terça-feira, 20 de fevereiro de 2024

Livros que abri, páginas que li: "O Retrato do padre Lagrange", por Jean Guitton. Diálogos sobre Deus, exegese, profecias e a Verdade.

                                                

 Livro que abri, páginas que li...

 Jean Guitton (18.8.1901-21.3.1999) foi um notável professor liceal e universitário, historiador, ensaísta e biógrafo católico, que viveu mais de noventa anos, em aprendizagens tal com Loisy, Carcopino e Lagrange e com grande produção literária, passando por uma fase mais crítica após a 2ª grande Guerra, em que esteve preso dois anos pelos alemães, ao ser considerado um pró-alemão, e por  ser um apoiante do marechal Pétain, chefe do governo de Vichy colaboracionista, vindo depois a ser limpo de tais acusações e reintegrado no ensino universitário (Filosofia, na Sorbonne, desde 1955) e desfrutando amizades literárias, políticas e religiosas importantes, entrando mesmo na Academia Francesa em 1961,

Na obra Portrait du père Lagrange, Celui qui a reconcilié la science et la fois, ou seja, Retrato do Padre Lagrange, Aquele que reconciliou a ciência e a fé, um título algo exagerado para um trabalho de exegese bíblica apenas mais fundada arqueológica e linguisticamente, Jean Guitton biografa bem o  exegeta e teólogo cristão Marie-Joseph Lagrange (7.3.1855-10.3.1938), a pedido, algo reparador, do papa Paul VI que decidira canonizá-lo. Era um erudito dominicano, famoso por ter realizado importantes investigações sobre a Bíblia e Cristianismo,  fundador  em Jerusalém em 1890 da Escola Prática de Estudos Bíblicos (depois Escola Bíblica e Arqueológica Francesa), donde sairá a prestigiada Bíblia de Jerusalém, e em 1892 da Revue biblique, em 1898 da coleccão Études bibliques. Destacará muito bem o  seu percurso eriçado de dificuldades no seio da Igreja, pelas suspeitas do seu método histórico e da sua exegese mais fundamentada serem modernistas, pelas inimizades (tal a do jesuíta alemão Leopold Fonck) mais do que polémicas, e pelas censuras a que pelo voto de obediência teve de se submeter anos a fio, tal a do Papa Pio X que o impediu de publicar qualquer trabalho durante dez anos. A sua tradução dos Quatro Evangelhos e os estudos preparatórios serão muito apreciados e como dissemos  o seu processo de beatificação está em andamento.
Num in-4º de 244 pági
nas, que foi dado à luz em Paris, em 1994, Jean Guitton,  após uma primeira parte com capítulos biográficos por vezes emocionantes pelas perseguições sofridas, insere numa segunda parte, "Encontros", extractos valiosos dos diálogos que travaram em Paris e Jerusalém, que nos permitem compreender melhor tanto o pensamento e a personalidade de Lagrange como as linhas de sabedoria e de demanda que realizavam e "conversaram", no sentido de Agostinho da Silva do convergir para a verdade, para a unidade ou mesmo converter ao mais alto em nós...

                                               

Num desses apontamentos valiosos, nas pp.162-63, o Padre Lagrande defende-se de ser um escritor para as pessoas mais simples, já que admitia a hipótese de ter sido real a vinda dos reis magos, afirmando: "esta condenação prévia duma hipótese qualquer, este direito concedido à razão de condenar uma experiência, é radicalmente contrário ao espírito científico, e no meu sentir [ou ver], é um pecado contra o espírito. Nas ciências, esta suspeita prévia não pode existir." Destaquemos esta identificação do estreitismo dogmático ao famoso e misterioso "pecado contra o Espírito santo", que segundo os Evangelhos seria o menos perdoável. Anote-se que noutro momento da sua vida (como Guitton no narra), considerou também os erros de gramática como pecados contra o Espírito Santo, provavelmente no sentido de serem contra a ordem gramatical e racional, o Logos, e a sua acção nos que escrevem...

Já na pág. 164 o Padre Lagrange contradiz-se um pouco, pois depois de justificar-se de explicar Deus como um homem barbudo aos aldeões, e interrogar-se: «fiz mal de agir assim, como o fizeram desde a origem aqueles que falavam ao povo, desde Jonas, S. Vicente de Paula, o cura d'Ars?», conta a sua charla ou prédica pela rádio na Bulgária: «Queridos amigos comunistas búlgaros, vós sois ateus, não acreditais em Deus porque vos ensinam que Deus é barbudo. Rejeitais a barba com razão, mas negais Deus sem razão. No fundo, o que é um ateu? Vou dizer-vos: um ateu é um espírito que tem uma ideia de Deus mais pura que os seus contemporâneos. O exemplo mais famoso é o de Sócrates que foi condenado pelo tribunal político ateniense porque ele era ateu e que corrompia a juventude.
Aos meus olhos, a vo
ssa ignorância é sinal da vossa pureza. Vós não quereis o Deus de barba e orelhas como está representado sobre os vossos ícones. Tendes razão em rejeitar a barba, mas errais muito ao rejeitar Deus.»  E contradiz-se porque mesmo aos aldeões devia ter explicado melhor Deus sem antropomorfismo, embora seja bem sábia a compreensão da pureza ou não contaminação de visão  presente em Sócrates ou num simples ateu, bem assinalada aliás logo por ele com uma visão intimista da Divindade, pois de facto o padre Lagrange iniciara a sua rábula do Deus barbudo, com as seguintes palavras, bem valiosas de serem mais praticadas ou sentidas: «Supõe que expões às pessoas da tua aldeia a ideia mística que Deus não cessa de falar a nossa alma e que a nossa alma não cessa de conversar com Deus. Para falar ao povo, eu faço um desenho que representa um Deus barbudo, com uma barba florida como Carlos Magno e duas orelhas. Errarei ao agir assim....» Esta fala, conversa ou oração incessante, numa linha até erasmiana, conforme partilhei no seu Modo de Orar a Deus, pode e deve ser  sentida como uma maior atenção ao nosso interior espiritual.

Valioso também, na  página 165, num subcapítulo intitulado Lagrange e Bergson, Jean Guiton contar:«Como eu era o discípulo e herdeiro espiritual de Bergson, o padre Lagrange interrogava-me sobre textos que o embaraçavam no último livro de Bergson chamado As duas Fontes da Moral e da Religião», e assim Guiton esclareceu-o quanto à fé cristã de Bergson pois este, rebatendo a hipótese crítica do cientista e investigador religioso Paul-Louis Couchoud (1879-1959, Le Mystère de Jesus), que negava até a existência histórica de Jesus (tal como tal Arthur Drews e Herman Raschake) afirmara-lhe que «a humanidade e a historicidade dos Evangelhos parecem-me um aquisição eterna».
Valioso o diálogo entre os dois ac
erca do "dramatizante dualista" Blaise Pascal e a concordância verdadeira ou fabricada entre profecias antigas do Antigo Testamento e as ocorrências da vida de Jesus nas narrativas evangélicas, e onde Jean Guitton surge bem mais próximo da verdade e não condescendendo, como em parte o P. Lagrange, com a alteração da mensagem de Jesus: «Pascal raciocinava assim: há no Antigo Testamento profecias, isto é anúncios sobre o futuro, anúncios muito precisos nos detalhes como nos momentos temporais. Ora, segundo Pascal, essas profecias, feitas muitos séculos antes de Jesus. foram verificadas na história do Jesus, nomeadamente as profecias feitas pelo profeta Isaías sobre a  morte ignominiosa de Jesus que nós chamamos a Paixão. Que pensa das profecias, ou melhor do argumento das profecias de Pascal [e que os comuns cristãos também aceitam], já que passou toda a sua vida a estudar o Antigo e o Novo Testamento e que por consequência é mais competente que qualquer pessoas para nos dizer se Pascal tinha razão [nesta aposta] ou se Pascal se enganou, em função das últimas descobertas da exegese moderna?

