sexta-feira, 23 de abril de 2021

Dia Mundial do Livro, 2021. Pequena reflexão e um improviso frente a uma estante repleta de livros...

Nestes tempos de crescente digitalização da vida os livros representam sem dúvida uma das mais lídimas frentes da batalha pela preservação das melhores qualidades da Humanidade, pois são certamente o invento mais importante, logo a seguir aos alfabetos e escritas, enquanto fomentador e preservador do conhecimento, e assim por eles resistimos e avançamos, aos ombros dos que nos antecederam, face a todos charcos em que nos querem atolar.

Comemorarmos o dia Mundial do Livro com algumas formas de culto aos livros, à escrita, aos pensamentos e ideias que melhor possam inspirar os seres na suas peregrinas vidas terrenas é uma obrigação moral, sobretudo para os que mais amam os livros, que os escrevem ou lêem ou que mesmo trabalham com eles, como tem sido o caso de algum de nós mais particularmente.
Todavia, todo o ser em sua vida, é um gerador de amor, de beleza, de sabedoria, de bondade e que o fez, disse, pensou e sentiu de um modo ou outro mais valioso foi escrito e fica no Cosmos nesse grande Livro subtil e divino das vidas humanas.
Sabermos, para além do agir e viver, escrever mesmo, seja em diário, apontamentos, artigos ou livro, melhor, pois enriquecemos o património mundial e passamos aos vindouros algo da chama ardente dos nossos amores e ideais, e assim vamos mantendo um tradição espiritual viva, benéfica e contribuindo para que o planeta e a humanidade não sejam muito destruídos pelos diversos egoísmos, ganâncias, ódios, fanatismos e imperialismos.
O acto de escrever, ou de ler, diariamente, algo com valor é uma obrigação nossa seja para o nosso ser mais profundo, seja para os nossos antepassados e mestres, que aspiram a que os seus testamentos sejam cumpridos ou continuados por nós, e até para a Divindade, fonte primordial de toda a Luz e que tanto se consubstancia nos livros, ainda que subtilmente para o leitor menos atento e sensível.
Frequentar bibliotecas se possível ou termos algumas estantes, ou que seja, apenas prateleiras, com os livros que mais gostamos ou que sentimos que são bons e valiosos sobre certos temas, ou cujos autores e suas vidas e ensinamentos investigamos ou mais ressoam connosco, é também um dever ético e espiritual de cada um de nós que não quer ser apenas um ser manipulado e consumidor, um número controlado pela máquina do Estado, mas um ser criativo e no caminho de vida eterna luminosa.
Sendo hoje o dia Mundial do Livro de 2021, quando o soube ao meio dia, através da Fátima Mateus Ramos, e depois pela Cristina Ferreira, decidi gravar um pequeno improviso, que ficou de cinco minutos (por um telefonema...), diante de uma estante e dos seus livros e autores representados, e que encontrará no fim. Revi depois alguns artigos do blogue escritos no ano passado sobre os livros, e entre as sete pouco e as oito escrevi um livrinho manual de oito páginas, a dado momento às cores do arco-íris, que partilharei brevemente.

Possa o amor aos livros e à sua sabedoria, e logo à biblioterapia, manter-se sempre ou mesmo crescer naqueles que mais os amam, protegem, cultuam e partilham. E neste sentido vão os agradecimentos da ordem do Universo, e da Divindade a todos os escritores e leitores, tipógrafos e encadernadores, designers  e ilustradores, livreiros e alfarrabistas, compradores e vendedores, aos que os oferecem e os que sendo autores os dedicam, aos bibliotecários e catalogadores, aos bibliófilos e amigos dos livros, às poetisas e às narradoras de histórias, a quem nos ensinou a ler ou ainda hoje ensina...

 Um novo ano com belos e valiosos livros e leituras, investigações e descobertas, escritas e partilhas, para que nós e a Humanidade e o Planeta melhorem...

                         

quarta-feira, 21 de abril de 2021

"Apologia da Árvore", por Guilherme Felgueiras. Palestra no Dia da Árvore em 1917, em Cortegana.

APOLOGIA DA ÁRVORE, por Guilherme Felgueiras, Agricultor Diplomado e Regente Florestal. Trecho duma palestra realizada na Cortegana – Arbor Day - 1913, e impresso em 1917 na Tipografia Sequeira, Porto, é uma obra muito bela e que revela notáveis conhecimentos do que mundialmente se fazia com as árvores, e com indicações, quem sabe, que nos motivarão a certos trabalhos com elas. Destinada a crianças e jovens, está numa linguagem simples que dispensa comentários, embora com termos hoje já raros. Li-a há uns meses a um sábio do Gerês transmontano, o Manuel Afonso, de Sirvozelo, já nos seus oitenta anos e que apreciou e confirmou  alguns dos costumes etnográficos referidos por Luís Guilherme Felgueiras. Esta seria a parte que mais se poderia aprofundar em comparativismos etnográficos valiosos, mas fica para outros ou para outra vez. Realcemos apenas o conhecimento amplo por parte de Guilherme Felgueiras do importante papel que as árvores e os espíritos da natureza (embora não mencione as dríades) tiveram nas religiões antigas e como ainda hoje se conservam em alguns aspectos ou tradições delas, e destacaríamos o Shinto, e como tantos dos melhores escritores testemunharam o seu amor ou culto das árvores.

Avancemos então no amor às árvores, algo tão necessário face à moda arboricida e descartável que alguns presidentes de Câmaras e de Juntas de Freguesias têm intensificado em Portugal, em especial nas grandes cidades, algo que alguns grupos no Facebook denunciam infrutiferamente quase diariamente, ou propõe reflorestações e alternativas agro-biológicas, tais como a Plataforma em Defesa das Árvores,  Alvorecer Florestal e o Montado do Freixo do Meio.

Foi dedicada "A meu querido pai e meu santo amigo". E numa bela letra manuscrita a tinta azul-violeta, no exemplar que a amiga Cláudia Lopes graciosamente transcreveu, lemos a dedicatória ao escritor e amante da  Natureza,  Mário Kol de Alvarenga (1892-1967):


* Breves noções históricas sobre a árvore; seu papel nas práticas religiosas; seu valor e propriedades. A lã, o leite e o marfim vegetais. A árvore julgada por notabilidades literárias. 

«Coube à árvore, desde a infância dos tempos, uma missão generosa e divina. Quando o homem, ingénito aventureiro, se arriscou a pastorear os bucólicos rebanhos e a agricultar os terrenos maninhos, tornando-os fecundos, foram as árvores, cheias de pompa e fragância, que lhe indicaram, num doce sorriso de irmãs, a quadra propícia para a oportunidade dos amanhos: na primavera toucando-se de flores, no estio e no outono cobrindo-se de frutos, no inverno despojando-se de folhas que, ao cair, são «lágrimas das árvores em reza». (Garcia Pulido.)

As árvores constituíram objecto de veneração dos povos primitivos e tiveram um papel preponderante nas práticas religiosas. Os Faunos e Silvanos foram os primeiros ídolos de nossos avós, os bosques espessos e maciços escusos seus primitivos templos, como assevera a mitologia e Plínio o constatou nesta frase substanciosa: «Hœc fuere numinum templa» [Estes foram os templos dos numens ou deuses]. O carvalho era consagrado a Júpiter, o loureiro a Apolo, a oliveira a Minerva, o pinheiro a Pan, Demeter, Artémis e Cybele. 


                                              'Orpheus' by Jan Brueghel (I).JPG 

Segundo a lenda, Orfeu, personagem mitológica, arrancava da lira sons tão harmoniosos que, para ouvi-lo, as torrentes sofreavam as águas, as árvores desciam das montanhas alterosas e as feras acudiam ao tropel, selvagens, velozes, desenfreadas…; fascinados pelos seus cânticos, os homens trocaram a quietude das densas florestas, povoadas de mitos, pelo tumulto citadino onde progressivamente se elevaram pela ciência e pela civilização. 


