quarta-feira, 24 de julho de 2024

Das jaculatórias, aspirações ou exclamações, orações breves e intensas. Exemplos da tradição espiritual portuguesa, e da universal.

Emblema  1 da Pia Desideria, desenhada e gravada por Boetius Bolswert, em 1624. Do peito da alma partem as flechas dos desejos ígneos, piedosos, iluminantes.

Jaculatórias: Todas as exclamamos ou exprimimos, em todos nós afloram, do nosso interior brotam e desaparecem, e o que fica dos seus efeitos entretecido na nossa alma e cérebro, além da melhoria de claridade interior e transformações anímicas, pouco sabemos ao certo, apenas em alguns rasgos de clarividência se discernindo padrões e floreados atingidos ou emanados...

Certamente na vida espiritual de cada um e de cada dia há altos e baixos, tempos em que elas surgem e exclamam-se mais naturalmente e eficazmente, outros em que temos de as escolher e praticar, perseverando mesmo contra securas, desânimos, desalentos.

Como as exclamamos, ou seja como as sentimos e com que sentimentos, intenções e consciência as pronunciamos, influencia bastante o seu alcance e efeitos e por isso se não há sincera adesão, sentimento ou comunhão com elas, se não correspondem mesmo a aspirações nossas, duram pouco, desvanecem-se, afogam-se sobre as ondas incessantes dos pensamentos e preocupações.

As jaculatórias, as orações curtas, tanto abrem um caminho interior como exterior de elevação energético-consciencial e há que estar bem atentos para conseguirmos discernir o tingir ou modelar do espaço subtil e anímico.

As jaculatórias ora invocam ora afirmam um ser ou um estado de energia-consciência, e tanto o pedem, como trabalham, como  adoram, como  irradiam.

Elas correspondem em muitos casos ao japa ou repetição de mantras indianos (em geral recebidos na iniciação), ao zikr ou repetição do nomes divinos islâmicos,  e cada pessoa devia escolher algumas e cultivá-las com regularidade e perseverança, nem que seja uns minutos, para depois se poder entrar em estados mais silenciosos, contemplativos, de amor pacificante ou fortificante...

Podemos ter algumas orações breves ou jaculatórias específicas para certas ocasiões ou situações. Por exemplo, ao sair de casa, assumir-se uma e ver até se há outras que se afirmam posteriormente mais. Ou quando tomamos banho e limpamos a casa, ou peregrinamos nos campos e subimos montanhas. Ou ao deitar-nos e  ao acordarmos, alturas em que podemos observar como elas se encadeiam com outras, ou como se geram com originalidade e se desvendam.

As jaculatórias tanto nos defendem de negatividades e agitações dispersivas exteriores e reforçam certas energias ou qualidades como num dos seus níveis funcionais importantes tendem a elevar-nos a níveis mais próximos da nossa identidade ou ser íntimo, o espírito e, consequentemente ao mundo intelectivo, espiritual ou mesmo divinal e podem comparar-se, ou considerar-se, uma aproximação ao estar na presença de Deus,  ao caminhar diante de Deus, como algumas das nossas místicas antigas tanto tentavam alcançar.

A jaculatória, dirigida a qualidades, seres espirituais ou à Divindade pode ser praticada, observada ou desenvolvida ao nível do corpo, da respiração, da palavra, da mente, do intelecto, do coração e da visão, e é importante tanto o sentir ou mesmo contemplar da sua acção dentro de nós e ou acima de nós, como também o afecto, o sentimento, o amor dinamizados, já que têm a ver  com a vontade, com a intensificação sentida de todo o nosso ser e que, por vezes, no seu máximo, ressoa e desperta tanto o nosso querer mais profundo de alcançarmos o nível do que a jaculatória exprime, como também o nosso próprio ser-espírito, sobretudo se a jaculatória o exprime ou invoca mais especificamente, tal: "Viva o espírito imortal", ou a afirmação-oração-mantra dos espirituais indianos de  Sat Chit Ananda, eu sou Ser Consciência Felicidade.

Quando pronunciamos as jaculatórias com todos os níveis do nosso ser em acção a eficácia dela é maior no colorir ou qualificar a nossa aura nessa ligação ou caracterização específica, no unificarmos mais as nossas potências, no abrir-nos mais ao espírito e ao divino, em tingir-nos ou encher-nos mais das forças espirituais e divinas. E o irradiarmos tais energias, quando as proferimos em prol de pessoas com problemas ou que já desincarnaram.

As representações dos santos e santas aureolados exprimia em certos artistas a consciência que tinham dessa unificação ou plenificação anímica, desse brotar da semelhança de Deus, ou seja do corpo de Glória, o xvarnah iraniano, o augoeides grego, que todos possuímos em potencial e que nos seres mais luminosos e abnegados resplandece mais, embora certamente com o tempo tais aureolas e esplendores passaram a ser símbolos indispensáveis da representação dos santos e não correspondendo a uma intuição ou conhecimento do artista que os pintava ou desenhava. Mas ao contemplar-se o ícone e ao pronunciar-se (silenciosamnte ou não) a palavra, invocação ou jaculatória diante dele, tais estados luminosos eram mais facilmente vivenciavéis pelos fiéis.

Suponhamos esta oração ou jaculatória  brotar sentidamente de nós: - "Meu Deus, eu aspiro ardentemente a ti". Ela indica já uma certa ignicidade da alma, ou seja, o centro do coração está em acção, em irradiação, o que se vai intensificar se ela é mantida, usufruída, aprofundada. Na tradição portuguesa, embora seguindo a tradição europeia rosa cruz, um mantra desta linha ígnea foi pesquisado e afirmado por Fernando Pessoa ao parafrasear ou desdobrar as iniciais que encimavam a cruz de Jesus Cristo, INRI, como significando In nobis regnat Ignis, ou ainda In nobis ressurget Ille, ou seja, "Em nós reina o Fogo", ou "Em nós ressurge Ele", o Cristo, Deus, ou o fogo do Espírito.