Responde o Padre Lagrange: «É verdade que em 1906 em Jerusalém, fiz uma conferência sobre esse assunto tão difícil e contudo capital. Dir-vos-ei em que condições tal conferência foi realizada em Santo Estevão, Jerusalém. Acabara de sair um livro de Sully Prudhomme (16.3.1839-6.9.1907), o poeta celebre que foi o primeiro prémio Nobel de Literatura e que tinha uma muito grande autoridade moral, e Sully Prudomme sugeria que os argumentos de Pascal [de quem era uma grande conhecedor] tinham sido arruinados pela exegese moderna [dos Evangelhos e do Cristianismo]. Pascal dera a maior importância à profecia, e considerava-a como o selo que Deus dá à sua obra anunciando-a antecipadamente. 

Sully Prudhomme
Jean Guitton interrompe-o então e diz-lhe: «- Permita-me, meu padre, indicar-lhe qual é a minha dificuldade quanto às profecias, seja em Pascal ou em si. E esta dificuldade surge cada vez mais à medida que se avança na exegese, e ela inquieta muitos dos nossos contemporâneos.
Se as profecias, dizem-nos, se realizam [ou realizaram], é por uma razão muito simples, é porque o Evangelho, a história evangélica tal como nós a encontramos hoje nos quatro Evangelhos, foi fabricada pelos redactores para realizarem [ou cumprirem] as profecias e a partir das profecias do Antigo Testamento. De modo que nós não nos espantamos nada que Jesus tenha ressuscitado "segundo as Escrituras" porque as Escrituras, ou seja as profecias, foram a fonte das narrativas dos Evangelhos. De modo que o argumento das profecias está arruinado, já que em vez de provar a verdade da religião, demonstra as fraudes que estão na sua origem.»
Bem apertado por Jean Guitton, o P. Lagrange admite que haja nos Evangelhos partes que foram induzidas pelas profecias do Antigo Testamento, mas realça que o mais importante foi «o anúncio que viria um Messias, rei, de qualquer nome que se chame, e que faria uma verdadeira revolução religiosa que se estenderia à humanidade inteira. O problema é então saber se este ser anunciado veio e se tal ser que anunciaram é precisamente o Nazareno», e tal é o que pensaram o apóstolos, Pascal e eu.
E passando os dois a discutirem se as profecias tem dois sentidos, um literal e outro espiritual ( e podem-se até discernir mais), um nos efeitos superficiais, o outro nas causas profundas, Jean Guitton atreve-se a citar de um comentador de Pascal um texto valioso, ou como ele chama "notável", e que bem meditado nos pode aproximar mais da verdade e do seu Campo unificado de energia consciência informação: «Não há qualquer dúvida que todas as verdades são eternas, que elas estão ligadas e dependentes umas das outras, e este encadeamento não é só para as verdades naturais e morais, mas ainda é para as verdades de facto que podemos dizer também de certo modo eternas, pois todas estando atribuídas [ou designadas] a certos pontos da eternidade e do espaço, elas compõem um corpo que subiste como um todo [tout à la fois] para Deus»

E fiquemos com esta imagem de um corpo místico da Verdade, ou do Logos, Inteligência, Amor, Razão e Ordem do mundo, e que para os cristãos tem a sua cabeça em Jesus Cristo, o mestre da hoje em genocídio Terra Santa... Que a paz e a fraternidade possam surgir o mais rápido possível...

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Antero de Quental, nos sutras de Joaquim Correia da Costa, em crítica a um livro de Mário Beirão, no "Diário de Lisboa", de 14-3-1929.

                                     

Arrumando gavetas, papéis, manuscritos, jornais, deparei-me com um artigo de crítica literária do diplomata e escritor  Joaquim Correia da Costa, no Diário de Lisboa (onde escreveu bastante desde 1922), de 14-3-1929, acerca do Último Lusíada, acabado de dar à luz pelo poeta Mário Beirão (1890-1965) e onde, no meio do elogioso texto, de uma página a quatro colunas,  vislumbrei um parágrafo dedicado a Antero de Quental,  com o qual inicia a menção da linhagem dos poetas líricos em que Mário Beirão se inseria e que passaria então por Antero de Quental, António Nobre, Gomes Leal, Guerra Junqueiro, Teixeira de Pascoaes e João de Deus, concluída por ele com a esperança nos novos poetas. 

 O que discerniu muito sinteticamente sobre Antero de Quental merece ser salvo da tumba do esquecimento dos frágeis jornais no decorrer do Tempo e receber alguma hermenêutica mais luminosa, pois Joaquim Correia da Costa era um pensador crítico, inteligente e sensível, apreciador das literatura e artes plásticas, do integralismo e tradições portuguesas, com muitos amigos, tal Fernando Pessoa, Carlos Parreira, João Ameal e outros,  pelo que vamos então ressuscitá-lo, saudando-o no esplendor do espírito e das coisas, para o seguirmos no seu livro de valiosos ensaios de crítica literária,   apontamentos de viagem no estrangeiro e descrições de Portugal e seus costumes, -  campinas e cavadores, mercados e feiras, excelentes ou não fosse ele natural de Moita do Ribatejo - , dedicado  a Alberto da Rocha Brito, a António de Cértima e a Lino António, com capa de Almada Negreiros, dado à luz na Lumem, editora conimbricense, em 1926.

Eis o que nos transmite, como que em quatro sutras: - "Antero viveu a interrogar-se numa rebeldia dolorosa, onde surgiu a morte e com ela o seu sacrifício sobrehumano. O mais alto desejo sensível cabe todo dentro de alguns sonetos de Antero. O Poeta atingiu em sua obra o credo na humana condição, tão vizinha da morte. Atingiu num sonho todo o mundo e depois de o atingir disse à vida o seu Nirvana.»

Aproximemo-nos então do começo: "Antero viveu a interrogar-se numa rebeldia dolorosa, onde surgiu a morte e com ela o seu sacrifício sobrehumano."

Esta afirmação não é exagerada, pois Antero interrogou muito a vida e seus sentidos e mistérios, suas instituições e agentes, e fê-lo com audácia, coragem, independência e logo rebeldia não só mental mas também física e factual, como na sua vida de estudante, de polemista ou de revolucionário socialista exemplarmente manifestou.

Podemos dizer "interrogou", como talvez melhor ainda "questionou. investigou, demandou" e, nesse processo de estudo, exame, experimentação, descoberta, tese, antítese e síntese, Antero foi avançando e amadurecendo seja religiosa, política,  filosófica ou psiquicamente, todavia com a doença a surgir-lhe algo cedo, diminuindo-o na sua irradiação e obra e predispondo-o para a morte precoce. Assim, as unificações com o mundo das ideias e dos seres pela laboração afectiva e psíquica, poética e filosófica que Antero realizara e partilhara, através da edição final dos Sonetos e a publicação das Tendências Gerais do Pensamento Filosófico, ficaram como o seu testamento, final, ainda que reconhecesse nele limitações de não ter conseguido gerar a sua poesia espiritual e luminosa perfeita, nem escrever a sua visão filosófico-espiritual plenamente.