A coroa que cingiu por demorados anos, nas escolas de medicina, a fronte dos doutorados, era feita de vergônteas de loureiro, guarnecidas dos seus frutos baciformes, como o confirmam os títulos de bacharel e bacharelado (bagas de louro, baccœ laureœ). As estátuas de Esculápio, deus da medicina, coroadas de loureiro e os ramos desta árvore colocados à porta dos enfermos, anunciavam a plena confiança que se tinha nas suas virtudes medicinais. Os ramos de louro e de carvalho, entrançados em coroa, ornavam entre os romanos a cabeça dos que se distinguiam (Garcia Pulido)  pelos seus feitos heróicos. Hoje, nestes tempos positivistas da telegrafia sem fios de Marconi, dos couraçados de Lome e da fotografia da palavra de Marage, o loureiro é querido pelas suas folhas condimentares e o emblema imaculado e transcendente foi-lhe desvirtuado, como o atestam aqueles satíricos versos da Morte de D. João:

« A coroa de loureiro, a coroa eterna
Que de Homero cingiu a larga fronte,
Vejo-a agora, nem sei como isto conte,
Pendente dos umbrais de uma taberna!»

Nossos errantes antepassados, hercúleos e sóbrios, divagavam pelas florestas, munidos de machados de sílex, gravando nas árvores patriarcais as suas imortais descobertas e buscando nas mesmas árvores o seu frugal alimento: frutos cor de oiro e cor de púrpura e pão grosseiro feito de landes de carvalho. Pernoitavam no côncavo das árvores e veneravam o altivo pinheiro, considerando os seus verticilos, como dóceis protectores das neves e desabridas ventanias. Ainda hoje perduram reminiscências deliciosas do culto primitivo e nas solenes festas do Natal não falta o pinheiro legendário, ajoujado de brinquedos hilariantes, onde os olhos da gárrula pequenada descansam elevados. Quando o Natal se avizinha, os lavradores mais devotos e opulentos das nossas rústicas aldeias sertanejas mandam cortar um ramo ao mais vigoroso pinheiro, que é solenemente posto sobre a lareira. Na tradicional e festiva noite de 24 de Dezembro, acende-se o ramo que rechina até alvorecer, guardando-se com devotado recato o que escapar das chamas, pois, segundo crêem os ingénuos camponeses, tem, além de outras miríficas propriedades e virtudes, o condão de os preservar dos raios.
Os gregos, que tudo foram em matéria de beleza, dignificaram a oliveira, convertendo-a em símbolo da sabedoria, da abundância e da paz; em alguns países os aldeãos, de costumes puros e simples, colhem ramos dessa árvore quando pressentem que o granizo lhes ameaça as culturas. Nos nossos bíblicos olivais nota-se, durante a faina da colheita da azeitona, um ressurgimento bárbaro, um regresso à animalidade, tal a maneira impiedosa como são açoitadas essas árvores de pacífica folhagem, a que o lírico [António Correia d'Oliveira] delicadíssimo do Coração das Árvores e do Pinheiro Exilado, notou «um ar compassivo de enfermeiras». 

Bem possuído das belezas do arvoredo, Fialho [de Almeida] escreveu aquela frase mística, cheia de candura evangélica: «se eu tivesse uma filha, ensinar-lhe-ia a ouvir a missa das florestas, e a pedir a bênção às árvores, como a velhos vovós»; e Junqueiro, cheio de fervor religioso, escreveu aquele trecho rutilante, velado de misticismo, a propósito dessa majestosa catedral de verdura, que se chama Buçaco: «…é uma floresta sagrada, espiritual. Paisagem para um santo, para uma grande alma contemplativa e cheia de amor: Beethoven ou S. Francisco de Assis». 
É justificável a aspiração de Tolstoi, o excelso pensador russo e sublime evangelizador, em desejar uma sepultura humilde, rodeada de árvores rumorosas, no retiro da sua propriedade de Isnaia Poliana; teve razão Alfred de Musset, em pedir em versos harmoniosos, um salgueiro de ramaria graciosamente pendente, debruçado na sua campa:

«Quand je mourrai, mas amis,
Plantez moi un saule au cemitière».

Petrarca, numa hora de preito e de saudade, plantou na sepultura de Virgílio, o doce épico latino, um loureiro simbólico e verdejante.
                                                                        * **
As árvores – essa glória da floresta – como as define o delicado autor da Via -Láctea, são sempre divinas, sempre amorosas, sempre sublimes…nas orlas dos parques, nos flancos das montanhas ou refrangindo-se nos arroios murmurantes.
As árvores têm arquitecturas delicadas e transcendentes. Parece que as suas viçosas frondes, onde as toutinegras derriçam, foram buriladas por artistas hábeis. Que airosidade nos meneios dos choupos, chamando-nos em acenos de carícia! Que altivez nas perfiladas silhuetas dos pinheiros, graves e bravios como uma lição heróica! Que sentimental poesia nas desgrenhadas ramarias dos salgueiros, verdes como lágrimas de ondinas!
As árvores são «criaturas de Deus» [Justino de Montalvão] e deveriam merecer-nos o mais enternecido amor neste ridente país de céu divino, de poentes esbatidos e de madrugadas rutilantes e virginais. É do adorável e dulcíssimo Michelet, este conceito sublime: «a árvore é semelhante à mulher: virgem em Abril, mãe no Estio, avozinha no Outono».
Ao contemplar as árvores, a alma lusa sente-se humilde, pois elas falam-lhe enternecidamente da grandeza do passado. O freixo, a árvore de Marte, era escolhido para construir as lanças de Ulisses, o prudente grego; de madeira se formaram as carcaças das altaneiras caravelas dos feitos gloriosos de Gil Eanes, Pêro de Alenquer, Bartolomeu Dias, Vasco da Gama e Fernão de Magalhães.
As árvores acham-se povoadas de harmonias – música dos ninhos, murmúrio da folhagem, ramalhar das frondes – e têm contribuído, desde épocas remotas, para as longas hora de prazer espiritual que nos deleitam. Atribui-se a descoberta dos instrumentos músicos de sopro, ao sibilar do vento nos colmos perfurados dos densos canaviais que escoltam as margens do Nilo. As flautas primitivas eram de lódão, buxo ou formadas de traços de cana. Stradivarius escolheu uma variedade de abeto – abies pectinacta – para construir os seus feiticeiros e gemedores violinos, em que adquirem supremo enternecimento as suavíssimas composições de Beethoven e os inspirados trechos melódicos de Schubert.
Foi a árvore que, no final do século dezasseis, suscitou ao insigne sábio inglês Newton, a descoberta imutável das leis da atracção universal, a que o poeta alude nestes versos singelos e conceituosos:

«Nos livros há muita asneira,
Nos campos muita razão:
Caiu duma laranjeira
A lei da gravitação».

                                                                   * * *

Tudo se deve às árvores, a essas «verdes amigas» [Afonso Lopes de Oliveira]: a sombra discreta e consoladora, os frutos saborosos, o rústico arado romano, a grade, o carro que passa gemendo ao peso da carrada, o jugo, o poceiro das alegres vindimas, a nora gemedora…enfim, todo esse tema infindável da literatura bucólica e da pintura dos costumes.
Guerra Junqueiro, no seu livro Os Simples, exalta com razão um castanheiro venerando, nestes deliciosos versos, em que o bucolismo virgiliano transparece:

«Como não sentir um entranhado afecto,
Como não amá-lo com veneração,
Se lhe dera a trave que sustenta o tecto,
Se lhe dera o berço onde repousa o neto,
Se lhe dera a tulha onde arrecada o pão!