Viva Deus, santo Amor, é outro mote, tal como o Non nobis, Domine, non nobis sed nomini tuo da gloriam, dos cavaleiros templários, ainda hoje operativos como jaculatórias. Mas certamente as melhores jaculatórias são as que  tendem a exclamarem-se, a suspirarem-se, a arderem de dentro de nós, por vezes para serem mantidas secretamente, apenas emanadas silenciosamente, outras vezes para serem partilhadas em cantos ou meditações e orações grupais.

Na tradição religiosa e espiritual portuguesa houve vários autores que escreveram sobre elas (tais como P. Diogo Monteiro, P. Manuel Bernardes, Frei António das Chagas) e místicas e místicos que  trabalharam mais especificamente certas jaculatórias e transmitindo-as aos seus próximos, umas vezes criando-as por si mesmas, outras vezes adaptando orações tradicionais, tal como a Soror Ignês de Jesus  que abreviara o Pai Nosso e a Avé Maria, ao rezá-las como jaculatórias, dizendo apenas "Pai Nosso que estais nos Céus" e "Avé Maria cheia de graça". Bastava-lhe tal, para em pouco tempo entrar em estados de interioridade e profundidade de  consciência, em sintonia sagrada e divina.

Por vezes as jaculatórias estabilizam-se ritmicamente seguindo a inspiração e a expiração e acalmando o mental, outras vezes entretecem-se e geram escadas ascendentes e ritmicas de sentidos e invocações fecundantes, transfigurantes,

Das jaculatórias cristãs ou portuguesas mais conhecidas poderemos relembrar ainda: "Meu Deus, eu creio, adoro, espero e amo-vos", o "Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo, assim como era no princípio, agora e sempre, Amen", o "Eu amo-vos de todo o meu coração, de toda a minha alma, de todas as minhas forças", e ainda a clássica da tradição hesicasta e peregrina russa, na sua forma mais extensa (que pode ser abreviada): "Senhor Jesus Cristo, filho de Deus Vivo, tende piedade de mim que sou um pecador".

Para finalizar, oiçamos e recebamos algumas jaculatórias da seiva ardente de duas das nossas sorores místicas. Da Madre Brízida de S. António (1576-1655): "Imensa Bondade", "Eternidade para sempre, para sempre glória a Deus", "Mãe de Deus valei-me", "Meu Santo, lançai-me a vossa bênção". E da escalabitana Soror Inês de Jesus, (1641-1728):"Ó Bondade infinita, ó Pai da minha alma"  e "Ay Amor, Amor, Amor!"

Boas jaculatórias, meditações, unificações, irradiações...

                                                 

segunda-feira, 22 de julho de 2024

"Pia Desideria" ou "Desejos Piedosos": o III Livro, e os seus 15 emblemas reproduzidos e brevemente comentados.

Com os seguintes quinze emblemas levemente comentados, concluímos a transcrição das gravurinhas devotas do mais editado livro de emblemas do séc. XVII, a Pia Desideria emblematis Elegiis & affectibus SS. Patrum illustrata, isto é, Desejos piedosos ilustrados por emblemas, elegias e sentimentos dos santos Padres, escrita pelo sacerdote e humanista  Herman Hugo (1588-1629) e impressa pela 1ª vez em 1624 em Anvers ou Antuérpia, então o grande centro tipográfico do livro religioso de imagens na Europa dilacerada pela Reforma, quando os religiosos católicos tentavam transmitir as suas ideias  publicando tanto em latim, como em francês, flamengo ou em outras línguas europeias, em Portugal publicando-se a primeira versão só em 1688.

Frontispício da 1ª edição da Pia Desideria, de 1624.

A obra foi ilustrada por notáveis gravadores,  tais como Boetius Bolswert (a 1ª edição), Christoffel Sichem (a 2ª), Antonie Wierix, ora sobre cobre ora sobre madeira. Debaixo de cada emblema estava inscrita em latim a legenda, que era um pequeno excerto da Bíblia (a maioria do Cântico dos Cânticos), desenvolvida depois numa reflexão meditativa em forma de poema e, por fim, comentada com múltiplos excertos (referenciados) de Padres da Igreja e da Bíblia.

Emblema, legenda com versículo bíblico e poema comentário. No emblema um andarilho anímico: quantos de nós não precisamos deles (...) e do apoio-estímulo dos espíritos celestiais?

Dividida em três Livros num caminho ascendente de purificação, santificação e união da alma (com o Anjo que simboliza tanto o Amor, como o mestre Jesus, como Deus), tal como os títulos indicam Gemitus Animae Poenitentis, Gemidos da alma penitente,  Desideria Animae Sanctae, Desejos da Alma Santa, e Suspiria animae amantis, Suspiros da alma amante, cada um dos livros contém quinze emblemas. Tendo publicado já os primeiros trinta, passamos a reproduzir os do último ciclo, Suspiros da alma amante, na realidade o mais pleno de amor unitivo:

O apaixonado deseja saber do ser amado e reencontrar-se com ele. A alma ferida pelo Amor a quem seja, ao mestre ou a Deus sofre enquanto não os vê ou encontra.

Almas mais místicas, e entre nós algumas sorores (tal soror Mariana da Purificação, clarissa do convento da Esperança em Beja), talvez por terem lido (e visto) a Pia Desideria ou o Cântico dos Cânticos, e por tal se justificado, exclamaram: - "Ajudai-me a respirar melhor com o aroma das maçãs e das rosas, senão despeço-me do corpo e morro de amores."
  