Foi um "sacrifício sobre-humano", o seu suicídio? É uma boa denominação ou  classificação do acto fatal: Antero mata-se, sacrifica-se na ara ou altar dos seus ideais, das suas aspirações e do inconseguimento deles pessoal e provavemente até nacional. 

Era uma parte - quem sabe, um dos seus corações - de Portugal que se suicidava, vencida na incapacidade  da Liga Patriótica do Norte, presidida por Antero, de conseguir em 1891 dinamizar a reacção voluntariosa dos partidos e do governo ao Ultimato do imperialismo britânico.  

No anoitecer de 11 de Setembro de 1891, olhando para trás, nesse alto monte escarpado final, Antero de Quental deve ter visto a sua vida fabulosa de criança açoriana, de estudante, de literato, de poeta apaixonado, de orador, de revolucionário idealista, político e socialista, de epistológrafo e filósofo, mas em que não conseguira assentar na realidade da profissão e trabalho,  casa e  terra, mulher certa ou amada (a sua Beatriz  sentida idealizadamente na Beatrice e nas Primaveras Românticas)  ou ainda  grupo, cenáculo ou meio receptivo e frutuoso, mesmo que fosse só a Ordem dos Mateiros, sonhada para uns poucos, em modo agro-florestal e contemplativo, resistentes à degeneração do Ocidente, como hoje mais acentuadamente observamos, com alguns montados mateiros a sobreviverem.

Assim, a não-vivência harmoniosa ou plena como desejaria, a má situação do corpo, dos nervos e da esperança na alma de Portugal e na possibilidade de cooperar com ela e, por fim, a frustração do seu projecto de retorno à ilha natal com as duas pupilas - ao não se poder realizar na proximidade com elas desejada - levaram-no a cortar os laços que o prendiam à humanidade da terra. E nestes sentidos Antero foi sobre-humano, arrancou ou exigiu algo mais do que o humano nele.......

Estava desiludido, cansado de quê? Da terra mesmo, da vida humana, da sociedade, e em especial da sociedade portuguesa e açoriana, ou estava sobretudo já desinteressado da vida da Terra, por não ter mais esperanças quanto a ela e, pelo  desgaste e enfraquecimento nervoso e psíquico e a sua difícil readaptação à vida parda em Lisboa (para onde teria de regressar), só e com escassos amigos, algo já uma sombra do Antero deslumbrante que Eça de Queirós viria a debuxar uns anos depois magnificamente no seu In Memoriam?

Assim a palavra sacrifício sobre-humano pode interpretar-se em vários sentidos, tal o de desiludido, sacrificar de novo a sua vida, e agora diante da morte, face aos altos ideais supra-humanos: - "Já que não os consigo mais realizar, nem nós portugueses, que haja quem faça o seppuku ou hara-kiri, o mea culpa, o não sou digno de Ti, Vida, partindo sem medo para a libertadora irmã Morte."

E foi um "sacrifício sobre-humano", difícil, como são a maioria dos suicídios - e que longo filme ou livro trágico se realizaria de últimos  pensamentos dos que enveredaram por tal prática e caminho -, porque provavelmente se debateu dolorosamente entre o ir e o ficar, entre o tentar  realizar ainda algo (talvez obra filosófica e espiritual, ou apenas a educação das duas pupilas Albertina e Beatriz) ou o baixar os braços e desistir. E, finalmente, porque  no fim dos dois tiros disparados  esteve algum tempo ainda em forte sofrimento, numa crucificação sobre-humana, só suportável porque a um "sobre-humano nível" se referia e aspirava...

Entremos agora nas ideias-forças da 2ª afirmação sutrica: "O mais alto desejo sensível cabe todo em alguns sonetos de Antero."

Nesta frase, afirmativa da poderosa força (quase atómica) dos sonetos de Antero,  discernimos a sua compreensão dele ter conseguido atingir em poemas o máximo de amor, de aspiração, de idealismo, isto é, de alto desejo, seja de amor,  justiça,  gnose,  fraternidade ou verdade, e ter condensado tal em palavras, rimas, ritmos, imagens, sentimentos, sonetos poderosamente perenes.  

E são realmente muitos  os poemas e sonetos plenos de tal fogo e demanda, que infelizmente não foi tão plenamente realizada em certos níveis internos e gnósticos, embora noutros sim e que ele sabia: a perfeição poética estava reconhecida, e o seu pensamento filosófico foi partilhado no fim da vida na Revista de Portugal e por alguns bem recebido, e durante muitos anos em cartas fora derramando a sua palavra ou verbo encantatório, idealista, libertador, fraterno, sábio....


A frase seguinte, "O poeta atingiu em sua obra o credo na humana condição, tão vizinha da morte, " é também bastante desafiadora, e poderemos lê-la, entre outras hermenêuticas, assim: A obra poética de Antero é um credo, uma afirmação de crença nos valores e potencialidades do ser humano, imensos  e enormes, mas que sabemos serem sempre frágeis pela sua sujeição à sempre vizinha morte e a tantas adversidades.

Joaquim Correia da Costa demonstra uma boa afinidade com o pensamento de Antero de Quental, na valorização da morte sempre ao lado da vida e, nesta equiparação, nesta visão da dualidade, pode haver até uma crença na vida depois da morte, pois se a vida gera tantas maravilhas, mas está sempre colada à morte, porque não admitir que esta tenha também muitas maravilhas em reserva para os que as merecerem?  Não sabemos porém o posicionamento espírita, ou espiritual, ou de crente ou descrente na imortalidade da alma, que Joaquim Correia da Costa tinha. Contudo, o últim0 sutra permite vasta hermenêutica:  "Atingiu num sonho todo o mundo e depois de o atingir disse à vida o seu Nirvana."

Esta tão bela quão misteriosa frase  poderemos interpretá-la pluridimensionalmente: Antero de Quental alcançou na sua obra poética e de ensaio literário, político, filosófico, ético e espiritual uma expansão consciencial muito grande, quase uma unidade com o universo e, atingida tal infinitização, Antero despediu-se da Vida fazendo por si próprio a sua extinção ou Nirvana, no banco do jardim ou campo de S. Francisco, sob a palavra Esperança, na sua terra natal de Ponta Delgada, fechando o anel duplo do espaço tempo de Ouroboros, rumo ao seu além nirvânico, certamente não de extinção total mas antes, vislumbramos, de lenta ressurreição psico-mórfica...

 A expressão sutrica "disse à sua vida o seu nirvana" é bastante original e profunda e assinala tanto o poder persistente e coerente de rebeldia indomável de Antero, pois tal como se rebelara contra as praxes e autoridades académicas, ou  o patriarcalismo conservador da escola de Lisboa e de António Feliciano Castilho, e depois lutara por um socialismo humano e por fim contra o imperialismo britânico, confrontado com o aproximar irremediável da Morte, com quem tanto dialogara e poetizara no seu percurso ardente, preferiu ser ele dizer ou fazer a sua própria morte, ou fim, ou extinção ou nirvana, num acto portanto de rebeldia máxima à normalidade, provavelmente mais dolorosa que jubilosa ou nirvanica, pelo menos enquanto não morreu cerebralmente, embora não saibamos que forças de desprendimento libertador emanou em tal acto e momentos pelo éter eterno...

Resta intuir ainda com que força e luz ele despertou consciencialmente no além, já sem corpo físico mas num corpo poético-espiritual, e quanto tempo, as suas melhores ou mais causais tonalidades vibratórias, intensificadas com entretecimento com as dos por ele têm orado, levaram a ressuscitá-lo mais...