Fez com ele o jugo e fez com ele o arado;
Fez com ele as portas contra os vendavais;
E com ele é feito o velho leito amado,
Onde se deitara para o seu noivado,
E onde já morreram nos seus avós, seus pais!»

Abençoado povo nipónico que, quando as cerejeiras se toucam de flores, num dia de sol radioso, alvoraçado de alegria, identificado com a Natureza, presta a sua adoração enternecida à árvore. 

                                    

A flora dendrológica fornece-nos, além de preciosas madeiras para marcenaria, construções navais e civis, tanoaria, obras hidráulicas, máquinas, alfaias agrícolas, minas, postes telegráficos e travessas de caminhos de ferro, inúmeros produtos indispensáveis à indústria, tais como: gomas, resinas, essências, fibras, óleos, matérias gordas, borracha, pez, breu, essência de terebentina, negro de fumo, benzina, alcatrão, colofónia, creosote, matérias corantes, etc., etc. As árvore ornamentais e as árvores apícolas têm elevado merecimento, assim como as apropriadas para carvão, ou fornecedores de boa lenha para combustível.
Do sobreiro extrai-se a cortiça, um dos mais preciosos produtos florestais e que tem aplicações múltiplas; o salgueiro branco utiliza-se, nas imediações da romântica cidade do Mondego, na confecção de palitos; o vidoeiro é empregado na indústria de carrinhos de algodão; o zimbro e o cedro no fabrico de lápis; o amieiro em palmilhas de tamancos. As azinhas ou glandes da azinheira, cevam no Alentejo, Estremadura e Algarve muitas varas de porcos; o tecido fibroso que constitui o envoltório do coco – conhecido no comércio com o nome de cairo – é aplicado no fabrico de cordas e de estofos resistentes e os ramos delgados e flexíveis dos vimeiros empregam-se como vincilhos para arcos de vasilhas e fabrico de taipais, cestos, etc.
A pasta de madeira, formada das celuloses do choupo, pinheiro e salgueiro, é desde 1867 a principal matéria-prima do papel em todo o mundo. Da casca do eucalipto, que é fibrosa, fabricam-se cartões e papel comum e a entrecasca da broussonetia papyrifera é aproveitada no Japão e China para o fabrico de papel e tecidos e em Taiti na confecção de chapéus característicos.
As cascas e entrecascas taninosas do castanheiro, vidoeiro, carvalho, sobreiro, salgueiro, eucalipto, azinheira e de muitíssimas outras plantas, servem para curtimenta de peles.
Dos ramos e raízes da canforeira extrai-se, por destilação, a cânfora, empregada em medicina humana e veterinária; a casca da quina tem propriedades febrífugas e grande número de plantas lenhosas são utilizadas em farmacopeia: as coníferas, a tília, o freixo, o ailanto, o choupo, etc. 


A folhagem de algumas árvores é empregada como forragem e a serradura para embalagem de frutos ou, pelo seu grande poder absorvente, para camas de animais.
As árvores têm ainda benéfico efeito sobre o clima, melhorando-o consideravelmente e sobre os cursos de água, regularizando-lhes as directrizes; algumas, como o eucalipto, são saneadoras dos pântanos; o pinheiro bravo fixa as areias movediças, convertendo as dunas em terrenos cultiváveis.
Mas não cessam aqui as preciosidades fornecidas pela flora lenhosa; inclusivamente a lã, o leite e o marfim, são-nos prodigamente cedidos pelas árvores, derivando esta nomenclatura singular, da analogia desses três produtos com o marfim, o leite e a lã propriamente ditos. Assim, as folhas das variedades de pinus australis e sylvestris e de muitas outras coníferas, são utilizadas na cidade de Breslau, na Silésia, depois de fervidas num soluto de carbonato de soda, para o preparo da lã vegetal ou lã de floresta. A solução dissolve os principais resiníferos que impregnam as nervuras filiformes das folhas, permitindo que estas se separem. A substância filamentosa assim obtida, cardada e expurgada de impurezas serve para encher colchões, almofadas, travesseiro e sofás; fiada e tecida, fornece uma espécie de linho cru, muito resistente e higiénico, que se presta admiravelmente para confeccionar diversos tecidos coletes. A água resultante do preparo desta lã vegetal é utilizada pelos habitantes de Breslau contra certas afecções epidémicas e da substância membranosa obtida por filtração, servem-se como combustível, produzindo uma qualidade de gás, que é aproveitado para iluminação caseira.
Os galactodendruns ou árvores vacas, plantas lenhosas de grande porte, que vegetam em copioso número nas florestas do norte da América, dão, por incisão do seu tronco, um latex com sabor e as propriedades nutritivas do leite de vaca, que os habitantes de Caracas utilizam como bebida alimentar e a que propriamente chamam leite vegetal. Esta substância coagulada produz uma espécie de queijo de sabor delicado e uma cera que pode utilizar-se no fabrico de velas.
Uma espécie de palmeira que se desenvolve no Japão e na América do Sul, cientificamente conhecida pelo nome de Phytelephas macrocarpa, produz umas sementes esféricas e volumosas, contendo um perisperma de cor branca e contextura óssea, conhecido pelo nome de marfim vegetal e que, devidamente esculpido, serve para o fabrico de botões, castões de bengalas, broches e bijutarias variadíssimas. Estas sementes – corozo – são susceptíveis de um delicado brunido e recebem com facilidade colorações várias. O suco do fruto dá origem a um licor leitoso, agradável, que pode sujeitar-se à fermentação alcoólica. As sementes pulverizadas e adicionadas à cera, produzem uma substância alva, de extraordinária rijeza, que arde com luz intensa.

                                                                    * * *

O  Dia da Árvore, festa enternecedora, cheia de singeleza e de suavidade, vai-se popularizando nesta bem-amada terra lusitana, cada vez mais considerada no convívio das nações progressivas. Sobre este tema solene – A árvore - soarão por este país fora, alocuções de uma sublimidade grandiosa. Acedendo gostosamente ao amável convite que me foi feito, não quero deixar de também concorrer, com esta palestra frívola e pueril, para a apoteose das árvores, dessas alminhas vegetais, no frasear elegante de Teixeira de Pascoaes o inspirado autor do Sempre.

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 Há entre estes rosados pequerruchos de cabelos anelados que me escutam e estas graciosas arvorezinhas que aguardam, frementes de desejo, o seio ubérrimo da terra, uma dualidade fecunda, uma suave harmonia, um certo alvorecer de esperanças, que enternece e deslumbra.
Os antigos romanos adoptavam a legenda que nesta hora tem uma oportunidade flagrante: "até mesmo brincando se pode ser útil".
Ide, pois, oh santa pequenada, numa romagem garrida e feliz, chalrando de prazer, palpitando de afecto, entoando cânticos de amor, plantar as árvores verdejantes, sob o prazer antegozado de lhes mordiscar, numa ânsia insofrida, os frutos sedutores.»

Imagens: As três iniciais são do livro de Guilherme Felgueiras; a quarta, Orpheus, é de Jean Breugel, o ancião; a quinta é do livro Paradiso, de Dante, na bela versão de Giuseppi Campi; o sexto é do livro de Guilherme Felgueiras; a sétima é uma imagem (íntima...) da famosa propriedade de Tolstoi, a Isnaia Poliana, onde o Jaime de Magalhães de Lima foi encontrar-se com Tolstoi e falar-lhe de Antero de Quental (como conto algures no blogue); a oitava é um postal japonês de 1900, de sakura, o florescer das cerejeiras, em Yokohama, da Biblioteca de Estudos Espirituais; a nona é uma pintura do mestre alemão Bô Yin Râ, e a décima é a vinheta final do livrinho de 18 páginas.

terça-feira, 20 de abril de 2021

Poemas da Luz anímica e do Amor perene. Do I ao VII dum ciclo de XXII, escritos há já uns anos.