Quando a amada e o amado estão juntos e de mãos dadas florescem as coroas de flores aromáticas, ou seja, os centros de força do corpo glorioso resplandecem e irradiam energias e formas orgânicas belas...
A bússola do coração aponta para quem ele ama e guia-nos na sua direcção.
A Alma que ama profundamente facilmente se derrete e alegra sob o fogo do coração e da palavra do Amado.
O Amor em mim não me deixa presa aos bens da Terra ou do Céu,  e só a ti aspiro e suspiro, ó Amor, ó Anjo, ó Mestre, ó Divindade

- Longe do mundo espiritual, até quando peregrinarei por terras alheias em vez de estar mais unido a ti?
A alma que mais intensamente aspira à Divindade pode sentir como infeliz o estado de estar presa do corpo mortal. Como e quando nos podemos libertar deste jugo? Esta interrogação vivenciou dramaticamente essa alma mística do Absoluto que foi Antero de Quental. Se tivesse conseguido estabilizar uma relação devota com uma pessoa espiritual ou divina provavelmente o seu amor não teria fenecido, e sua vida ter-se-ia prolongado e o seu estado espiritual se elevado...
"Sou como uma ave presa por um fio à Terra e quero elevar-me livremente e ascender para Ti", exclama a alma nos seus momentos de maior devoção amorosa e aspiração divina. Este emblema foi fonte de inspiração para algumas gravuras e azulejos.
"Livrai a minha alma da gaiola e prisão, permiti-me dar testemunho do teu nome e ser", exclama a alma para o seu espírito, anjo, mestre e forma pessoal da Divindade...
Tal como a gazela ou o veado anseiam pela fonte fresca, assim a minha alma te deseja, ó espírito, ó Amor, ó bem Amado, ó Divindade.
Aspirar a conseguir aproximar-nos da mestre ou da Divindade e podermos contemplar a sua face, deve ser uma prece incessante, um fogo latente no coração...
Que a nossa oração seja a de pedirmos asas para podermos elevar-nos acima das transitoriedades e inutilidades e podermos comungar mais com a realidade espiritual, perene, divina.
Intuirmos ou contemplarmos  o mundo espiritual e o templo da Divindade, mesmo que seja apenas o seu átrio, já é uma graça e a tal devemos aspirar e merecer pela nossa perseverança em nos mantermos sintonizados apesar de todas as dificuldades. Eis uma das mais belas gravuras para contemplarmos e sentirmos mais os raios unificadores do Amor divino.
Fujamos das multidões e agitação, meu amor, e vamos para os montes e montados, onde as aves e os animais se exprimem livre e harmoniosamente por entre os aromas das ervas e flores. Saibamos elevar-nos aos montes ou estados expandidos de consciência e transfiguradores em Luz, Poder e Amor.

domingo, 21 de julho de 2024

Da demanda da vera efigie de Jesus Cristo e da sua óptima contemplação...

Jesus trinitário, e não triteísta, no museu de Folclore de Salzburg, séc. XVII.

Descobrirmos a vera efígie de Jesus Cristo é certamente uma das mais difíceis demandas da história religiosa, artística e cultural da Humanidade, pois apesar de haver milhões de representações de Jesus, ninguém tem conhecimento e autoridade suficiente para afirmar que esta é a mais próxima ou fidedigna, a que se poderia considerar quase feita ao vivo e, portanto, que quem a contemplasse, mais do que as indulgências costumeiras antigas (100 dias de absolvição para quem rezar um Pai nosso e uma Avé Maria diante delas), ficaria com o acesso facilitado ao Mestre, no sentido de tanto ele poder mais adequadamente manifestar-se dos mundo espirituais através de tal imagem, como igualmente os contemplantes conseguissem sentir mais as correntes do seu amor, paz, serenidade, certeza e sabedoria.
Sim, em v
erdade, se alguém sente que está diante da vera efígie ou face de Jesus, que alegria, que responsabilidade, que intensificação energética e consciencial brotam em si por estar diante do Mestre?
Pensar-se-á mesmo: Que responsabilidade, o Mest
re estar na nossa casa, na minha alma. Está ela digna da sua presença, ou a desarrumação ou impureza aqui e acolá não é muito consentânea com a sua radiação sublime?

Ícone português da vera efígie.

 Que privilégio admitirmos, aceitarmos, sentirmos que uma certa pintura, ícone, gravura ou desenho  retrata provavelmente muito fielmente o mestre, ou que pelo menos lhe serve de canal de comunicação para connosco, e portanto podemos sentir os seus olhos e a sua boca falarem-nos....
Que fortificação e enriquecimento do nosso coração e alma, que aperfeiçoamento moral e ético ou ainda alegria e graça se geram na nossa alma pela contemplação da  vera efígie?
Pois tudo isto é exp
erimentável e vivenciável quando selecionamos uma ou outra imagem que se nos configura como um bom canal para as  energias, bênçãos ou mesmo a presença etérica do Mestre.

Ícone ortodoxo...

Para quem não tem tanta inclinação para a meditação interior, ou mesmo para orações mais demoradas, quão mais fácil é apenas contemplar a vera efígie e desfrutar de tal visão abençoadora, na Índia chamada darshan.
O objectivo da contemplação é tornar-nos um com o ser ou realidade apresentado ou representado, e é o coração, a dimensão afectiva e amorosa, que sinaliza a osmose alcançada, com alegria, delícia ou, como dizem na Índia, com beatitude, isto é, ananda.
Um dos ú
ltimos verdadeiros espirituais da Índia, sSri Ramakrishna Paramahansa (1836-1886), mestre do mestre de um dos meus iniciadores, Swami Ranganathananda (1908-2005), disse mais de uma vez nos seus inolvidáveis satsang ou companhia da verdade, que nos tempos modernos o método principal de realização espiritual e divina era repetir-se o nome (nama) de Deus que mais gostarmos, sentirmos,  ouvirmos ou sobretudo o nome incluído no mantra que recebermos numa iniciação.

Fotografia ao vivo de Sri Ramakrishna Paramahamsa, em Calcutá.

