sábado, 10 de abril de 2021

Antero de Quental visto por Fernando Leal: uma compreensão fraterna, um Amor que observa e vence a morte.

Antero de Quental, em 1887, em Ponta Delgada, na fotografia que ele mais gostava e que foi reproduzida no seu In Memoriam, em 1896

A notícia da inesperada partida de Antero de Quental, em 11 de Setembro de 1891, do corpo e da Terra, na terra natal  açoriana, provocou espanto e sofrimento, constrangimento e tristeza funda nos seus amigos, que cedo testemunharam por cartas, artigos de jornais e publicações as suas elegias anímicas em preito  à grande alma que assim subitamente a nau terrena abandonara. Vamos abordar deles apenas Joaquim de Araújo (1858-1911), um dos grandes amigos de Antero, pese a diferença de idade -13- entre os dois, que publica nas semanas a seguir um poema, Na Morte de Antero, belíssimo, o qual se desenvolve sob a epígrafe grega Morrer é ser iniciado, e que já cingimos neste blogue. Vamos ver agora como Fernando Leal (1846-1910), de família natural de Caminha mas já nascido em Margão, e que se notabilizou no Ultramar e na Índia portuguesa, explorador de terras e rotas africanas, militar, escritor, tradutor poeta e também grande amigo de Antero,  insere  entristecido a sua súbita morte, num acrescento a uma obra que estava a publicar e na qual apresentava Antero de Quental e alguns poemas ao público francês, fazendo-o   com uma força extraordinária, realçando-a eu com um sublinhado.  Traduzimos então tal excerto do livro escrito em francês, intitulado Corymbe exotique, dado à luz em Lisboa, na Typographie Franco-Portugais, em 1891.

                                  
«Pode-se ler neste pequeno livro, a através da minha pálida tradução francesa, três composições de nosso grande e lamentado poeta A. de Quental [Mors-Amor, Entre duas Sombras, Divina Comédia]. Este poeta fora de série é o autor das Odes Modernas e de um livro de Sonetos. Este último livro, que se diria sonhado sobre uma montanha ideal, é totalmente excepcional, pelo poder de visão psíquica, pela perfeição serena, austera, sóbria, da ideia e da forma, pela resignação e pela sinceridade, pela emoção dolorosa, pela inefável beleza e pela bondade suprema de que está impregnado. No meu desespero de condensar em algumas linhas (o que eu não conseguiria mesmo fazer em algumas páginas), a poesia e a filosofia deste livro complexo, que reflecte diversas fases do coração e do espírito do poeta, eu confessarei as impressões predominantes em mim próprio, dizendo que o poeta se revela frequentemente como um Job, sentado não sobre o seu estrume, mas sobre uma nuvem, e por vezes mesmo como um Budha, arrepiando e fazendo-nos arrepiar sob o sopro desesperante do nosso fim do século...
Antero de Quental acaba de se matar na ilha de S. Miguel, capital dos Açores, onde ele nascera. Pediu a duas balas do revólver o repouso [nos gnósticos dos 1ºs séculos o Cristianismo, o repouso significa a iluminação, a libertação, e algo disso ficou na oração: Repousa em paz] que o seu espírito superior procurava em vão aqui em baixo.
Esteve errado em desembaraçar-se voluntariamente do seu revestimento material?
O egoísmo da minha amizade responde afirmativamente; ele, terá
talvez razão; em todo o caso a sua morte, sendo um pouco o corolário lógico da sua filosofia, provou a sinceridade nobre da sua vida».
                                                