 Estes poemas foram escritos em Setembro e Outubro de 2005 após ter visitado no Porto a Dalila Pereira da Costa e ter estado com ela, o Fernando Echevarria e a Maria João Reynaud, que me ofereceu então o seu livro Luz de Intimidade, Edições Afrontamento, onde fui escrevendo os poemas ora em diálogo com os dela ora em folhas de título ou de breve citação. Há dias arrumando os livros de poesia, e os que me foram oferecidos ao longo dos tempos, subitamente abriu-se a Luz de Intimidade e a minha letra sobrenadou. Escritos não para alguém particular, mas pelo Amor...

                                                         

                                                 I -  ALBA

Brilham as estrelas no céu,

Palpitam sorridentes a chamar-nos.

Quantos abrimos o cimo da cabeça

às vibrações e bênçãos delas?

 

Começar o dia com as estrelas

saudá-las ao longe, das janelas.

Ou caminhar sob elas,

recebendo seus eflúvios

na noite imensa que se despede.

 

Assim entrei a manhã

E chamei-te à distância:

- Meu Amor, onde estás tu

Porque esta distância entre nós?

 

Dizes-me que os nossos passos

nos encaminham um para o outro,

Seja de noite ou de dia,

Hoje, amanhã ou sempre.

 

Descanso, calmo,

Sei que nos encontraremos

E estreitaremos as almas 

Na Unidade do Espírito.

 

 II 

  Trevas e torpores,

pântanos e remoinhos,

tudo isso atravessamos

com os remos forçando.

 

Batalha de barcas,

de viagens e travessias.

Quando se encontrarão por fim 

as nossas almas de luz? 


Cruzarei as distâncias todas,

Não deixarei o altar esfriar.

Nele sacrificarei o meu ego

Aos teus adorados pés.


Teceremos arquitecturas

de palavras, significados e valores,

vivendo e transmitindo

a sabedoria imensa que nos anima.


Haverá alegria

 Na barca da nossa alma.

O lampião dará luz,

Os peixes virão à tona.

III

    Nestes nossos estios quentes

não sei que admirar mais:

se a cor vermelha das folhas

se a pujança perene das árvores,

se o amor humano

que não se deixa cair

nem com as estações e idades

e sempre renasce novo

manifestando a perenidade do Amor.


IV

Lá no longe,

marcando o encontro

do céu e da terra,

Aqui em mim,

nos olhos semicerrados

entre a luz e a obscuridade,

assim vou talhando o olho espiritual,

assim vou abrindo o coração,

até  abranger o Oceano,

 Sanmudra de Om namo Narayana

e passar ao horizonte longínquo

e contemplar admirado Narayana.

V

Atravessas o céu da minha alma

como uma aparição de Deus

deixando sulcos de amor

que ainda agora reverberam

 

Como o voo rápido duma gaivota

fendendo os ares abruptamente,

aceito que também a passagem

seja um relâmpago na noite,

um clarão na madrugada.

 

Virei pé ante pé

bater à janela da tua alma

ciciar teu nome

às tuas pálpebras e orelhas.

Segredar-te mistérios

aos teus cabelos escorridos,

acariciar teus lábios

e dedos finos.

 Depois, no céu,

reinarei coroado por ti

da mirta dos poetas,

da amrita dos místicos,

Pois o nosso Deus nascerá em nós. 

VI

Vezes sem conta

meditámos no santuário

invocando as bênçãos divinas

e o regresso da Luz.


Cores fulgurantes e luminosas,

sentimentos puros e exaltantes,

assim vou tecendo

a teia dos meus dias.

Mas quando tu chegaste

arrancaste-me da solidão

e abriste tal corrente no meu peito

que de noite ou de dia

meu coração sangra por ti.


Esculpo a aura e alma nossa

traço sinais e desígnios,

sinto-te mais desperta e luminosa.

 Seremos justos, corajosos e ardentes

na irradiação da harmonia e da felicidade,

na transmissão dos estados de consciência

que curam, iluminam e salvam.

 VII

Trarei aos teus pés

léguas de antiguidade,

depositarei no teu regaço

braçadas de flores milenares.

Voaremos juntos como gaivotas

rasando as ondas brancas e altaneiras,

daremos as mãos à borda d'água

e escreveremos os poemas da Eternidade...

domingo, 18 de abril de 2021

Antero de Quental: evocação no dia do seu aniversário, em 2021. Com vídeo de 6:00.

Embora nascendo hoje 18 de Abril, mas de 1842, em Ponta Delgada, S. Miguel, Açores, há portanto 179 anos, Antero de Quental continua a viver não só enquanto espírito imortal mas sobretudo por muitas das suas gestações poéticas, literárias, polémicas, políticas e metafísicas transcenderem as limitações e condicionalismos temporais de escolas, modas ou historicismos, pelas suas qualidades.

Em verdade, Antero de Quental, ainda que confrontando situações históricas por vezes bem desafiante ou difíceis, conseguiu quase sempre  abordá-las, contextualizá-las e clarificá-las na suas dimensões mais justas, profundas ou íntimas, e mais abrangentes e universais, ganhando jus com isso a um estatuto de perenidade, o de  poder transmitir e impulsionar energias de demanda sincera da verdade, da justiça, do conhecimento, do amor nos que o lerem, ainda que certamente ele próprio estivesse sujeito às ondulações do seu corpo e personalidade, tão sensíveis e em certos aspectos frágeis, tal como a sua vasta e maravilhosa correspondência testemunha em tantas modulações e com tantos amigos...

Se as Primaveras Românticas nos mostram o jovem pleno de amor, se as Odes Modernas nos apresentam o ardente defensor da justiça, da educação, de um socialismo íntegro e espiritual, da revolução e emancipação dos povos e seres, serão os Sonetos que o imortalizarão mais, embora neles tenha pagado muito tributo às escolas pessimistas e niilistas que na época dominavam a Europa após as desilusões dos sonhos do romantismo. Saber discernir os sonetos que nos dizem mais, os que nos fazem mais bem e de quando em quando relê-los, meditá-los ou decorá-los é uma tarefa valiosa e útil.

Na sua obra  em prosa abundam muitos textos valiosos, seja circunstanciais (mas sempre teorizando e contextualizando), seja já de teorização literária, política, sociológica, religiosa ou filosófica, como é o caso do seu último trabalho de vulto e testamento, as Tendências gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX. É porem na sua vasta correspondência,  compilada beneditinamente por Ana Maria Almeida Martins, e editada pela Imprensa Nacional Casa da Moeda, que podemos auscultar melhor e comungar a grande simplicidade e amor,  a grande cultura e sabedoria, a grande aspiração de justiça que corria nessa geração de seres que abriam Portugal às correntes modernas europeias e que sonhavam e lutavam com grande esperança pelas modificações e reformas que Portugal tanto necessitava ,mas que em grande parte continuam por se fazer, nomeadamente as das consciências, da Justiça e dos partidos, que tanto atraiçoam o Bem comum, donde a sua grande actualidade...