Pois nos tempos ainda mais modernos de hoje, em que o predomínio das imagens como fontes de conhecimento (e alienação) é extraordinário, podemos afirmar que a contemplação duma imagem sagrada, na Índia denominadas nas suas formulações geométricas yantra e mandala, e murti, imagem duma forma Divina, é certamente um dos melhores meios de acalmarmos a dispersão mental, purificarmos o seu conteúdo e unificarmos a nossa consciência com o que contemplamos e portanto avançarmos no caminho da religação espiritual e divina.
Entre nós, na Tradição Espiritual Po
rtuguesa, religiosos e sobretudo as nossas sorores conventuais, cultivaram muito a devoção ao mestre Jsus e a Deus através de gravuras ou registos que tinham nas suas celas ou que inseriam nos seus livros de orações, por vezes entrando mesmo em estados intensificados de amor unitivo ao contemplarem-nos. A soror Mariana da Purificação, no preclaro convento da Esperança em Beja,  talvez demasiado na peugada de S. Teresa de Ávila, foi uma das que relatou tais estados derivados da contemplação de uma imagem do seu querido mestre e Deus, que lhe intensificava a sua energia anímica e amorosa forte e exuberantemente, qual shakti da Índia.

Pintura de Bô Yin Râ. Original na sua Fundação em Massagno, Suiça.

Nos nossos dias de tanta desinformação e manipulação, conseguirmos abaixar os olhos em relação ao mundo e aos seus media, e antes os dirigirmos para a vera efígie que mais nos apraz, e em alguns minutos  nos determos diante dela em respiração, sentimento, adoração, gratidão é extremamente benéfico para nós e para todos os que animicamente estão em relação subtil connosco, mortos ou vivos.
Contemplar uma imagem de Jesus Cristo, ou de um outro mestre, mais demoradamente é como erguer um canal de Luz que faz descer sobre nós e os que estão ligados connosco valiosas vibrações, melhorando as nossas inspirações e conexões superiores.
Escolha então a vera imagem que mais sinta que gosta, pratique e verá então os bons resultados que gera...

Dia 21 de Julho de 2024, e XXI no Tarot, o Mundo, a carta da harmonia ou mesmo da perfeição possível. Boas contemplações!

sábado, 20 de julho de 2024

Os shamans, e seus poderes, vistos por Marie-Louise von Franz, Carl G. Jung e Mircea Eliade. Reflexões a partir de "Jung, seu mito no nosso tempo."

                                                             

       Marie-Louise von Franz (1915-1998) no seu livro Jung,  seu mito no nosso tempo, que talvez fosse melhor até  o mito que fizemos dele (como alguns criticaram, algo exageradamente, tal Richard Noll),  partilha muita informação seja de Carl Gustav Jung (1875-1961) seja de ela própria e de Mircea Eliade, que merece a nossa reflexão, pois na verdade transmite algumas ideias e ensinamentos ora bons ora discutíveis ora mesmo incorrectos...
O capítulo V, a Viagem no Além, foi o que nos atraiu e, da pequena travessia das suas letras, ideias e vivências, eis alguns dos aspectos questionáveis ou notáveis:
No primeiro parágrafo encontr
amos logo uma afirmação bem discutível: «Ao lado do sacerdote, que vela sobre o ritual e as tradições da sociedade, encontra-se a figura do shaman, que se distingue por uma experiência individual dos espíritos (ou seja do que nós chamamos hoje o inconsciente) e que é especialmente responsável pela cura de indivíduos e de problemas da colectividade».
A fonte ad
optada por Marie L. Franz é Mircea Eliade e o seu livro o Chamanismo e as técnicas arcaicas do êxtase
Jung e Eliade, dois fumadores do cachimbo shamânico, dialogando nos anos 50 em Eranos

Ora é enganador, ou então reducionista, considerar que os espíritos são o inconsciente. Podemos quanto muito dizer que o mundo dos espíritos não nos está consciente, ou que quase sempre estamos inconscientes deles, mas considerar que entidades individuais e determinadas são apenas aspectos ou configurações que brotariam do inconsciente é errado.
Tal perspectiv
a só poderemos considerar útil se pensarmos e admitirmos que, no nosso mundo inconsciente e pelos sonhos os espíritos podem-se manifestar mais, uma vez que a nossa racionalidade diminui e um funcionamento psíquico acontece no qual, para além de meras associações e limpezas, pode haver um ver, agir e ser influenciado por entidades nos mundos subtis, os quais se subsumiram no termo inconsciente, na linguagem de Freud e de Jung.
Jung e Marie-Louise von Franz diminuem assim o discernimento duma visão de entidades seja no plano astral seja no espiritual e propõe antes uma espécie de saco vago e amplo, o inconsciente, acessível pelos sonhos, as imaginações, os desenhos e não tanto pela visão determinada espiritual sobre certos níveis do pluridimensional universo.
Neste sentido também o enaltecido caminho para a individuação, de Jung e da sua escola, não é tanto o da ligaç
ão directa com o espírito, ou ao espírito, mas antes uma estruturação psíquica segundo certos moldes arquétipos e que não implica um eu espiritual como a meta e essência de cada ser, mas antes um vasculhar, compreender e ordenar os conteúdos psíquicos internos de modo a que um eu mais são e total se afirme.
Maria-Lo
uise von Franz diz-nos ainda que «é o shaman que cura os doentes pelo seu transe,  que acompanha os mortos no reino da sombra e quem serve de mediador entre eles e os seus deuses. Num certo sentido ele vela pelas suas almas».
                                                

Eis afirmações algo mistificantes
, possíveis em vários shamans, sobretudo os mais dotados de poderes psíquicos, mas de modo algum com o tipo de domínio pleno ou absoluto como nos tentam apresentar.
Quantos shamans antigos ou actuais conseguem ver a ascensão das almas, quantos conseguem acompanhar na visão, ou pela energias que consigam enviar, uma alma no caminho ascensional post-mortem, tão individual, tão subtil?
Uns poucos, os que conseguem ter a visão psico-espiritual aberta, limpa, algo difícil pois as ervas e poções que ingerem podem distorcer os seus finos sensores psico-espirituais...
Bem podem clamar de novo Mircea Eliade e Marie-Louise von Franz que o shaman serve de
mediador entre eles e seus deuses, quando em geral os deuses representam entidades subtis de planos bem próximos da Terra e que nem exigirão grandes mediações, embora certamente quem faz as danças ou orações trabalha com energias que podem alimentar entidades ou deuses, e impulsionar a elevação dos mortos,  facilitando a abertura dos sentidos das almas dos que partiram para os planos de vida desses deuses, desses anjos da Natureza e de tradições regionais ou tribais.