Muito luz e amor para os três: Antero de Quental, Mário Beirão e Joaquim Correia da Costa! Demos graças Lux, Aum, Amen, Iao, Hum.

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Extractos do Evangelho de Ramakrishna, por Mahendranath Gupta, no 188º aniversário de Ramakrishna. E o prefácio de Aldous Huxley.

                                   

Comemorando-se os 188 anos do nascimento de Sri Ramakrisna Paramahansa (1836-1886) neste mês de Fevereiro, a 18, e tendo eu estado em 1995 alguns meses em Calcutá no Instituto de Cultura da Missão ou Ordem de Ramakrishna, dirigido então por Swami Lokesvarananda, a traduzir (à mão...) a narrativa da sua vida e alguns textos sagrados do Sanatana Dharma, a Tradição espiritual perene da Índia, estes com o pundit Satchitananda Dhar, resolvi partilhar alguns extractos  dessa maravilhosa narrativa escrita em bengali, a Sri Sri Ramakrishna Kathamrita,  por Mahendranath Gupta (1854-1932), publicada entre 1902-1932, e que traduzi a partir dum exemplar 4ª edição do Evangelho de Ramakrishna, na tradução inglesa de Swami Nikhilananda, editada em 1994, que leva até um breve mas denso e valioso prefácio do genial autor da Ilha, e do Admirável Mundo Novo,  Aldous Huxley (1894-1963), ou não publicara ele a famosa antologia Perennial Philosophy, com textos de quase todas as tradições, mas não  portuguesa, e que o meu primeiro guru na Índia, Swami Kaivalyananda, de Rishikesh, me fez ler e cogitar como preparação à realização espiritual vedântica. 

"Haverá, numa ou noutra das próximas gerações, um método farmacológico para fazer com que as pessoas gostem da sua servidão e para produzir uma ditadura sem lágrimas, por assim dizer, produzindo uma espécie de campo de concentração indolor para sociedades inteiras, de modo a que as pessoas tenham, de facto, as suas liberdades retiradas, mas ainda assim gostarão disso, porque estarão distraídas de qualquer desejo de rebelarem-se, por propaganda ou por lavagem ao cérebro intensificada por métodos farmacêuticos...»

No prefácio, depois de lembrar como são raros os génios artísticos ou religiosos que têm a sorte de encontrar um narrador qualificado, Aldous Huxley congratula-se com o encontro entre Ramakrishna e Mahendranath Gupta e a fidelidade com que este preservou a profunda genuinidade, e, simultaneamente, realização espiritual de sri Ramakrishna, o que o torna universal, enaltecendo-os assim "ao ensinarem-nos sobre a vida o espírito": «Ler estas conversas nas quais a doutrina mística alterna com um tipo de humor invulgar, e em que os mais bizarros aspectos da mitologia Hindu dão lugar às mais profundas e subtis afirmações acerca da natureza da Última Realidade, é em si mesmo uma educação livre em humildade, tolerância e suspensão de julgamento».

Transcrevo hoje o diálogo que começa na página 80, quase no princípio do 1º Capítulo, intitulado Mestre e Discípulo, onde M., ou Mahendranath Gupta, relata os seus primeiros encontros e diálogos com Sri Ramakrisna, e que se tornará o seu mestre. Dialogam sobre uma questão persistente, a de pensarmos e adorarmos a Divindade como sem forma, absoluta, não dual, ou antes reconhecê-la e cultuá-la com forma, pessoal, de acordo até com a nossa afinidade de maior devoção às várias formas da Divindade ou mesmo dos seres, mestres, avatares e profetas em que Ela se manifestou, nomeadamente nos fundadores das religiões  ou vias. Ramakrishna responde ainda a outra questão fudamental, como aquietar a mente, como poderemos mais religar-nos ao Espírito e à Divindade. Boas inspirações e práticas....

« (...) Mestre [Ramarishna Paramahansa]: “Bem, acreditais em Deus com forma ou sem forma?”
M., [Mahendranath Gupta] algo surpreendido, diz a si mesmo: “Como é que alguém pode acreditar em Deus sem forma quando acredita em Deus com forma? E se alguém acredita em Deus sem forma, como é que pode acreditar que Deus tenha forma? Podem estas duas ideias contraditórias serem verdadeiras simultaneamente? Pode um líquido branco como o leite, ser negro?”
M.: “Senhor, eu prefiro pensar em Deus sem forma”.
Mestre: “Muito bem. Basta ter fé em qualquer um destes dois aspectos. Acredite em Deus sem forma, está muito bem, mas nunca pense nem por um momento que só esse seja verdadeiro e todo o resto falso. Lembre-se de que Deus com forma é tão verdadeiro como Deus sem forma. Mas mantenha-se firme na sua convicção”.
A afirmação de que ambos são verdadeiros espantou M.; nunca tinha aprendido tal nos seus livros. Então o seu ego recebeu um terceiro golpe, mas como ainda não estava completamente esmagado, tornou a questionar o Mestre.
M.: “Senhor, suponhai que alguém acredite em Deus com forma. Certamente Ele não é a imagem de barro.”
Mestre (interrompendo): “Mas porquê de barro? É uma imagem do Espírito.”
M. Não conseguia compreender bem o significado da expressão “imagem do Espírito.” “Mas, senhor”, disse ao Mestre, “deve-se explicar aos que adoram a imagem de barro, que ela não é Deus e que, adorando-a, devem ter Deus em vista e não a imagem de argila. Não se deve adorar a argila.”
Mestre (incisivamente): “Trata-se de um passatempo de vocês, pessoas de Calcutá, dar palestras e trazer os outros para a luz! Ninguém se detém para pensar como conseguir obter a luz para si. Quem são vocês para ensinar os outros?
“Aquele que é o Senhor do universo ensinará cada um. Só ele, que criou esse universo, nos ensina: Aquele que fez o sol e a lua, homens, animais e todos os outros seres; Aquele que provê os meios para seu sustento; que deu filhos aos pais e dotou-os de amor para os fazerem crescer. O Senhor fez tantas coisas – não mostrará Ele às pessoas a maneira de adorá-Lo? Se precisarem de ensinamentos, Ele será o Mestre. Ele é o nosso Guia Interno.
“Suponhamos que haja um erro em adorar-se a imagem de barro. Não o saberá Deus que é o único que a está a ser invocado? Ele gostará de tal adoração. Por que tereis dor de cabeça por causa disso? Seria melhor esforçar-se por conhecimento e devoção.”
A esta altura , M. sentiu que seu ego estava completamente esmagado. E disse para si mesmo: “Sim, ele falou a verdade. Que necessidade tenho de ensinar os outros? Conheci Deus? Será que realmente O amo? ‘Não tenho espaço suficiente para mim na minha cama e estou a convidar alguém para compartilhá-la comigo! Não sei nada acerca de Deus e estou a tentar ensinar os outros. Que vergonha! Que tolo eu sou! Isto não é matemática ou história ou literatura, que uma pessoa possa ensinar aos outros. Não, isto é o mistério profundo de Deus. O que ele me diz, chama-me.”
Esta foi a primeira argumentação com o Mestre e felizmente a última.
Mestre: “Estava a falar de adorar a imagem de barro. Mesmo que ela seja de barro, há necessidade desse tipo de adoração. O Próprio Deus providenciou diversos tipos de adoração. Aquele que é o Senhor do universo arranjou todas essas formas para servirem às diferentes pessoas nos diversos estágios do conhecimento.
“A mãe cozinha diferentes pratos a fim que sejam apropriados ao estômago de seus diferentes filhos. Suponhamos que ela
tem cinco filhos. Se há peixe para cozinhar, ela prepara vários pratos a partir dela - pilau, escabeche, peixe frito e assim por diante,
para satisfazer os diferentes gostos e poderes de digestão de seus filhos.
“Compreende-me?”
M.(humildemente): “Sim, senhor. Como é que nós podemos fixar as nossas mentes em Deus?
Mestre: “Repita o nome de Deus e cante as Suas glórias, e mantenha a companhia santa; de vez em quando visite os seres devotos de Deus e os homens santos. A mente não pode estabilizar em Deus se estiver mergulhada dia e noite no mundanidade, nos deveres e responsabilidades do mundo; é muito necessário de vez em quando entrar na solidão e pensar em Deus. Fixar a mente em Deus é muito difícil no princípio, a não ser que se pratique a meditação na solidão. Quando uma árvore ainda é jovem, é necessário protegê-la com uma cerca, senão pode pode ser destruída pelo gado.
“Para se meditar, deveis recolher-vos dentro de vós ou retirar-vos para um lugar isolado ou para uma floresta. E deveis sempre discriminar entre o Real e o irreal. Só Deus é Real, a Substância Eterna, tudo o mais, irreal, ou seja, impermanente.
Discriminando assim, a pessoa deve sacudir os objetos impermanenes da mente.”
M. (humildemente): “Como devemos viver no mundo?”
Mestre: “Cumpri os vossos deveres mas mantende a vossa mente em Deus. Vivei com todos – mulher, filhos, pai e mãe - e servi-os. Tratai-os como sendo-vos muito queridos mas, sabendo no coração dos corações, que eles não vos pertencem.»

