uma imorredora admiração, a grandeza da sua Alma e a estóica autoridade do seu Carácter, fixados numa tradição moral, que nunca se apagará, aureolarão a sua memória com uma coroa de amor e de saudade, - coroa divina, divino resplendor, que só irradia em torno à fronte dos Bons e dos Justos. [Belas imagens do efeito da oração e da memória devota no intensificar da aura luminosa de quem partiu do plano terrestre com uma vida justa, estoica até face a tantos sofrimentos psico-somáticos, e a fronte aberta ao bem, ao belo, ao verdadeiro e ao divino.]

De toda a sua glória, será esta a maior: reviver no coração de todos os que estudaram e meditaram a lição da sua vida. [Que magnífica consciência da possível ligação entre mestres e discípulos, entre a Divindade e os devotos] Não esqueçamos, pois, a data terrível, em que ela findou numa explosão de angústias que o desvairaram. Caia sobre essa dor suprema o bálsamo da nossa piedade. Plantemos esta flor mística sobre a terra, em que jaz, regando-a com as nossas saudosas lágrimas.» [E eis-nos com um pedido piedoso, belamente agrícola, que oremos, na comunhão do corpo místico da Humanidade, pela sua alma, que a reguemos pois com o "refrigério" divino, o que na altura certamente necessitava mas que hoje provavelmente já não, de modo a que a sua auréola, e o seu corpo espiritual, estejam mais luminosos e activos no Cosmos divino e em especial na ordem espiritual de Portugal, onde é um elo brilhante, tal como Leonardo Coimbra, Fernando Pessoa, Joaquim de Carvalho, Sant'Anna Dionísio e outros reconheceram e meditaram.]

Costa Nova, 11 de Setembro de 1892. E A Província, de 12-IX-1892.

Que o amor que unia e reúne Antero de Quental e Luís de Magalhães se manifeste nas nossas vidas e nos aproxime deles e dos Mestres, Anjos e da Divindade, e intensifique na Humanidade os valores do Bem, do Belo, do Verdadeiro que eles tanto cultuaram e encarnaram.

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