Trabalhando numa biografia cronológica de Antero de Quental, e muito baseada nos seus escritos, resolvi hoje seu dia de anos fazer um pequena gravação para o homenagear, que foi de certo modo interrompida por alguém que chegava, mas está apresentável e segue no fim. Para substancializar mais este texto transcreverei  brevemente algumas ideias forças ainda pouco conhecidas ou que não estão na net e que retiro da biografia em curso, convidando-vos a lê-las e a meditá-las, pois poderão dar frutos de harmonia social e de despertar ou inspirar espiritual: 

Do Manifesto dos Estudantes da Universidade de Coimbra à Opinião Ilustrada do País, 8-12-1861.
«Que querem os Estudantes da Universidade? Que se indague tudo da ciência, que é património de todos, e nada da vida particular, que é asilo individual e inviolável; que por detrás da cadeira do ensino se não lobrigue o olho do esbirro; que se faça progredir a ciência, e se deixe a moral desenvolver-se por si.

 No final de 1863 carta a Mariano Machado de Faria e Maia:  «Mariano, que fazes? (...). Pois deixá-los. Tu não precisas deles para seres belo e para que todos te amemos: tens dentro aquela luz cujo reflexo exterior se chama bondade e inteligência. Eu por mim, sei que o céu é suficientemente grande para que as cruéis abas das sobrecasacas negras desses burgueses mo possam tapar e encobrir tudo - e fio que a copa do chapéu-de-pelo deles, por mais alto que seja não chega precisamente a tocar nos astros... por mim sempre tenho sol que me aqueça de dia, e à noite estrelas para contar - como as crianças e os profetas. Mas tu que fazes? Disse-me aqui o João que trabalhavas muito. O trabalho é santo, porque é o modo de amar da inteligência. Não sei ainda se é para isso que nos deixaram cair lá de cima sobre este planeta ridículo...»

Para rirmos um pouco,  acerca das prelecções à Faculdade de Direito que estavam a decorrer, escrevia no nº 76 d' O Jornal do Século XIX, de Penafiel, em 1865: «De maneira que o meu depoimento sobre prelecções é todo de ouvido. Transcrevo pois as próprias palavras de um meu amigo, muito competente nestas matérias. As prelecções, meu amigo, disse ele, «tem-nas havido melhores e muita gente é capaz de as fazer pior».

Publicadas as revolucionárias Odes Modernas, em 1865, numa carta para João de Deus, Antero tenta diminuir o quase certo desagrado do poeta algarvio quanto ao livro e transmite-lhe a sua visão de espiritualidade universal que o caracterizou bastante:«Meu João, Sei que te não podem agradar as ideias por que este livro conclui. Ofereço-te todavia sem receio, porque tenho fé que não podes senão aprovar os sentimentos que o inspiram e são como o ponto de partida, a base moral das conclusões da inteligência. É uma voz sincera que pede justiça e verdade; vista assim a obra é aceitável para todos os crentes de todas as religiões, contanto que sejam religiões espirituais. O resto, a maneira por que entendo que a verdade e a justiça se devem realizar, isso, se for falso, é um erro de lógica, não de vontade. Antero».

 Em Abril de 1865, sob o título O Sentimento da Imortalidade, que foi uma carta a Anselmo de Andrade, defende a imortalidade espiritual com bastante sensibilidade, força e intuição onde brilham algumas ideias perenes, tais como: «O que é belo não o é só porque alegra o olhar e fala aos sentidos a linguagem da perfeição. É-o, sobre tudo, porque o coração lhe sente a verdade eterna que o anima».

Fiquemo-nos no coração e em comunhão com Antero de Quental e os nossos antepassados, guias, mestres e anjos e na invocação e adoração íntima da Divindade, a fonte verdadeira do Amor e que por tantos modos se reflecte e nos anima...

                     

sábado, 17 de abril de 2021

Poesia de alecrim, medicinal e do caminho...


Ramos de alecrim, vindos da Beira, da típica vila de Monsanto (oferecidos por um Jorge e Mariana), que resolveram elevar-se por entre livros e folhas, e assumirem suas dimensões subtis vivas e inspirarem-me a dois pequenos poemas, quais exercícios  de os retratar por imagens e palavras sentidas e vividas, num diálogo da alma no Caminho e no Mundo...


Sílfide que chegas,
voando de braços abertos
em dança misteriosa,
que apelo da Terra transmites
aos que te vêem e intuem
na alma em demanda,
num mundo tão dilacerado,
insanavelmente conflituoso?
 
- Ouve-me na voz do teu espírito,
pois só esse te pode valer
para seres o que deves ser: 
Sê em Amor e Justiça! 
 

 
 
Ergue-te da terra
Abre teus braços e peito,
Humilha-te no silêncio
E em seres só tu.

Do tronco partem os ramos e folhas
Da alma saem desejos e pensamentos
Mas do Espírito sai apenas Luz,
Ò Alma, abre-te mais à Luz!

sábado, 10 de abril de 2021

Antero de Quental visto por Fernando Leal: uma compreensão fraterna, um Amor que observa e vence a morte.

Antero de Quental, em 1887, em Ponta Delgada, na fotografia que ele mais gostava e que foi reproduzida no seu In Memoriam, em 1896

A notícia da inesperada partida de Antero de Quental, em 11 de Setembro de 1891, do corpo e da Terra, na terra natal  açoriana, provocou espanto e sofrimento, constrangimento e tristeza funda nos seus amigos, que cedo testemunharam por cartas, artigos de jornais e publicações as suas elegias anímicas em preito  à grande alma que assim subitamente a nau terrena abandonara. Vamos abordar deles apenas Joaquim de Araújo (1858-1911), um dos grandes amigos de Antero, pese a diferença de idade -13- entre os dois, que publica nas semanas a seguir um poema, Na Morte de Antero, belíssimo, o qual se desenvolve sob a epígrafe grega Morrer é ser iniciado, e que já cingimos neste blogue. Vamos ver agora como Fernando Leal (1846-1910), de família natural de Caminha mas já nascido em Margão, e que se notabilizou no Ultramar e na Índia portuguesa, explorador de terras e rotas africanas, militar, escritor, tradutor poeta e também grande amigo de Antero,  insere  entristecido a sua súbita morte, num acrescento a uma obra que estava a publicar e na qual apresentava Antero de Quental e alguns poemas ao público francês, fazendo-o   com uma força extraordinária, realçando-a eu com um sublinhado.  Traduzimos então tal excerto do livro escrito em francês, intitulado Corymbe exotique, dado à luz em Lisboa, na Typographie Franco-Portugais, em 1891.

                                  
«Pode-se ler neste pequeno livro, a através da minha pálida tradução francesa, três composições de nosso grande e lamentado poeta A. de Quental [Mors-Amor, Entre duas Sombras, Divina Comédia]. Este poeta fora de série é o autor das Odes Modernas e de um livro de Sonetos. Este último livro, que se diria sonhado sobre uma montanha ideal, é totalmente excepcional, pelo poder de visão psíquica, pela perfeição serena, austera, sóbria, da ideia e da forma, pela resignação e pela sinceridade, pela emoção dolorosa, pela inefável beleza e pela bondade suprema de que está impregnado. No meu desespero de condensar em algumas linhas (o que eu não conseguiria mesmo fazer em algumas páginas), a poesia e a filosofia deste livro complexo, que reflecte diversas fases do coração e do espírito do poeta, eu confessarei as impressões predominantes em mim próprio, dizendo que o poeta se revela frequentemente como um Job, sentado não sobre o seu estrume, mas sobre uma nuvem, e por vezes mesmo como um Budha, arrepiando e fazendo-nos arrepiar sob o sopro desesperante do nosso fim do século...
Antero de Quental acaba de se matar na ilha de S. Miguel, capital dos Açores, onde ele nascera. Pediu a duas balas do revólver o repouso [nos gnósticos dos 1ºs séculos o Cristianismo, o repouso significa a iluminação, a libertação, e algo disso ficou na oração: Repousa em paz] que o seu espírito superior procurava em vão aqui em baixo.
Esteve errado em desembaraçar-se voluntariamente do seu revestimento material?
O egoísmo da minha amizade responde afirmativamente; ele, terá
talvez razão; em todo o caso a sua morte, sendo um pouco o corolário lógico da sua filosofia, provou a sinceridade nobre da sua vida».
                                                