Um pouco mais à frente encontramos mais uma afirmação mitificante ou exagerada de Mircea Eliade, algo frequente, e em geral diminuindo a força espiritual de cada ser: «O shaman, diz Mircea Eliade, é o grande especialista da alma humana: só ele a vê, pois ele conhece a sua forma e o seu destino».
Afirmação exagerada e algo absurda: prim
eiro, como se só ele tivesse clarividência; segundo, como se a vidência que ele possa ter seja assim tão segura que veja a essência do ser, o seu estado presente e o seu futuro, que dependem de tantos factores. Sabe-se que  a maior parte dos shamans tem uns vislumbres (maiores ou menores) dos planos do Cosmos mais próximos do físico terrestre, frequentemente ligados a espíritos elementais e de animais e aos seus antecessores. Como poderá ele discernir tão facilmente a essência espiritual de cada ser e adivinhar o desenrolar da sua vida, nomeadamente nos planos subtis que tão íntimos são, a não ser que tenha recebido da tradição um mapa arquétipo no qual deduz ou intui a estação da alma desencarnada?


Em seguida refere Marie-Louise como certas viagens no além podem ser vividas em sonhos e como desmembramentos e mortes sucedem nessa linha iniciática de morrer e renascer, que Mircea Eliade e muitos outros antropólogos têm encontrado por toda a parte. Este aspecto é correcto, e os contos tradicionais de enfrentamentos com lobos ou outros seres que nos tentam desmembrar, comer ou matar reflectem iniciações transmitidas por oralidade e vivenciadas nos mundos subtis  e em sonhos, e que visam despertar a força de vontade dos jovens, o discernimento do mal e capacidade de lhe resistir.
Faltará ainda discernir com mais exactidão em que níveis se peregrina no além, e se os espíritos que falam pela boca do shaman podem ser guias elevados inspirando, ou mesmo imagens do Eu espiritual dele, ou apenas possessões interiores por entidades menores ou mesmo imaginações do seu inconsciente dinamizado nessas sessões por vezes bastante intensas e emotivas
Um dos aspectos mais interessantes, pelo que pode apontar para a alma complementar ou gémea, ou ainda mesmo para  um mestre como guia, será o que narram Eliade e Marie-Louise: «Muitos shamans possuem assim uma esposa celeste invisível, outros têm como auxiliar supremo o espírito de um grande shaman defunto, um velho sábio que os conduz, e que frequentemente, durante o transe fala directamente através da sua boca». E assim pode suceder, sobretudo em sociedades tradicionais, com ligações que perduram de mestre a discípulo, mas, repetimos, o entrar em transe, as  incorporações de entidades (que podem ser de todo o género), o alguém falar por nós, são métodos   que não levam  necessariamente a planos e conhecimentos elevados, nem a estados de harmonia e saúde...
´«Ter
a visão dos espíritos, no estado de vigília ou de sonhos, é o sinal mais importante da visão shamanica, diz-nos Marie-Louise,  acrescentando que frequentemente o shaman compreende igualmente a linguagem secreta dos espíritos ou dos animais, em especial das aves».
                                                   
                 Uma shaman na Coreia, povo onde ainda se conserva bastante tal tradição.
Estas afirmações de Mircea Eliade e Marie-Louise von Franz, embora reconhecendo a importância da clarividência, ou uma ligação tradicional, acabam por ser superficiais pois, mais do que ver espíritos, importa é o nível e o controle que se tem, pois pode ser apenas uma vidência de origem atávica ou genética, e portanto muito terrestre e que não foi obtida por merecimentos e realizações próprias.
Entender que a fala dos espíritos e dos animais e aves é algo ao mesmo nível é pouco exacto, pois são níveis e linguagens diferentes, embora certamente o amor do coração emanado, a empatia e harmonia com eles seja o mais importante. Mircea Eliade e Marie-Louise von Franz são em vários aspectos mais teóricos, esotericistas do que conhecedores, iniciados e provavelmente pouco ou nunca dialogaram com animais e aves, nem sentiram a unidade com eles, seja individualmente seja em grupo. Nem viram com o terceiro olho  a Luz espiritual que nos banha.

Para concluir este breve apontamento a um livro ainda assim com valor, destacaremos do que relatam ou especulam a afirmação que os shamans inventam as suas canções e orações, pois tal é certamente algo que todos devemos fazer, de modo a libertar-nos de padrões e a conseguirmos orar e  elevar-nos da mente para o coração e deste para o espírito, os mundos espirituais, a anima mundi onde vivamos, para o divino que cada um possa alcançar, e a Verdade que possa discernir e realizar.

sexta-feira, 19 de julho de 2024

Livros (8º) sobre Sonhos. Seis obras de Ernest Aeppli, Erich Fromm, Marie Coupal, Robert Pagès, H. Schultz-Hencke, Roger Caillois. Apresentação resumida por Pedro Teixeira da Mota.

                                                          

 CAILLOIS, Roger. L'INCERTITUDE QUI VIENT DES RÊVES, Paris, Gallimard, 1956. In-8º 168 págs.