Eis-nos com Fernando Leal
(em cima, em Velha Goa, numa rara e desconhecida fotografia), um grande amigo  de Antero de Quental, a exprimir os sentimentos causados pela morte do mestre, primeiro elogiando as suas altas qualidades poéticas, filosóficas e morais, segundo admitindo que Antero, não conseguindo encontrar a paz ou a realização, ou repouso, como diz, avançou para a morte destemidamente, porque tal foi quase a conclusão de uma vida em que ela foi não temida mas sim cantada, desejada e amada. Como se Antero de Quental com tal acto tivesse aposto à sua vida e obra o selo de mártir, como se tal preparação tivesse chegado ao amadurecimento.
Como não pensarmos nos dias de hoje no recente mártir iraniano general Qasem Soleimani, vencedor de muito do terrorismo do Médio Oriente, e que há muitos anos desejava ser mártir, shahid, um grande valor na tradição Shia ou Xiita, por causa dos seus doze Imams martirizados, e que sucumbiu aos assassinos dos USA, Arábia Saudita e Israel que cobardemente o mataram?
O Imam Ali a receber Qasem Soleimani quando este morre. E Antero, teve acolhimento ou amparo?  
Ao menos Antero, embora se possa especular no que ele poderia ainda gerar na Terra, teria concluído em grande parte a sua missão, e com o corpo e sistema nervoso incapazes de lhe assegurarem a base de trabalho necessária à sua natureza filosófica e espiritual, preferiu partir voluntariamente, provando assim de facto e in loco que fora sincero nos seus elogios da morte libertadora e que portanto não a temia, vendo nela o meio ou porta para um estado melhor, de repouso dos nervos e da mente. 
Qual foi o estado e plano psíquico subtil em que entrou será sempre um mistério, e os poemas escritos ou recebidos pelo polícia espírita ou médium Fernando de Lacerda, e inseridos no Do País da Luz, em 1919, só nos fazem alvitrar sorrindo que Antero teria perdido no além o seu génio poético, o que o bom senso, aplicado à misteriosa vida no além, rejeita. Mas que Antero se adentrou, lentamente talvez, na via da consciencialização da imortalidade da alma espiritual, e que poderemos rezar por ele, ou então simplesmente dialogarmos com ele ao lê-lo e meditá-lo, não haverá dúvidas...
 

 Foi o seu espírito imortal (o atman indiano) ou eu superior que o impeliu a matar-se, como parece deduzir-se do que diz Fernando Leal, ou estaria antes o seu espírito superior  algo frustrado da menor ligação consciente a ele por parte de Antero, e fora assim portanto antes a personalidade impulsiva deste que resolveu cortar o chamado "fio de prata", que liga o corpo espiritual ao corpo físico, e partir antes do seu tempo natural de morte?
Fernando Leal, quando diz que a sua morte foi um pouco o corolário
da sua filosofia, dá a entender que o corolário da sua filosofia poderia ser outro e não o suicídio e que portanto a sua vasta visão filosófica do universo foi afectada por uns poucos aspectos do seu percurso e realização, que diminuíram Antero na sua plenitude espiritual e amorosa e o levaram a encarar a morte voluntária como sendo acertada para o seu desejo de repouso, que os seus nervos fragilizados e desiludidos ansiavam.

Anos mais tarde Fernando Leal, no seu Livro da Fé, Nova Goa, 1906, no apêndice final em que transcreve algumas cartas de amigos, nomeadamente as maravilhosas que Antero lhe dirigira (algumas já abordadas neste blogue), escritas desde 1880,  exclama assim entusiasmado: «Vejam as cartas de Antero de Quental. Como nelas se revela a bondade nativa da sua alma! A sua ternura, o seu interesse quase maternal pelos seus amigos! E assim se completa essa grande e imperecível figura, primor e glória da nossa raça, ao qual Eça de Queiroz chamava Santo Antero, completa-se o homem das Odes Modernas e dos Sonetos pelo seu lado humano e enternecido».

Saibamos pois cultivar e ser fiéis aos entusiasmos que seres, questões, causas e demandas em nós possam suscitar, arder, saibamos manter o lado humano do amor e da solidariedade e não deixemos que tantas amizades ou vidas se desvaneçam como folhas ao vento outonal. Perseveremos no Amor!

 «Cavalga a fera estranha sem temor:
E o corcel negro diz: "Eu sou a Morte!"
Responde o cavaleiro: "Eu sou o Amor!"» 

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