sábado, 17 de fevereiro de 2024

Sri Ramakrisna e os seus ensinamentos, recolhidos por Max Müller e comentados por Pedro Teixeira da Mota. Vídeo e textos. No 186º aniversário de Sri Ramakrishna Paramahamsa.


Comemorando-se o aniversário de Sri Ramakrishna a 18 de Fevereiro de 1836, com o Sol, a Lua e Mercúrio em Aquário, resolvemos partilhar alguma da sua sabedoria e utilizamos o livro que o pioneiro do orientalismo e dos estudos comparativos das religiões Max Müller publicou em 1898, Ramakrishna his Life and Sayings, contendo um pequeno prefácio de seis páginas e, nas restantes duzentas páginas, 395 pensamentos e parábolas do seu ensinamento, que lhe foram transmitidos por alguns dos discípulos directos de Ramakrishna, morto então apenas há doze anos. Recebeu mesmo em sua casa em 28 de Agosto de 1896 swami Vivekananda, o discípulo principal de Sri Ramakrisna o qual ficou encantado com Max Müller.
A obra teve grande sucesso  e divulgou bastante a sabedoria yogi indiana viva num místico da actualidade, valorizando assim a apreciação dela já que Max Müller, apesar de ser um protestante luterano (e isso reflecte-se na sua obra e nas traduções, apesar de ter sido atacado na época por ser panteísta e anti-cristão) e um ocidental admirador do império inglês e do germânico, era tanto grande linguísta e filólogo especialista de sânscrito e  professor universitário de Oxford, como o fundador da Ciência da Religião e director da pioneira e tão valiosa colecção dos Livros Sagrados do Oriente, que deu à luz cinquenta títulos, um dos quais da sua autoria, a primeira tradução do Rig Veda, com os comentários, a samhita, de Sayana. E foi ainda o autor de diversas obras valiosas sobre o Sanatana Dharma, os ensinamentos espirituais indianos, demarcando-se da divulgação alterada e atabalhoada da Sociedade Teosófica, estando algumas das obras disponíveis no Internet Archive, nomeadamente a tão valiosa e pioneira, no comparativismo religioso quanto às noções de Deus e de alma, enraizado no estudo das fontes,  Theosophy or Psychological Religion, na qual no prefácio explica que escolheu "tão venerável nome porque recentemente fora tão mal apropriado  que urgia restaura-lo na sua verdadeira função".
Resolvemos então ler, traduzindo do inglês para português e comentando levemente, uma p
arte do prefácio e em seguida alguns desses ensinamentos de Sri Ramakrishna, gravando-os em duas partes de meia hora, e estando a ligação no fim deste artigo. 
 
Max Müller em 1894-95 por George F. Watts, um pintor pre-rafaelita de quem era amigo, tal como de John Ruskin.

Resolvi porém transcrever também alguns desses ditos e ensinamentos divulgados por Max Müller e que foram colhidos nas conversas ou satsangas que Ramakrishna diariamente dava e que nos seus últimos anos foram preservados mais fidedigna e contextualizadamente pelo discípulo e sábio Mahendranath Gupta (1854-1932), registados em bengali, em 5 volumes, Sri Sri Ramakrishna Kathamrita, o Evangelho de Ramakrishna. Começo agora apenas na frase 214º, porque nas duas gravações de vídeo li e comentei maiormente as primeiras...

«214. O prato da balança mais pesado desce, enquanto o mais leve sobe. Similarmente, quem está carregado de muitas preocupações e ansiedades do mundo, vai para baixo para o mundo, enquanto que o que tem menos preocupações ergue-se para o reino celestial.

215 Deus está em todos os seres, mas nem todos os seres estão em Deus: esta a razão porque eles sofrem.

351 Uma ama duma família rica educa o filho do seu patrão, amando a criança como se fosse sua, mas sabendo que não tem qaulquer direito a ele. Similarmente, devemos também pensar que somos apenas preceptores e guardiões das nossas crianças cujo verdadeiro Pai é Deus.

352 É inútil cogitarmos as escrituras sagradas sem se ter uma mente discriminativa e desprendida. Não é possível progresso espiritual sem discriminação (viveka) e desapego (vairagya)

353. Conhece-te a ti mesmo e então conhecerás o não-eu e o Senhor de tudo. O que é o meu ego? é a minha mão ou pés, a carne, o sangue o músculo ou tendões? Reflecte com profundidade, e saberás que não há tal coisa como o eu. Tal como continuamente descascando a pele da cebola, também ao analisar-se o ego encontrar-se-á que não há uma entidade real que corresponda ao ego. O último resultado de toda esta análise é Deus. Quando o egoísmo cai fora, a Divindade manifesta-se ela mesma.

354 A prática devocional e espiritual apropriada a esta idade do Ferro, Kali Yuga, é a constante repetição do nome do Senhor do Amor.

355 Se queres ver Deus, tem uma fé firme na eficácia da repetição do nome de Deus, Hari, e tenta discriminar entre o real do irreal.

358 A companhia dos santos e sábios (satsanga) é um dos principais elementos do progresso espiritual.

364 Em que condição mental acontece a visão de Deus? Deus é visto quando a mente está tranquila. Quando o mar psíquico está agitado pelo vento dos desejos, não pode reflectir Deus, e então a visão de Deus é impossível.

365 Como é que podemos encontrar Deus? O pescador, ansioso por captar uma boa variedade de peixe, espera calmamente horas a fio, tendo deitado o isco e o anzol na água, esperando calmamente que a engodo apanhe o peixe. De igual modo, o devoto que segue pacientemente com as suas devoções pode estar seguro que encontrará Deus.