No começo da justificação do livro, este  intelectual e sociólogo francês consagrado por uma longa vida (1913-1978) nos meios literários europeus e da Unesco, que passou pelo surrealismo e o sobrerealismo até chegar a ser eleito membro da Academia Francesa em 1971,  e que exigiu um rigor algo materialista para que não se caíssem nos excessos de imaginação e misticismo do começo da mentalidade da new Age, afirma bastante descrente e crítico que «os filósofos, de Shankara a Pascal e a Leibnitz, definiram de bom grado a realidade como um conjunto de sonhos bem interligados  Era para retirar a realidade ao mundo exterior e para apresentá-lo como uma fantasmagoria da qual a consciência despertaria um dia qualquer. Assim se estabelecia como que uma hierarquia: o sonho, a percepção, a iluminação ou conhecimento verdadeiro, que ordenava tanto os graus do saber como os da existência da realidade. Outros, entretanto, não deixaram de se interessar sobre o conteúdo do sonho, as imagens enigmáticas que o constituem e das quais se esforçaram por interpreta o sentido. Segundo as épocas e escolas acreditaram poder ler-se seja o futuro do sonhador ou os segredos inconfessáveis que ele esconderia ao seu próprio olhar. Compuseram em geral léxicos de símbolos que deveriam permitir decifrar, segundo o caso, mensagens sobrenaturais ou confissões duma consciência atormentada. Nenhuma destas duas preocupações tradicionais tem grande relação com o texto que se segue. Para mim, com efeito, os sonhos tem muito pouco mais sentido que as formas das nuvens ou os desenhos das asas das borboletas». Acrescentemos que da América do Sul, onde esteve durante a 2ª grande Guerra, trouxe uma bela coleção mineralógica, e que foi o grande tradutor de Jorge Luis Borges em França.

Anote-se que esta caracterização algo caricata, superficial e pouco interessada no auto-conhecimento pela via da compreensão de algo de tantas horas numa vida, ainda que certamente certeira em algumas crenças, práticas e interpretações exageradas e dogmatizantes, está acompanhada no livro por um esforço de compreender o que se passa com a consciência, para ele ausente do sonho que é apenas um espetáculo em geral anárquico de imagens e onde atribuímos erradamente ao nosso ser-imagem nelas uma continuidade de nós próprios, recusando-se Caillois assim a aceitar que elas se ordenem inteligivelmente às ordens de alguém que não é a sua consciência.  Provavelmente sem nunca ter tido sonhos mais vividos, provavelmente recusando a existência de um espírito e corpo espiritual no ser humano, Roger Caillois passará ao lado do aprofundamento, catarse, renovação e inspiração que os sonhos suscitam, como tantos seres ao longo do tempo vivenciaram.  

PAGÈS, Robert. ITINÉRAIRE DU SEUL. Essai. Paris, Robert Laffont, 1962. In-8º 227 p. 

Uma obra valiosa, das duas geradas por este (1919 a 2007) psicólogo e professor no CNRR francês, expondo nela um caminho do auto-conhecimento, pontuado pela sabedoria oriental e ocidental, com algumas referências ao dormir e ao sonhar. Abre com três valiosas citações, e o prefácio está imbuído de activismo esperançoso espiritual, e de gratidão aos seus iniciadores: os da tradição espiritual indiana, o crucificado Nietzche, e a mulher que o fez empenhar-se na luta contra o anjo e o demónio em si. Citamos a 1ª frase, as outras sendo de Al-Gazali e de Oswald Spengler: «Mais vale a cada um a sua própria lei de acção [o swadharma, dever próprio], mesmo imperfeita, que a lei de outrem mesmo que bem aplicada. Não se incorre em pecado [culpa ou falta] quando se age segundo a lei da sua própria natureza», Bhagavad Gita, XVIII, 47. 

Numa obra caracterizada pela aproximação e valorização da «migração para o interior de nós próprios, e que Aldous Huxley chama a Paz das Profundezas», Robert Pagés realçará quanto o sono e os sonhos nos revitalizam em cada noite, transformando-nos e enriquecendo-nos para avançarmos no caminho da procura da verdade e da acção necessária ou justa, para o qual considera como a base fundamental o estarmos conscientes no presente, a cada momento, o aqui e agora.

 

BOREL, Adrien & ROBIN, Gilbert. LES REVEURS ÉVEILLÉS. Paris, Gallimard, 1925. In-8º 219 p.

Boas aproximações aos sonhos, devaneios e ao inconsciente, visto como uma entidade dinâmica e em constante luta com a censura do Eu. Face à crescente rapidez do ritmo de vida  após a 2ª grande Guerra, realça a necessidade de se aprofundar um estado próximo do sonho, o estado de devaneio (reverie) em que se observam as imagens que se associam por si mesmas, e que pode ser cultivado ao descontrair-nos seja passeando, seja num sofá. Um nível mais elevado, a que chama songerie, escolhe um tema ou imagem e deixa-o prosseguir e interligar-se ou associar-se, na tonalidade afectiva desejada e mantida

O "Sonhador desperto", título da obra é então aquele ser «que se deixa ir pela meada dos pensamentos e que se esquece assim do que se passa à sua volta», aquele que se deixa entrar num divagar, que vive mais no mundo imaginário e satisfeito. São seres próximos do autista, pois neste «o pensamento não procura obedecer aos rigores da lógica racional. É uma lógica afectiva e incomunicável à pessoa normal. Um pensamento solto e fluido como o sonho. É um sonho desmesurado que desloca os limites do real e refaz o mundo de uma maneira original, muito inalcançável.» E fá-lo como artista que tece um outro mundo feérico, ou então como um receptáculo de tensões psíquicas, complexos afectivos que não se manifestaram e se mantém escondidos. Os capítulos seguintes da obra estudarão os diferentes devaneios ou "sonhares" da criança, do adulto, do mórbido, do ser médio e dos que chegam à obsessão. O equilíbrio do mundo interior e do mundo exterior, da afectividade íntima e da partilhada, das tendências e qualidades será então um fim que se procura ora sonhando descontraidamente ora sabendo determinar-nos no que se quer aprofundar e desenvolver.

