terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Cada ser é um livro, cada livro é um ser, e todos devemos contribuir criativamente para o grande Livro e Ser da Humanidade.

                                                

Cada livro é portador de certo número de informações, energias e ideias, e manifesta ou transmite ainda algo de quem o escreveu, dependendo do que ele mais é, incarna, deseja ou pensa bem como do nível, mais ou menos egóico, ignorante ou puro,  a partir do qual ele gerou as suas ideias, intenções e palavras, que se consubstanciam na alma e letra do livro.

Podemos também acrescentar o que cada ser é um livro, pois ao lermos um livro lemos também o seu autor, ou mesmo uma biblioteca quando ele leu ou escreveu muitos livros. 

Mas se somos escritores, também somos escritos por tudo o que percepcionamos, sentimos, pensamos, sonhamos e intuímos, pelo que devemos discernir com cuidado o que deixamos entrar pelos nossos sentidos e alma,  em especial tendo em conta a comunicação social actual tão baixa e manipulada, ou mesmo tanto livro atraente aparentemente mas oco ou danoso substancialmente.

É sobretudo a imersão televisiva e comentarística  que em geral gera a destruição das antenas e capacidades subtis do ser humano, inquina o seu interior, petrifica-o, coisifica-o, vulgariza-o, fá-lo perder o sentido de orientação, o poder de ter a fina ponta do seu discernimento apontado ao norte ou ter os pés assentes na terra, no ventre, na respiração profunda e natural e não na isolante e oprimida televisiva.

Todavia cada ser é um microcosmos, e no interior da sua alma  está subtilmente toda a natureza e os seus elementos, e se pouco disso nos aflora a não ser nos sonhos e imaginações, é  pela vida social e informativa dispersante e desagregadora, que nos faz perder ou enfraquecer  tanto a visão espiritual como o discernir da verdade e o sentir da unidade com o que vemos e contemplamos.

O trabalho espiritual  criativo, assente tanto na karmicidade ou causalidade, como na ético ou moralidade da nossa vida, visa alcançar a elevada qualidade e dignidade humana espiritual, e é um processo de religação entre o inconsciente, a auto-consciência, e a supra-consciência, esta podendo ser também denominada, numa certa abrangência geral ou de fundo, Luz, Alma do Mundo, Logos, e à qual temos acesso em ocasionais momentos mais iluminados ou agraciados

Nos melhores ou mais elevados seres e livros estão os que aceitam e demandam esta geografia interna e procuram unir os planos ou níveis mencionados, receber as suas intuições e iniciações, expor os seus princípios, apurar as verdades das lendas e dissipar ilusões e mistificações. Esta é a verdadeira escrita criativa, a que gera Luz, a que ilumina as almas, provinda dos bons seres e escritos excelentes, dentro da Ordem Divina do Universo e do seu pluridimensional campo unificado de energia, consciência, informação que perpassa, subjaz ou entretece tudo, ainda que bem subtilmente, quanticamente.

Saibamos pois  determinar-nos a sair da mediania manipulada ou zombificada, das narrativas oficiais  ou das dogmáticas, aprofundando certos assuntos ou certas capacidades da alma para que a nossa palavra oral e escrita possa contribuir para a melhor qualidade luminosa dos seres e da grande biblioteca da Humanidade, e portanto para a formação e transmissão de uma sabedoria perene dinâmica e activa, que as pessoas podem aplicar, viver e aprofundar no quotidiano sobrevivendo às infrahumanas tentativas de novas ordens mundiais ou outras fantasias e alienações exploradoras.

Sabe o que é o melhor da imunidade natural [fortalecida pela alimentação biológica e as ervas medicinais, a respiração consciente, os exercícios, a oração e meditação, a comunhão com a natureza, o amor e a gratidão, o silêncio e a luz] é que não mata [e proporciona realizar-nos mais plenamente...]