376 Devemos mergulhar profundamente no Oceano de Sat Chit Ananda, Ser, Inteligência e Felicidade eterna. Não receies os monstros das profundezas do mar, a avareza e a ira. Reveste-te da curcuma da Discriminação e do Desapego (Viveka e Vairagya) e esses jacarés nãos e aproximarão de ti, pois o cheiro da curcuma é demasiado forte para eles.

379 Por vezes a paz reina no coração, mas porque não dura muito? Assim como o fogo feito com a queima do bambu extingue-se rapidamente se não for mantido vivo com o constante soprar, assim a devoção contínua é necessária para manter o fogo da espiritualidade.

390 O corpo é transiente e não importante. Porque é que então se trata tanto dele? Ninguém se importa com uma caixa vazia, mas preservam a caixa que contém dinheiro e outros objectos valiosos. A pessoa justa ou com virtudes não pode deixar de cuidar do corpo, pois ele é o templo em que Deus se manifestou ou que foi abençoado pelo advento de Deus.

391 Quanto tempo é que a semelhança de Deus [godliness, a qualidade divina, a santidade] permanece no ser humano? O ferro está vermelho enquanto estiver incandescente e fica negro após ser removido do fogo. De igual modo o ser humano tem uma semelhança ou uma natureza divina enquanto está em comunhão com Deus....»

 Segue-se o 1º vídeo. O 2º encontra-o no mesmo canal do youtube...

 

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2024

Sri Ramakrishna visita Chandra Vidyasagar. Como é inútil falar da Divindade, Brahman, sem a sua visão e conhecimento. Nos 188 anos do seu aniversário.

Ocorrendo o  aniversário de Sri Ramakrishna a 18 de Fevereiro (1836), resolvemos homenageá-lo partilhando algumas páginas do seu ensinamento, transmitido em bengali na forma dum livro em cinco volumes por M [Mahendranath Gupta, 1854-1932], onze anos depois do mestre ter morrido (a 16 de Agosto de 1886), ou seja, a partir de 1897,  intitulado Sri Sri Ramakrishna Kathamrita, e que se tornou conhecida como o Evangelho de Ramakrishna. Em 1995 estive alguns meses em aprendizagens, traduções, diálogos e palestras no Instituto de Cultura da Missão Ramakrisnna em Calcutá, dirigido então pelo sábio e simpático Swami Loskesvarananda, e onde traduzi bastantes páginas e palestrei até, além de visitas e diálogos valiosos. A tradução deste texto em inglês, e de outros em sânscrito com o querido e sábio professor Satchitanandadhar, foram realizados em cadernos e só agora tenho mais tempo para os passar para o computador.

Sri Ramakrishna foi um dos últimos grandes mestres  da Índia, praticamente analfabeto, mas com uma precoce sensibilidade espiritual e  uma aspiração muito grande à Divindade, que o levaram por um percurso em valioso dados os múltiplos encontros com yogis e yoginis, filósofos e religiosos (os ocorridos entre 1882-1886 foram registados por Mahendranath Gupta), que foram alargando a sua realização espiritual de tal modo que conseguiu sentir ou realizar a Divindade através das diferentes sadhanas, ou linhas de prática indianas, mas também através dos ensinos dos diferentes mestres fundadores das religiões, algo que o seu contemporâneo e amigo Keshav Chandra Sen também tentou, como já descrevemos no blogue. A pintura naif representa a unidade das religiões, pioneirizada por eles, ainda que já antes Akbar (1542-1605) e sobretudo Dara Shikok (1615-16599, dois príncipes e mestres mogóis, tivessem brilhado nessa junção de oceanos ou tradições. 

Consciente da época cíclica histórica em que estava, a Kali Yuga, em que a influência do mundo e da mundanidade nas pessoas era cada vez maior, impossibilitando ou dificultando a realização da Divindade de modo não dual, ou seja só se vendo a Unidade divina em tudo, recomendou, como o método mais acessível, a devoção à Divindade, seja sob que forma a adoremos, valorizando a repetição do nome de Deus (japa mantra) que mais gostarmos. 

Durante cerca de quinze anos exerceu um magistério intenso com os visitantes do templo da deusa Kali junto ao sagrado Ganges onde vivia e oficiava e, a partir de dado momento, com um grupo de fiéis amigos, dialogantes, admiradores, discípulos, que irão após a sua a morte formar a Missão ou Ordem de Ramakrisna e espalhar-se pelo mundo, embora bastante mais na Índia, onde se dedicaram tanto à transmissão dos ensinamentos do mestre, como do seu discípulo principal, Swami Vivekananda, e de vários outros monges ou swamis, como também ao serviço (seva) educativo e humanitário. Estive em alguns dos centros e dialoguei com vários monges sábios em diferentes locais ao longo dos dois anos e meio que estive na Índia.

É do registo do dia 5 de Agosto de 1882, que vamos apresentar um extracto da visita de Ramakrishna a Chandra Vidyasagar, e o diálogo que aconteceu. Está no começo do 3º capítulo do Evangelho de Ramakrishna, por Mahendranath Gupta.


Mahendranathgupta, o autor do texto que traduzimos:
«O pandita Ishwar Chandra Vidyasagar nasceu na aldeia de Birsinga, [a 26 de Setembro de 1820, vivendo até 29 de Julho de 1891] não longe de Kamarpukur, o local de nascimento de Sri Ramakrishna [a 18 Fevereiro de 1836]. Era conhecido por ser um grande erudito, educador, escritor e filantropo [e defensor da emancipação das mulheres]. Sendo um dos criadores do bengali moderno, era também muito versado na gramática e na poesia em sânscrito. A sua generosidade fez com que seu nome se tornasse um sinónimo de partilha entre os seus compatriotas, ao dar em caridade a maior parte dos seus rendimentos a viúvas, órfãos, estudantes indigentes e outras pessoas necessitadas. Mas a sua compaixão não se limitava aos seres humanos: deixou de beber leite durante anos para  que os vitelos não ficassem sem ele e também não guiava uma carruagem por receio de causar desconforto aos cavalos. Era um homem de espírito indomável, o que demonstrou quando abandonou a posição bem renumerada de principal do Colégio de Sânscrito de Calcutá, por entrar em desacordo com as autoridades. A sua afeição pela sua mãe era especialmente profunda. Um dia, na falta da barcaça fluvial, atravessou um rio impetuoso com risco da própria vida, para satisfazer o desejo dela que estivesse presente no casamento do irmão. Toda sua vida foi de uma profunda simplicidade. O título Vidyasagar, que significa “Oceano de Sabedoria”, foi-lhe dado em reconhecimento da sua vasta erudição.
Sri Ramakrishna há muito que desejava visitar Ishwar Chandra Vidyasagar. Ao saber que M. [Mahendra Gupta, o autor do Evangelho] era professor na escola de Vidyasagar, o Mestre perguntou-lhe, “Pode levar-me até Vidyasagar? Gostaria muito de vê-lo.” M. contou a Iswar Chandra o desejo de Sri Ramakrishna e o pundit (sábio ou erudito) concordou que M. traria o Mestre Ramakrishna num sábado, às quatro da tarde. Apenas perguntou a M. que tipo de paramahamsa [grande cisne ou alma] o Mestre era: “Ele usa roupa ocre [de renunciante]?” M. respondeu: “Não, senhor. É uma pessoa invulgar. Usa uma roupa com uma franja vermelha e chinelos polidos. Mora num quarto no jardim do templo da Rani Rasmani [a recente fundadora, muito rica e não brâmane]. Em seu quarto há um divã com colchão e a rede para mosquitos. Não tem qualquer sinal exterior de santidade. Mas excepto Deus, não conhece mais nada. Dia e noite pensa na Divindade .” (...)
Hamsa, o cisne do discernimento no emblema da Ordem de Ramakrishna
Vidyasagar era muito reticente quanto a dar instrução religiosa aos outros. Havia estudado filosofia hindu. Uma vez quando M. lhe perguntou sua opinião cerca dela, Vidyasagar disse-lhe: “Creio que os filósofos esqueceram-se de explicar o que estava nas suas mentes.” Mas no seu dia a dia seguia todos os rituais da religião hindu e usava o cordão sagrado  de brâmane. Sobre Deus uma vez declarou: “É sem dúvida impossível conhecê-Lo. Qual deve ser então o nosso dever? Parece-me que devemos viver de tal maneira que, se os outros seguirem o nosso exemplo, esta mesma Terra seria um paraíso. Toda a gente deveria tentar fazer bem ao mundo."