Eis-nos com Fernando Leal
(em cima, em Velha Goa, numa rara e desconhecida fotografia), um grande amigo  de Antero de Quental, a exprimir os sentimentos causados pela morte do mestre, primeiro elogiando as suas altas qualidades poéticas, filosóficas e morais, segundo admitindo que Antero, não conseguindo encontrar a paz ou a realização, ou repouso, como diz, avançou para a morte destemidamente, porque tal foi quase a conclusão de uma vida em que ela foi não temida mas sim cantada, desejada e amada. Como se Antero de Quental com tal acto tivesse aposto à sua vida e obra o selo de mártir, como se tal preparação tivesse chegado ao amadurecimento.
Como não pensarmos nos dias de hoje no recente mártir iraniano general Qasem Soleimani, vencedor de muito do terrorismo do Médio Oriente, e que há muitos anos desejava ser mártir, shahid, um grande valor na tradição Shia ou Xiita, por causa dos seus doze Imams martirizados, e que sucumbiu aos assassinos dos USA, Arábia Saudita e Israel que cobardemente o mataram?
O Imam Ali a receber Qasem Soleimani quando este morre. E Antero, teve acolhimento ou amparo?  
Ao menos Antero, embora se possa especular no que ele poderia ainda gerar na Terra, teria concluído em grande parte a sua missão, e com o corpo e sistema nervoso incapazes de lhe assegurarem a base de trabalho necessária à sua natureza filosófica e espiritual, preferiu partir voluntariamente, provando assim de facto e in loco que fora sincero nos seus elogios da morte libertadora e que portanto não a temia, vendo nela o meio ou porta para um estado melhor, de repouso dos nervos e da mente. 
Qual foi o estado e plano psíquico subtil em que entrou será sempre um mistério, e os poemas escritos ou recebidos pelo polícia espírita ou médium Fernando de Lacerda, e inseridos no Do País da Luz, em 1919, só nos fazem alvitrar sorrindo que Antero teria perdido no além o seu génio poético, o que o bom senso, aplicado à misteriosa vida no além, rejeita. Mas que Antero se adentrou, lentamente talvez, na via da consciencialização da imortalidade da alma espiritual, e que poderemos rezar por ele, ou então simplesmente dialogarmos com ele ao lê-lo e meditá-lo, não haverá dúvidas...
 

 Foi o seu espírito imortal (o atman indiano) ou eu superior que o impeliu a matar-se, como parece deduzir-se do que diz Fernando Leal, ou estaria antes o seu espírito superior  algo frustrado da menor ligação consciente a ele por parte de Antero, e fora assim portanto antes a personalidade impulsiva deste que resolveu cortar o chamado "fio de prata", que liga o corpo espiritual ao corpo físico, e partir antes do seu tempo natural de morte?
Fernando Leal, quando diz que a sua morte foi um pouco o corolário
da sua filosofia, dá a entender que o corolário da sua filosofia poderia ser outro e não o suicídio e que portanto a sua vasta visão filosófica do universo foi afectada por uns poucos aspectos do seu percurso e realização, que diminuíram Antero na sua plenitude espiritual e amorosa e o levaram a encarar a morte voluntária como sendo acertada para o seu desejo de repouso, que os seus nervos fragilizados e desiludidos ansiavam.

Anos mais tarde Fernando Leal, no seu Livro da Fé, Nova Goa, 1906, no apêndice final em que transcreve algumas cartas de amigos, nomeadamente as maravilhosas que Antero lhe dirigira (algumas já abordadas neste blogue), escritas desde 1880,  exclama assim entusiasmado: «Vejam as cartas de Antero de Quental. Como nelas se revela a bondade nativa da sua alma! A sua ternura, o seu interesse quase maternal pelos seus amigos! E assim se completa essa grande e imperecível figura, primor e glória da nossa raça, ao qual Eça de Queiroz chamava Santo Antero, completa-se o homem das Odes Modernas e dos Sonetos pelo seu lado humano e enternecido».

Saibamos pois cultivar e ser fiéis aos entusiasmos que seres, questões, causas e demandas em nós possam suscitar, arder, saibamos manter o lado humano do amor e da solidariedade e não deixemos que tantas amizades ou vidas se desvaneçam como folhas ao vento outonal. Perseveremos no Amor!

 «Cavalga a fera estranha sem temor:
E o corcel negro diz: "Eu sou a Morte!"
Responde o cavaleiro: "Eu sou o Amor!"» 

terça-feira, 6 de abril de 2021

A nota final das "Odes Modernas" de Antero de Quental. "A vida é a consciência e o espírito". Transcrição e comentário.

 Nas Odes Modernas, dadas à luz na 1ª edição em 1865, já no fim do livro, após a dedicatória inicial a Germano Meireles e os vários poemas, insere Antero de Quental uma Nota extensa de dez páginas que não se encontra transcrita na net completamente e correctamente, pelo que resolvemos transcrevê-la e partilhá-la, a partir da edição original, de 1865, num exemplar dedicado até por Antero do Quental ao publicista, maçon, dramaturgo de muito sucesso (Camilo considerou-o dos modernos, o 2º a seguir a Almeida Garret) e depois deputado, ministro e diplomata, José da Silva Mendes Leal. Anote-se que na 2ª edição das Odes Modernas, de 1875, por decisão de a tornar menos fortemente revolucionária e quem sabe se por influência de Oliveira Martins, tanto a dedicatória a Germano Meireles como a Nota que vamos ler desapareceram...

A Nota  (e sublinhamos partes importantes) contextualiza e apresenta ética, filosófica ou doutrinariamente, com leves pós de ironia, o que Antero sente em si e a circular como veio e atmosfera dos poemas e da época, isto é, um desejo e aspiração grande de vencer as injustiças e erros,  as crenças e sistemas em ruínas do passado, em especial da Igreja e dos governos conservadores , em prol de uma nova Era de que apenas se pressentem e intuem os contornos libertadores trazidos pelo progresso, ciência,  livre pensamento, exame e opinião, amor livre, "consciência e espírito".

O último poema das Odes Modernas, dedicado a Alexandre Herculano, que fora um dos seus mestres política, ética e poeticamente em jovem, explica bem a  admiração e gratidão por todos e tudo que houve de bom, mas que agora, decaído, corrupto e retalhado, já não serve as aspirações de modos de vida e crenças mais justas e racionais, que se terão de reflectir forçosamente numa poesia de verdade, revolucionária, heterodoxa, internacionalista, socializante e libertadora, mas simultaneamente inspirada, sagrada, já que cita até os Vedas indianos. Poesia exigente, que vença as contradições e conflitos internos, e que seja bela mas sincera, justa, verdadeira, livre e amorosa, baseada ou tendendo à consciência e ao espírito. Oiçamos Antero:

NOTA

«Este livro é uma tentativa, em muitos pontos imperfeita, seguramente, mas sempre sincera, para dar à poesia contemporânea a cor moral, a feição espiritual da sociedade moderna, fazendo-a assim corresponder à alta missão que foi sempre a da Poesia em todos os tempos, no Rig-Veda ou nos Lusíadas, em Tirteu [poeta espartano] como em Rouget de L’Isle [o autor da Marselhesa] – isto é, a forma mais pura daquelas partes soberanas da alma colectiva de uma época, a crença e a aspiração. – Partindo desse princípio – a Poesia é a confissão sincera do pensamento mais íntimo de uma idade – o autor, na rectidão imparcial da sua lógica, havia de necessariamente concluir que esta outra afirmação – a Poesia moderna é a voz da Revolução – porque a Revolução é o nome que o sacerdote da história, o tempo, deixou cair sobre a fonte fatídica do nosso século. Como do seu Deus dizia o apóstolo antigo, in eo vivimus et sumus, podemos nós com mais razão ainda afirmar do grande espírito de revolta da nossa idade – nele e por ele é que somos, por ele e nele é que vivemos. – O ar que a nossa sociedade respira, a atmosfera turva e agitada, mas vivificante, em que vai penetrando dia a dia, não é já composta, não, de boas e pacíficas crenças velhas, de resignação, de obediência, de fé sublime... e cega. Outro é o ar! Abrem-se os olhos para ler as contradições dos santos, dos venerandos, dos excelentes livros antigos. Estendem-se as mãos para palpar, sob os vestidos de brocado dos bons ídolos doutrora, o pau de que eram feitos... e o ferro também muitas vezes. A quem há dois séculos fizesse, a metade que fosse, disto tudo, enforcavam-no sete vezes os Reis, como a réu de lesa-majestade, e os Padres, como a ímpio e sacrílego, queimavam-no sete vezes setenta vezes. Nós hoje fazemos tudo isto, e preparamos nossos filhos para poderem fazer o dobro ou o triplo dentro de alguns anos – e temos a modesta humildade de recusar o nome de revolucionários! e não queremos que nos chamem revolucionários!

Isto é pasmoso – e pasmosamente curioso! Os nossos Ministros de Estado fazem e dizem coisas por que ainda há cinquenta anos seriam generosamente premiados com as masmorras ou a forca. Os nossos Professores ensinam à mocidade as mais audaciosas máximas de livre-exame e independência, o que lhes valeria no século passado uma boa e bem ateada fogueira, convenientemente adornada de cruzes, imagens e outros símbolos de tolerância clerical. Os nossos Jornalistas, esses espantariam Danton e Desmoulins, se Desmoulins e Danton pudessem gozar a inestimável vantagem de ouvir estes mancebos dissertando sobre os direitos da palavra e a omnipotência da opinião... O Estado, a Igreja, o Ensino, a Família, a Arte, a Prosperidade, tudo isto exala hoje um fortum sulfuroso e infernal de heresia e revolução que sufoca – mas tudo isto cora virginalmente de pejo, geme e se aflige com a injustiça, se o não comparam pelo menos com os tempos seráficos de Gregório VII e de Carlos Magno!

Que provam todas estas contradições, esta hipocrisia do tempo, este maquiavelismo inconsciente da nossa sociedade, senão o triunfo da Revolução que domina, penetra, arrasta os seus próprios inimigos e até lhes fornece as mesmas armas com que cuidam feri-la de morte nos seus combates grotescos de pigmeus? 

Prova uma outra coisa ainda, e mais grave, e tristíssima, porque envolve uma ruína moral. É a desorganização, o esfacelamento espiritual de uma classe que foi grande e viva enquanto soube conservar dentro de si a fé e o calor das ideias revolucionárias e que, em menos de cinquenta anos, jaz caída por toda a parte, vacilando à mercê de todos os ventos; e, aí mesmo onde ainda triunfa, perdeu a coragem, a inteligência, a consciência do tempo, de si e da situação actual da sociedade. Descreu das ideias que a fizeram grande e forte; atraiçoou a causa por que fora heróica e nobre: e para logo o espírito da vida a abandonou e a onda santa, retirando-se, lhe deixou nua a sua praia. Ei-la aí está agora, sem abrigo entre as tormentas do passado e as do futuro, sem coragem em face dos inimigos que surgem de cada lado, e – o que é pior – sem inteligência, sem dignidade, ignorante e corrupta. Não há já mão que a possa salvar. O seu nome é contradição. Contradição de origens e de tendências. Contradição de desejos e de condições. Contradição de palavras e de obras. Crê-se revolucionária, é-o pela vontade, mas, sem o querer, estorcendo-se a cada passo, as suas acções são revolucionárias! Com os olhos no passado, caminhando como quem recua, é ela todavia quem abre as estradas por onde a sociedade, que em vão tenta suster, se há-de precipitar para o mundo desconhecido do futuro. A sua cobardia actual, a sua ambição egoísta, a sua corrupta avareza, para tudo dizer, fazem dela uma coisa fatalmente em oposição com as suas origens, com a situação que ela mesmo criou, com as grandes tradições, enfim de um passado de ontem e que já hoje a aflige como um remorso. Metade do corpo quer ir, forceja, precipita-se; mas a outra metade, como sob a influência de um sortilégio mortal, recusa-se ao menor movimento. São as forças contraditórias, desencadeadas pela doença final, que se combatem já sobre esse miserável corpo votado à morte! Daí a cegueira, a banalidade, o medo, a dilaceração interior que caracterizam hoje a classe média – a sua condenação.

Quos Deus perdere vult prius dementat. [Quem Deus quer (ou tem) que perder, primeiro torna-o demente.]

Que os meus quase patrícios de Portugal se não aterrem! Todas essas coisas anárquicas estão a cinquenta e a cem léguas das nossas terras patriarcais e a mil ou duas mil das nossas não menos patriarcais inteligências. Sobre outros tectos, sobre outras searas pairam as nuvens minacíssimas da próxima tormenta! A terra emudece, o ar solta suspiros misteriosos com o pressentimento da tempestade que se avizinha! Mas sob os nossos tectos reina o contentamento dos simples; e, se as nossas searas nos não recusam o pão quotidiano dos crentes, que nos fazem a nós revoluções, democracias, progresso e leis da história? O progresso e a história são alguma coisa de turvo de vertiginoso de incompreensível. Para vivermos livres dos solavancos horríveis do torvelinho social resolvemos nós o problema de um modo todo nosso e a que, ao menos, se não negará originalidade – viver fora da história e do progresso. Era para nós que, há já trezentos anos, Sancho Pança inventava os seus provérbios.  .............

Entretanto o tempo segue impassível o seu caminho e arrasta-nos a todos com as nossas ilusões ou as nossas evidências, com as esperanças, as conjecturas e os desejos, que são bóias com que nos seguramos sobre o mar fundo e escuro que nos levanta e vai arrebatando. Lá se verá então, no termo fatal dessa onda misteriosa,  lá se verá de que banda estavam a razão, a franqueza e a coragem, e de que banda a ignorância, a má-fé e a cobardia. Lá se erguerá uma grande voz, dura e amarga para certos ouvidos, chamando a todos, cada um pelo seu nome, para as recompensas e para as punições...

Todavia a velha sociedade desconjunta-se e, pelas fendas da jangada rota, já se vê claramente a cor de onda que a mina por de baixo e a gasta como um corrosivo violento. Essa cor é negra – mas não é cor de morte. É cor de vida, pelo contrário. De vida para quem, pelo coração, sabe apreciar o valor desta palavra Liberdade; para quem mede pela altura de um desejo humano a grandeza da dívida de ventura que os homens têm direito de exigir ao mundo; para quem, enfim, não compreende amor de Deus e amor do Próximo imposto, escravo, fatal... como se o amor pudesse ser, em vez de espontaneidade e livre atracção, ódio e servidão. – Para os outros todos será cor de morte; mas não serão já mortos esses tais desde a hora primeira do nascimento?