FROMM, Erich.  LE LANGAGE OUBLIÉE. Introductions à la compréhension des rêves, des contes et des mythes. Paris, Payot, 1980, In-8º 212 p. 

Psicanalista de Berlim, judeu emigrado para a USA com  o nazismo, desfrutando de uma multiculturalidade de aprendizagem e diálogo que o ajudou a libertar-se de Freud e do seu puritanismo e abstração da vida, conseguiu desenvolver uma visão crítica dos padrões culturais da sociedade burguesa capitalista (para a qual o ser humano é um meio e não um fim em si, e que gera o passivo homo consumitor), bem como uma psicanálise mais humanista graças a uma aproximação multidimensional à psique humana, ao subconsciente e aos sonhos, vistos como linguagem universal. Capítulos do  livro: Introdução, Natureza da Linguagem Simbólica, a Natureza do Sonho,  Freud e Jung, História da Interpretação dos sonhos ( A primeira interpretação, não psicológica dos sonhos. A interpretação psicológica dos sonhos.) A arte de interpretar os sonhos. A linguagem simbólica nos mitos, nos contos, nos ritos e nos romances estudando de cinco mitos: Édipo, Criação, Chapéuzinho Vermelho, o rito do Sabat, o processo de Kafka. Prefere compreensão à interpretação. Este breve resumo dá apenas uma pequena imagem do psicólogo e psicanalista que teve grande voga nos pessoas dos movimentos new Age.

                                         

COUPAL, Marie. LE GUIDE DU RÊVE ET DE SES SYMBOLES. De A a Z, tous les sens de vos rêves. Ottawa, 2004. In-8º 567 p. Embora com alguns optimismos new age quanto aos mundos e realidades subtis, o extenso dicionário revela boas leituras de Jung, Adler, Freud, além de boa sensibilidade mas como todos os dicionários dá por vezes interpretações muito pessoais ou limitados a imagens ou símbolos que noutras pessoas teriam ressonâncias, leituras e  causas ou fontes bem diferentes. A Introdução, de quarenta páginas, é valiosa, com alíneas sobre: Linguagem simbólica e projecção pessoal; símbolos inatos e adquiridos; princípio feminino e masculino; símbolos gerais, cores, aspectos musicais, arquétipos, dos povos antigos, do alto e do baixo, de palavras inductoras, sonhos recurrentes. Conteúdo manifesto e latente. Fenómenos   de censura e de repressão. A deslocação, a condensação e a inversão. Personagens simbólicas: a sombra, o animus e a anima. Os tipos de sonhos. Sonhos em cores, e a preto e branco. Porquê trabalhar os sonhos. Para bem analisar o seus sonhos (Possuir algumas noções de psicologia, e falar dos sonhos e pesadelos). Meditação.

         AEPPLI, Ernest. LES RÊVES ET LEUR INTERPRÉTATION. Avec 500 symboles de rêves et leur explication. Paris, Payot, 1962. In-8º 308 p. 

Formado em Psicologia e em Letras, psicoterapeuta da escola de Carl Gustav Jung, o austríaco Ernest Aeppli, (1892-1954) apresenta um resumo da ciência psicológica de então, com alguma originalidade, pois após a 1ª parte sobre a Natureza do Sonho, ea 2ª A Interpretação do Sonho, onde passa por Freud, Adler e Jung, na 3ª parte, a mais extensa, cerca de metade do livro, sobre os Símbolos Oníricos, com 26 divisões, aborda o simbolismo do corpo humano, veículos e instituições acessórias, perigos, sonhos de escola e exames, dinheiro, morte, animais, igreja e cultos, com bastante cultura de arquétipos e tradições, chegando a descrever o processo yoguico da subida da kundalini ao longo dos vários centros nervosos até chegar à coroa da vida, certamente algo perigoso de ser feito por si mesmo ou guiado por satgurus de pacotilha Frequentemente corrigindo ou alargando as visões mais limitadas da psicanálise freudiana (excessivamente sexual) pela jungiana ,mais abrangente nas motivações e impulsos na vida, mas caindo por vezes no erro de definir sonhos por interpretações gerais quando cada imagem simbólica num sonho tem a sua verdade própria interpretável apenas no contexto dessa pessoa e da sua idade, evolução, sensibilidade e integralidade ou alinhamento, tanto mais que por vezes são elas, mais do que espelhos, efeitos de compensações. Realce-se, nesse sentido da pessoalidade, que Ernest Aeppli começa a obra assim: «O sonho pertence às experiências mais pessoais do ser humano. É ele e não outro que sonha» e pouco depois cita Jung para quem o sonho era uma conversa que se passa no inconsciente, provavelmente a tempo inteiro e de que nos chegam alguns fragmentos. Nessa direcção virá uma citação bem revolucionária um pouco à frente, de Pfaff, que muitos de nós já sentiram por vezes, embora não seja conveniente exagerar devido ao desgaste que se pode causar no cérebro e corpo: «só o corpo tem necessidade de sono, não a alma». Talvez por isso algumas almas, demasiado cansadas corporal e até animicamente, sonhassem ou desejassem a morte como adormecer um ficar a sonhar na mão de Deus. Antero de Quental, tão desgastado psico-fisicamente, andou por estas margens do além, coforme vemos em alguns dos seus sonetos nomeadamente Na Mão de Deus, a quem já consagramos alguns artigos neste blogue.