A conversa de Ramakrishna passou então para o conhecimento de Brahman.

Mestre [Ramakrishna]: Brahman, a Divindade, está para além do conhecimento (vidya) e da ignorância (avidya). Está para além de maya, a ilusão da realidade.
O mundo consiste da dualidade ilusória do conhecimento e da ignorância. Contém conhecimento e amor devocional, e também o desejo ou apego à sensualidade e ao dinheiro; rectidão e justiça, bom e mau. Mas Brahman está desapegado [ou acima] destes. Bem e mal aplicam-se ao jiva, à alma individual, tal como a justiça e a injustiça, mas Brahman, a Divindade, não é de modo algum afectado por eles.
Uma pessoa pode ler a Bhagavad Gita através da luz de uma lâmpada, e outra pessoa pode cometer uma fraude através dessa mesma luz, mas a lâmpada não é afectada. O sol derrama a sua luz tanto nos malvados como nos virtuosos.
Perguntareis: Como se pode então explicar a miséria, o pecado, a infelicidade? A resposta é que eles só se aplicam ao jiva, à alma individual. Brahman [o Absoluto, a Divindade] não é afectado por eles. Há veneno numa serpente, mas apesar de outros poderem morrer se forem mordidos por ela, a serpente em si não é afectada pelo veneno.
O que é Brahman é indescritível. Todos as Escrituras - os Vedas, as Puranas, os Tantras, as seis Darshanas (sistemas de filosofia) - foram profanadas, como a comida tocada pela língua, pois foram lidos e pronunciados pela língua. Apenas algo não foi desta forma profanada e tal é Brahman. Nunca ninguém conseguiu estar apto a dizer o que é a Divindade 
infinita.
Vidyasagar
: (para os amigos que assistiam): “Oh! Isto é uma afirmação notável.  Aprendi algo novo hoje.”
Mestre: "Um homem tem dois filhos e envia-os a um perceptor ou mestre para aprenderem o Conhecimento de Brahman. Após alguns anos regressam a casa e inclinam-se diante do pai. Querendo medir a profundidade do conhecimento que detinham de Brahman, interroga o mais velho:- Meu filho, estudastes todas as Escrituras, diz-me agora qual é a natureza da Divindade? O rapaz começou a explicar Brahman pela recitação de vários textos védicos. O pai não se pronunciou e fez a mesma pergunta ao outro filho. Mas o rapaz silencioso, pôs os olhos no chão, e palavra alguma escapou dos seus lábios. O pai ficou contente e disse-lhe: Meu filho, compreendeste um pouco do Brahman. O que é, não pode ser expresso por palavras."
Os seres humanos pensam que compreenderam plenamente Brahman. Uma vez uma formiga encontrou um montão de açúcar. Um grão encheu o seu estômago. Pegando noutro grão com a boca pôs-se a caminho da casa. A certa altura pensou, na próxima vez trarei para casa todo o monte."
Isto é o modo como as mentes estreitas pensam. Não sabem que Brahman está para além das palavras e pensamentos. Por muito grande que seja um homem, quanto é que ele pode conhecer de Brahman? Sukadeva [filho de Vyasa, o autor do Bhagavat Purana e seu narrador] e outros sábios podem ter sido grandes formigas, mas mesmo eles
apenas poderiam levar  oito ou dez grãos de açúcar.
Quanto ao que foi dito nos Vedas e Puranas, sabeis a que se assemelha? Suponde que uma pessoa viu o oceano e alguém lhe pergunta: "Então, como é o oceano?" Ele abre a boca tanto quanto pode exclama:" Que vista imensa! Que ondas e sons" A descrição de Deus nos livros sagrados é como tal. Diz-se nos Vedas que Brahman é de natureza da beatitude - É Satchidananda. [Sat-Ser, Chit-Consciência, Ananda-Felicidade, palavra muito usada para meditação.]
Suka e outros sábios estiveram na margem deste oceano da Divindade. Viram-no e tocaram a água. Mas de acordo com uma escola de pensamento nunca mergulharam nele. Aqueles que o fazem não podem voltar ao mundo de novo.
Em samadhi [estado de intensificação energético-espiritual] uma pessoa atinge o Conhecimento de Brahman - uma pessoa realiza Brahman. Nesse estado o raciocínio pára completamente e a pessoa torna-se muda. Ele não tem o poder de descrever a natureza da Divindade.
Uma vez uma boneca de sal foi medir a profundidade do oceano (riem-se todo os que escutam Ramakrisna na satsanga). Queria contar às outras quão profunda
era a água. Mas isso ela nunca poderia fazer, pois assim que entrou na água dissolveu-se. Portanto, quem estava lá para relatar depois a profundidade do Oceano?
(...)
Os
rishis (sábios videntes) de antigamente atingiram o Conhecimento de Brahman. Não se pode alcançar esse estado enquanto houver o menor traço de mundanidade. Quão arduamente os rishis trabalhavam! De manhã cedo saíam do eremitério e passavam o dia inteiro na solidão, meditando em Deus [Brahman]. À noite voltavam ao eremitério e comiam algumas frutas e raízes. Mantinham as mentes isoladas dos objetos da visão, audição e tacto e das outras coisas do mundo material. Só assim eles realizaram Brahman como a sua própria consciência interna.
“Mas no Kaliyuga [a época actual segundo a ciclicidade tradicional indiana], o homem estando totalmente dependente da comida para viver, não pode libertar-se completamente da ideia de que é o corpo. Nesse estado mental, não é apropriado ele dizer: ‘Eu sou Ele’, Aham Asmi, [uma das grandes afirmações (mahavakyas) da realização espiritual].  Quando uma pessoa faz todo o tipo de trabalho mundano, não deve dizer ‘Eu sou Brahman’ [Aham Brahmasmi, outra das grandes afirmações, em que se medita]. Os que não podem desapegar-se das coisas do mundo, que não podem libertar-se do sentimento do ‘eu’, deveriam dizer: “Sou um servidor de Deus; Sou um seu devoto’. Pode-se também realizar Deus seguindo o caminho da devoção. [Bhakti, que Ramakrishna seguiu fortemente, além do caminho (marga) do conhecimento-visão, Vijnana]».

Que Sri Ramakrisna Paramahamsa nos inspire na realização espiritual e divina!

quinta-feira, 15 de fevereiro de 2024

Vida, morte e ressurreição, livre-arbítrio e predestinação. Arte de bem morrer e gestação do corpo espiritual.

