Contudo, Maria destacou-se cedo, pois, fundados na realidade ou apenas numa lenda, os redactores dos Actos, na parte final dos Evangelhos, descrevem Maria liderando os discípulos em Jerusalém no momento em que há uma descida do Espírito santo, ou mesmo a Descida, o derramamento que até aí não houvera do Espírito Santo, designação de uma Pessoa divina, ou do Espírito divino, ou da (ou duma) energia divina, conforme as muitas tentativas de compreensão ou identificação de tal misterioso sopro ou fogo, que desde as descrições iniciais e depois as hermenêuticas dos primeiros padres da Igreja sempre se pautou por uma falta de unanimidade, suscitando naturalmente debates, heresias, concílios e dogmatizações.
Com o desenvolvimento no Médio Oriente e no continente europeu do Cristianismo, o culto de Maria foi crescendo, com sucessivas valorizações e dogmatizações, e uma avatarização da Divindade Feminina nasceu no Cristianismo (com pequenas diferenças entre a Igreja Ortodoxa e a Católica Romana), complementando tanto o terrífico Jehova como o Pai, bom mas desconhecido e invisível, com muitas Nossas Senhoras a surgirem ora na visão ora na imaginação de seres, gentes e povos e assim em Portugal há centenas de Nossas Senhoras, cada uma com a sua génese, a sua representação tipificada, as suas fontes miraculosos e os seus feitos agraciadores. Frei Agostinho de S. Maria (1642-1728), um frade historiador erudito e até teólogo apoiante das nossas sorores místicas, compilou e deu à luz em 1707 nos dez volumes do seu monumental Santuário Mariano, as histórias de centenas de santuários milagrosos, muitos deles ainda hoje sobrevivendo, embora frequentemente sem as estátuas antigas salvíficas, embora gravuras e pinturas subsistam.
Se as pinturas (mas também as gravuras) conservam-se em igrejas, sacristias, paços episcopais, museus e casas particulares, já as muito mais numerosas gravuras, os chamados registos, de tamanho manual ou de bolso, circularam muito pessoalmente e encontramos em casas, ou dentro de livros de orações, algumas dessas Nossas Senhoras que inspiraram ou abençoaram alguns fiéis que as tinham assim muito próximas das suas almas e necessidades, e quantas delas em modestas molduras de cartão afixadas nas paredes iluminaram tantas vidas e dramas, pois sempre foi regra religiosa e de costumes que a imagem é um ícone, uma representação que se pode tornar animada pelo ser ou as energias de quem está representado, e assim a devoção diante das imagens teve sempre cultores, mais ou menos conscientemente, e que tanto recebiam as energias das formas e sentimentos ou mesmo seres expressados, como também despertavam as suas respostas anímicas, o que podia causar contrição, pacificação, alegria, amor ou mesmo cura.
A morte da Nossa Senhora não será das imagens mais estimulantes nem curativas, mas para quem estava para morrer, quem tinha medo de morrer, quem estava rodeado da morte constantemente, a imagem era útil e assim se compreende, por exemplo, que uma invulgar estampa portuguesa de final do séc XVIII tivesse representado Maria no momento da desencarnação, rodeada dos discípulos, como narra a tradição, e com a particularidade valiosa da pomba do Espírito santo ver-se a pairar e a irradiar luz sobre ela.
Seria um trabalho valioso apurarem-se (ou conjecturarem-se) os motivos de tal escolha pelo artista português, se cumpriu a orientação do comendatário, se seguiu modelos artísticas, ou se antes inovou e sobre que bases, pois quanto à ideia ou fé que subjaz tal aparecimento da pomba podemos pensar que foi levado a tal para replicar o Pentecostes: agora de novo, o Paráclito, estava presente, seja para elevar o momento e Maria, seja para abençoar os presentes, e numa percepção iniciática sabemos como na hora da morte certas energias se desprendem para os mais próximos.
Creio porém que dentro de uma concepção sagrada da arte, em que o que se representa é actualizado pela alma contempladora devota, a bênção do Paráclito, o Consolador, pode dirigir-se e acontecer tanto no passado como para o presente da alma devota que a contempla ou reza, e assim o artista convida-nos a vivermos, a experimentarmos o pathos da santa dormição mariana, no aqui e agora, ou mais ainda na futura hora da morte...
O subtil Espírito santo, que une o Pai e o Filho, o Mundo Divino e Humano, e é Amor, simbolizado na ave ou pomba, tal como abençoou Maria e os discípulos por duas vezes, também agora pode fazer descer o seus raios na alma devota e harmonizá-la.
«O Ex.º e Rev.º Bispo Conde [de Coimbra] concede 40 dias de indulgência a quem rezar a Salve Rainha [Salve, Rainha, mãe de misericórdia,vida, doçura, esperança nossa, salve! A Vós bradamos, os degredados filhos de Eva. A Vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas. Eia, pois, advogada nossa, esses Vossos olhos misericordiosos a nós volvei. E, depois deste desterro, nos mostrai Jesus, bendito fruto do Vosso ventre. Ó clemente, ó piedosa, ó doce Virgem Maria] pedindo à Senhora para a hora da morte a sua protecção.»...
Embora o traço do artista anónimo não seja de grande perfeição, e os discípulos estão quase todo chorosos, menos um que lê o livro da Gnose, do conhecimento, alegre-se com o Anjo que vai deitando flores perfumadas, do que se dirá mais tarde numa bela lenda que tomaram o lugar do seu corpo na tumba. E, sobretudo, abra-se agora e sempre ao luminoso Espírito, seja-o mesmo na santificação ou harmonia que lhe seja possível.
Quando a obter a indulgência, e mesmo que reze ou diga apenas o título, sentindo-o bem, Salvé Rainha, ou Avé Maria, cheia de Graça, se souber cruzar a vida dentro de uma arte de bem viver para bem morrer, certamente desincarnará e avançara bem no Além, com os guias ou protectores que por afinidade possa merecer. E para tal momento, pode fixar este ícone português do Bom Despacho ou Boa Morte, gravando e assimilando mais na sua alma Maria, tão bela e harmoniosamente deitada no seu vasto e ondulado leito, qual tapete de Aladino, certamente contemplando o Céu aberto e a Divindade pelo seu olho espiritual.
1 comentário:
Amén!
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