  Um exemplo mais conseguido das suas redacções interpretativas, sobre a paisagem no sonho: «Os sonhos do país ou paisagem da nossa juventude  podem ter um sentido positivo ou negativo. Durante a nossa evolução pessoal, todas as faculdades que a vida nos agraciou na origem não são utilizadas. Uma parte delas permanece latente na região da alma que contém as imagens da nossa juventude. Muitas vezes sonha-se numa certa rua de outrora, que nos tínhamos esquecido completamente. Deve-se perguntar então: Quem habitava esta rua, o que se passou aí, porque a usámos emprestada tantas noites seguidas? Com a ajuda do contexto e das ideias sugeridas automaticamente, pode-se responder; e acabar-se-à por fazer aproximações que reanimarão  uma parte do que foi deixado nessa rua com os seus habitantes. É esse conteúdo que convém no presente assimilar-se.».

Esta leitura dos sonhos como convites a reapossarmo-nos de vivências passadas numa orientação mais harmoniosa e dinâmica para que uma maior plenitude do ser possa brilhar e manifestar-se,  é proposta por vários estudiosos dos sonhos...

quinta-feira, 18 de julho de 2024

"Pia Desideria" ou "Desejos Piedosos": o II Livro, e os seus 15 emblemas reproduzidos e comentados.

A Pia desideria, Desejos piedosos, de Herman Hugo, dada à luz em 1624 em Antuérpia, num in-12º de (28)-412-(3) páginas, foi a obra religiosa de emblemas que teve mais sucesso nos séculos XVII e XVIII, com dezenas de edições em latim e nas línguas vulgares,  constituindo um repositório de imagens de mensagem moral e espiritual que podemos admitir ou considerar como já bastante introduzido no inconsciente colectivo ocidental, sobretudo cristão, e logo operativo ao ser contemplado, lido, meditado, assimilado...

Tendo apresentado num artigo anterior mais historicamente a Pia Desideria, que está dividida em três livros, cada um com 15 emblemas e seus comentários, e tendo reproduzido os emblemas do I Livro, comentando-os, resolvi prosseguir com os quinze emblemas do II Livro, comentados brevemente. Anote-se que houve noutras edições outros artistas a gravarem com simbologias diferente os motes dos versículos bíblicos, as que reproduzo sendo as da 1ª edição, de 1624, em Antuérpia, realizadas pelo notável Boetius Bolswert (1580-1633), na tipografia de Henrick Aerstsfen (1586-1658). Não transcrevemos nem traduzimos os versículos bíblicos que constituem a legenda ou letra do emblema, que pode ler sob cada gravurinha em que a alma dialoga com o Amor Divino, ou o Anjo da Guarda, ou o Cristo, sob a forma de um Anjinho.

                                        

Neste emblema vemos a alma afastando as sugestões amorosas dum Anjo Cupido (ao fundo, um cavalo aos pinotes) e olhando antes para as leis ou mandamentos sócio-religiosos (ao fundo, o touro manso), patenteados pelo Anjo aureolado, que pode simbolizar o mestre Jesus, ou o Amor Divino, preceitos que a podem orientar para se tornar justa ou justificar perante Deus e a sua consciência ética mais elevada.

A alma, vestida como uma peregrina do caminho de Santiago, exprime o seu desejo em prece de ser guiada pelas inspirações mais elevadas e divinas e assim avançar no labirinto de cada jornada diária.
                                                             
A alma, num andarilho, algo partida e cansada, aspira e tenta avançar segundo as instruções do Anjo algo fisioterapeuta, que ecoa a sabedoria divina, o Mestre, a Divindade interna: porfia, persevera, usa a tua vontade conscientemente.
  
A alma, em dúvidas, pede que a severidade, o castigo, o temor, o medo, lhe sejam mostrados, sentidos, para se decidir pela via correcta e agradável ao Mestre, à Providência Divina.
    
A alma pede  ao Anjo da guarda que a faça evitar as tentações de vaidades e aparências, e que os seus olhos e a mente não sejam tão curiosos face aos estímulos diversos do mundo.
       
A alma pede ao seu Anjo e voz da consciência que a ajude a manter o seu coração conformado com o arquétipo divino e portanto sem manchas, limpo, puro, aberta apenas a inspirações do Bem.
                                                     
- Onde estamos melhor é nos campos, no meio das árvores e das aves, longe da agitação e poluição citadinas. Partamos, peregrinemos e desfrutemos a Natureza.
A alma pede ao Espírito, ao Anjo, ao Cristo, que a ajudem  a segui-los e a desfrutar das suas fragrância perfumadas.
 
A alma aspira a manter uma relação fraterna com o espírito, com o Anjo, com o mestre, como se fosse uma irmã mais nova, amada e protegida por eles. E promete amá-los, lembrar-se deles durante o dia a dia. pedindo-lhes inspirações, comungando com eles.
Não é fácil deitar-nos e descobrirmos o Anjo, o Espírito. Há que trabalhar, levantar-nos, orarmos e meditarmos e então talvez o possamos encontrar e sossegarmos.
A alma muitas vezes, deve decidir-se a deixar os seus confortos e ir à procura do Divino espírito pela noite a fora.
Nesta busca do Amado, que nos leva para além dos muros e guardas, subitamente podemos encontrá-lo, quem verdadeiramente mais nos ama. e  devemos então abraçá-lo, cingi-lo, estabilizarmos na unidade,
É bom caminhar às cavalitas dos que nos precederam no caminho, dos grandes seres e mestres que deixaram testemunhos que aumentam a nossa confiança no Anjo, na abertura ao espírito divino  em nós.
A alma que sabe sentar-se diante das árvores e à sombra do ser sagrado, respirar conscientemente, orar e contemplar o Divino, harmoniza-se, ilumina-se, serena.
Mesmo ignorantes de tantos aspectos misteriosos da vida na Terra, podemos sentir a comunhão interior com o amor, o espírito, o anjo, a Divindade  nisso desfrutarmos a paz e amor divinos e cooperarmos melhor com a Providência divina.