                                                
A morte e a origem da V
ida e do Universo terão sido ao longo dos séculos da história da Terra humanizada os mistérios maiores enfrentados, pensados e investigados mas ainda hoje pouca gente tem ideias  relativamente claras e acertadas sobre eles, embora os que seguem religiões e tradições ou investigam filosófica e cientificamente tenham em geral algumas ideias e compreensões melhores, ou mesmo intuições felizes.
Para uns, pouco in
teressa o que possa vir a suceder no além, embora, quando lhes morrem pessoas queridas ou amigas, sofram e se interroguem, e das religiões recolhem ou aceitam alguma base explicativa  que serve mais para não terem que pensar num assunto algo desagradável, e adoptam uma crença vaga, quase como um anestesiante.

                                                                    

Outro seres, porém, desde cedo sentem o confronto com o mistério da morte, ora apenas apreensivos pela sorte de quem mais amam, e rezando por eles, ora questionando de frente o mistério, estudando-o, investigando-o, tanto dentro como nas margens ou fora das religiões, nomeadamente nas investigações psíquicas.
Outros deixam-se prender pelo rom
antismo da Morte libertadora e quase se apaixonam por ela, poetizando-a, cultuando-a, chamando-a, e por vezes ela não demora  muito a vir.  Sucedeu bastante no século XIX e começos do XX entre os poetas, mas ainda hoje há almas que se deixam atrair pela ideia da morte libertadora que o suicídio proporcionaria, quando é o contrário que colherão, dramaticamente.
Podemos admitir que alguns desses poetas e poetisas, dos quais temos mais testemunhos históricos, por vezes tinham já uma intuição interna do que de facto precocemente lhes iria chegar.
Na realidade, na tradição
das Letras portuguesa encontramos Camilo, António Nobre, Antero de Quental, António Fogaça, António Molarinho, Manuel Laranjeira, Florbela Espanca, Maria da Silva Vieira como alguns dos seres muito sensíveis e inteligentes que, na vida terrena, a partir de certa altura, se ligaram demasiado à Morte, desejada e libertadora, sob a qual soçobraram precocemente, e  podemos interrogar-nos se tais seres  tinham em si essa matriz (ou mesmo destino) demasiado viva ou próxima,  como se a sentissem dentro de si ou sobre eles, e em sensações psico-somáticas, sonhos, poemas e intuições surgisse mais fortemente, influenciando-os, atraindo-os.. 

Talvez o que Antero nos segredasse hoje...

 Não é fácil certamente, ao ser parte do mistério da morte e dos seus campos de força, discernirmos se há uma predestinação, se há um "destino que marca a hora", se "o casamento e a mortalha no céu se talha", e sabemos como ao longo dos séculos graves pensadores se afrontaram entre si, nomeadamente defendendo uns a predestinação, que proviria até da Divindade, e outros o livre arbítrio, nomeadamente na questão da salvação das almas.  Uma das mais importantes batalhas numa época de fractura no Ocidente, no começo do séc. XVI, foi a travada entre Lutero e Erasmo, o primeiro com o determinismo protestante, o segundo, com a responsabilidade criativa e livre da persona humana. E que escreveu também um sábio livro de preparação para a morte, e ascensão espiritual...

Parece-me que esta é a melhor linha de aceitarmos como base de investigação e confirmação, pois torna-nos responsáveis do que pensamos e fazemos e logo de irmos gerando uma vida mais ou menos higiénica, alegre, criativa, harmoniosa, benéfica e feliz, para nós e para os outros.
Todavia, sab
emos que, seja por hereditariedade, seja por acidentes externos, a morte pode irromper aparentemente inesperada e injusta, e por causalidades que frequentemente abstraem de razões pessoais e inserem tais mortes em karmas ou causas que abrangem várias pessoas, um local, ou mesmo os cidadãos de uma cidade ou país.
Duas linhas de força podemos talvez trazer à cola
ção: ora hereditariamente já estava programado geneticamente, embora mais tarde ou mais cedo, dependendo da vida, e então há a doença e morte, ora ela surge por causas exteriores, e a desatenção, o azar de se estar no local errado, o ataque por forças opostas ou de mal e o envolvimento em karmas familiares, grupais ou colectivos serão os responsáveis da precocidade do desenlace terreno.
Face a algumas pessoas que têm certas pr
emonições em relação a esses casos, podemos admitir que as suas almas conseguiram dar-se conta dos processos em curso conducentes à desincarnação,  ou então usufruíram de uma consciência acima da linearidade do tempo, ou mesmo tiveram acesso a uma dimensão mais elevada, quem sabe se a do eterno Presente Divino, que inclui toda a História, e nesse sentido entre nós o P. António de Vieira escreveu a sua utópica imaginação da História do Futuro. Mas a um nível mais seguro e modesto são muitos os casos das pessoas que anteveem a sua morte e talvez possamos admitir que é o espírito delas que passa alguma energia, imagem, informação ou abertura do olho espiritual, que lhes permite ver-antever a desincarnação próxima ou mesmo na data exacta.
                                          
Outras pessoas praticam uma antevisão da morte dentro duma arte de bem morre
r, a ars moriendi do Renascimento, ou seja, para se prepararem para a morte, e tentam-se ver mortos, sentir que o momento está quase a chegar e assim sentirem o eclodir das transformações necessárias, arrependimentos ou conversão, e sobretudo desprendimento, e assim compreenderem melhor o que deveriam ainda fazer antes de morrer, tal o congraçar-se com certas pessoas,  distribuir isto e aquilo,  publicar ou dar à luz, etc. Mas talvez o mais forte e profundo seja o provocarem um desdobramento, uma acuidade de auto-consciência, um choque iniciático interno, um maior discernimento do nosso verdadeiro ser espiritual e, identificados a ele, sabermos melhor partir desprendidos das transitoriedades e apêgos.
Convém saber que n
ão deveremos partir ainda agarrados a muitos desejos insatisfeitos, ou projectos,  e por isso a sabedoria iniciática recomendava não se desejar nem começar o que não se pode realizar, ou seja, devemos desenvolver uma certa comensurabilidade, estar bem conscientes no que deve avançar e realizar, e o que se deve evitar já que dispersará a pessoa e pode a morte vir com ela a meio e logo a alma voar para o além ainda dependente dessas energias emitidas e não realizadas...

Um dos objectivo fulcrais da meditação da morte é o de nos religar e identificar mais ao corpo espiritual, que sobrevive ao corpo físico, e que na maioria das pessoas é pouco ou nada sentido e desenvolvido, o que dificulta depois o despertar no além, atrasando as pessoas, mantendo-as em estados letárgicos ou limitados, em planos baixos astrais, passando a depender de outros espíritos o seu despertar e a sua ascensão a planos ou mundos subtis mais luminosos. Daí as razões e utilidades das orações, jaculatórias ("avança para a Luz divina", "Luz e amor, luz e amor para ti"), missas, promessas, ofertas sacrifícios, etc., pelas "almas penadas", como outrora se dizia ou, melhor, "alminhas", que de facto o são, ao não frutificaram em si mesmas, ao não terem crescido consciencialmente ou frutificado eticamente...
Saibamos então tornar a semente ou a pouca forma da nossa alma num corpo luminoso ou de glória, como outrora se dizia,vencendo instintos e medos da morte, mas também vivendo psiquicamente de modo a que quando ela chegar, estejamos com o corpo espiritual já desabrochado e pronto a deixar o corpo físico e avançar para os níveis mais elevados possíveis, algo que se procurou persistentemente realizar em vida, através da oração e meditação e daa vida justa, criativa, amorosa, abnegada e espiritual, na aspiração de religação maior nossa ao Bem e à Verdade, ao Espírito e à Divindade...