Falemos dos vivos. Os vivos não são os que levantam ruidosamente o pó dessas estradas sob as rodas de seus carros opulentos. Não são também os que falam e se apresentam ante os olhos sensuais da turba envoltos nas dobras enganosas do manto de lantejoulas das frases vagas mas brilhantes com que se captam os sentidos de quem não tem razão nem sentimento. Não são ainda os sábios, profetizando do centro de suas nebulosas, lançando, em meio das nuvens de palavra, os oráculos de uma ciência sem fé e sem alma, vendida aos factos, à espera sempre dos acontecimentos, para se inspirar deles na composição artificial de sistemas, que o Mundo aceita porque o absolvem, mas que rejeita a Razão porque não são livres. Os vivos, enfim, não são os que mais o parecem; os ruidosos, os activos que já de longe se vêem e ouvem: como em tempo de epidemia não está a saúde no homem que anda, gesticula e corre, encobrindo sob a agitação febril o veneno do mal que em breve o fará cair extenuado. Tudo isso que por aí tumultua, freme e enche o ar de ruídos, obedece à excitação da febre precursora da morte. A vida não é o movimento desordenado: e nos gestos deles não há harmonia nem ordem. Tudo isso é o gozo e a matéria: mas a vida é a consciência e o espírito.

Espírito e consciência! eis aí o nome do futuro. Ao presente (chame-se ele embora Igreja ou Estado, Ensino ou Direito, Propriedade ou Indústria), ao presente cabem-lhe seguramente os epítetos de grande, ruidoso, importante e ainda talvez de seguro. Ah! Porque não havia ele também de merecer o nome de consciencioso e espiritual? Poupar-se-iam assim à história algumas e bem amargas tristezas que já lhe estão iminentes! Mas não podia ser. Não se serve bem a César e a Cristo ao mesmo tempo. Ao pobre, ao deserdado dos bens do mundo, que lhe deixaria então a Justiça eterna, se até os bens da alma pudessem ser feudo exclusivo de ingratos opressores? Se até a flor da verdade, chamada espírito, pudesse também servir para adornar a coroa usurpada de embusteiros e tiranos? Órfãos, abandonados no grande deserto social, ficou-lhes ao lado, só e invisível, mas eterna e irresistível, a Justiça de uma causa que há-de triunfar porque é a causa da razão e da verdade.

É nestes que reside a Consciência É nestes que habita o Espírito. Escuros sim e confusos (porque de propósito lhes fazem a noite em volta) mas lá estão no fundo, bem no fundo do coração dos oprimidos, esses brilhantes de inestimável preço, que o futuro há-de polir para a coroa imperial da rainha que se espera, a Liberdade dos povos! E se o povo parece ignorar, na sua miséria extrema, o tesouro que tem dentro; se descrê e – embrutecido Esaú – está a ponto de vender esse morgado de Deus pelo prato de lentilhas que ironicamente lhe oferece um irmão bárbaro e avarento – não se jubilem excessivamente com isso os Jacobs das cortes, das sacristias e dos parlamentos! O contrato odioso não se passa hoje, como outrora, em pleno deserto arábico, onde a única testemunha que podia intervir, Jeová, tinha o natural embaraço de ser cego e surdo. Hoje Jeová deixou enfim as alturas e habita modestamente entre os homens, transformado em alguns centenares de pequenos deuses bastantemente satisfatórios que vêem e ouvem melhor do que se fossem deuses grandes. São esses que andam a pregar ao povo o que o grande antecessor deles, o defunto Senhor dos Exércitos, não consentiu jamais que Moisés revelasse aos filhos de Israel = o direito do homem em face do seu semelhante: o direito do homem em face da Natureza: o direito do homem em face de Deus. = São esses a quem pertence o futuro – porque o número deles aumenta dia a dia – porque do céu, que eles prometem, todos podem ver a escada, solidamente construída de razão e de justiça – porque falam aos pobres, porque os chamam a si; e os pobres quem os contar no mundo há-de achá-los tão numerosos como as lágrimas que os ricos têm feito chorar – porque, enfim, um instinto secreto adverte a todos de que a verdade está na palavra daqueles homens, para cujo triunfo conspiram ainda os seus mais ferozes inimigos. Estes é que são os apóstolos de um Evangelho tão grande que pode conter no seio todos quantos têm pregado ao norte e ao sul, os Cristos de todas as raças e de todas as cores. Estes são, finalmente, a Igreja militante da Revolução e, como a Igreja antiga dos Confessores, os únicos vivos no meio da multidão inumerável dos que existem. O ponto são, o ponto sensível do corpo tão doente da nossa sociedade é aquele só, porque o resto, inerte e adormecido, só acorda um momento para uma vida fictícia com a excitação galvânica, artificial do prazer ou da ambição. A consciência do homem, a independência do espírito, a santidade do direito, isso é o que menos importa a essa turba de especuladores que, desde a Praça do Comércio até aos Parlamentos e aos Senados, se revolve vertiginosamente no chão da pátria, como vermes sobre um cadáver, alimentando de putrefacção uma vida votada a uma impureza incurável. 

No meio disto, o que há aí de humano, de animado, de vital, senão o instinto ardente, o sentimento profundo de dignidade espiritual que, reagindo contra tantas misérias, dá por alvo aos desejos dos homens a máxima liberdade moral, a independência da alma, a sua emancipação do jugo dos Dogmas enganosos – em Política como em Religião, na Economia como na Moral?

Reconstrução do mundo humano sobre as bases eternas da Justiça, da Razão e da Verdade, com exclusão dos Reis e dos Governos tirânicos, dos Deuses e das Religiões inúteis e ilusórias (*Nota: Ateísmo social - anarquia individual - é a formula precisa e clara das escolas mais avançadas de França e Alemanha). E escusado citar: Proudhon: a Justiça na Revolução e na Igreja; o Princípio Federativo; Criação da ordem na humanidade, a revolução social e o golpe de Estado.; etc., etc. Quinet: Génio das Religiões, Cristianismo e Revolução Francesa, etc., etc. Renan: Estudos Religiosos; Ensaios de Crítica. Michelet: o Povo; a Reforma; a Renascença, Bíblia da Humanidade, etc. Dolfus: Cartas Filosóficas, Revelação e Reveladores; etc. Taine: Críticas. Littré: Palavras de Filosofia positiva; Conservação, Revolução e Positivismo; etc. - e os alemães, H. Heine: da Alemanha; Lutece; a França.  B. Bauer: Críticas. Feuerbach, a Religião; Essência do Cristianismo. Dr. Bucher: Força e Matéria.) – é este o mais alto desejo, a aspiração mais santa desta sociedade tumultuosa que uma força irresistível vai arrastando, ainda contra vontade, em demanda do mistério tremendo do seu futuro.

Esta voz, se é a mais alta, deve também ser a mais poética. A poesia que quiser corresponder ao sentir mais fundo do seu tempo, hoje, tem forçosamente de ser uma poesia revolucionária. Que importa que a palavra não pareça poética às vestais literárias [António Feliciano Castilho] do culto da arte pela arte? No ruído espantoso do desabar dos Impérios e das Religiões há ainda uma harmonia grave e profunda para quem a escutar com a alma penetrada do terror santo deste mistério que é o destino das Sociedades!

Está dada a razão deste livro.

Coimbra - Julho de 1865.»

Tentemos cogitar e assimilar as grandes verdades intuídas e deduzidas por Antero de Quental e tão bem expostas,  com grande entusiasmo revolucionário e idealismo, bem numa linha que Tolstoi desenvolverá também, mas que infelizmente vemos como foi impedida e corrompida em quase toda a parte, entrando-se nesta terceira década do século XXI cada vez mais submetidos a novas formas de censura e de tiranias...

E procuremos meditar e sentir, vivenciar e aprofundar mais o fecundo mantra anteriano, até hoje talvez por raríssimos descoberto e utilizado: "A vida é a consciência e o espírito"....

Votos de boas práticas de justiça e sobriedade na vida, e amorosas e meditativas, em sintonia com o ardor juvenil e perene anteriano, externa e internamente...