Que as páginas do teu diário, do teu livro e da tua aura psico-espiritual, quando caminhas pelas ruas, batido pelo vento e o sol, ou na natureza ouvindo as aves, desprendam palavras, mantras, ideais, energias e impulsões valiosas, e que elas possam impulsionar e inspirar as pessoas a despertar, a resistir, a fortificar-se e a religarem-se orgânica, espiritual e divinamente.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Uma carta do Prof. Manuel Ferreira Patrício, um espiritual, agradecendo o "Modo de Orar a Deus", de Erasmo. E a sua última entrevista, em vídeo.

Muita luz e amor na sua alma e coração espiritual!
Manuel Ferreira Patrício nasceu em Montargil, Portalegre, a 23 de Setembro de 1938. Licenciou-se em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa  em 1966.  Foi professor do Ensino Primário e do  Liceal até 1984, quando se doutorou em Ciências da Educação. Exerceu numerosas funções na Universidade de Évora até chegar a professor catedrático ( 1993 -2006) e a reitor (2002-2006).
Escreveu várias obras de Filosofia, Pedagogia, Educação, Música, e Cultura portuguesa, nomeadamente sobre Leonardo Coimbra e Fernando Pessoa, e deixou muita colaboração em jornais, actas e revistas, tendo fundado e dirigido algumas destas, para além de ter fundado um coro e ser um bom conhecedor de música e canto.
Encontrei-me com ele algumas vezes ao longo dos anos, e
m especial em exposições, colóquios e conferências, e em alguns dos meus diários anuais tenho registos de diálogos, que espero um dia transcrever.
Partiu pa
ra os mundos espirituais de Elvas 2021, com 82 anos. Uns meses antes, em Setembro de 2020, fui visitá-lo com a sua colega no Liceu Normal de Évora, e hoje também doutorada em arte pela Universidade de Évora com uma pioneira tese Percursos Têxteis em confronto, continuidade e roturas, Maria Dulce Santana a sua vasta casa ajardinada e com notável salão biblioteca, em Montargil, tendo gravado uma parte, fragmentada mas substancial,  do nosso diálogo, com confissões muito valiosas da sua espiritualidade, como pode ouvir no Youtube: https://youtu.be/cD11Ars02Nw 

                                   

«Montargil, 30 de Janeiro de 2009

Estimado Amigo:
Conforme me
tinha anunciado, recebi a semana passada o livro Modo de Orar a Deus, do nunca esquecido Desidério Erasmo. Agradeço-lhe a oferta.
Até agora, só havia
lido de Erasmo o Elogio da Loucura, editado entre nós pela [Editora] Guimarães do Francisco Cunha Leão. Só o facto de a presente obra vir enriquecer a estante erasmiana na língua portuguesa basta para tornar o seu aparecimento como acontecimento memorável.
Depois, Erasmo está
ligado a nós com alguma profundidade. Logo a seguir, através da sua amizade com Damião de Góis. Depois ainda, por via indirecta, através da sua amizade com Thomas More, em cuja UTOPIA estamos presentes explicitamente. Finalmente, para mim, através dos estudos longamente continuados de José Pina Martins, que culminaram há uns anos - tanto quanto me é dado saber - com a sua obra UTOPIA II, no meio do qual vejo palpitar o espírito crítico de Erasmo (e, como entende António Lopes [?], também o de [P. António]Vieira).
Mas esta obr
a tem um interesse excepcional, pois [é, (não decifrei..) ?] do Erasmo religioso. Ora, afinal, é muito mais religioso do que muitos dos seus intérpretes me têm dito e, de igual modo, muito menos ambíguo. Ao que me parece, evidentemente. Lembro-me neste caso de que a certa altura escreveu André Malraux, o autor da Condição Humana: " O homem do século XXI será religioso, ou não será". Eis como Erasmo, com a presente obra, chega a tempo, talvez, só com o atraso dos oito anos já passados [do século XXI]
Estou a ler a sua obra com todo o inte
resse. A edição agora publicada entre nós deve-lhe a si, só, muito. Pela participação na tradução, pela valiosa Introdução e, finalmente, decerto pela iniciativa de a publicar.
Por tudo queira receber o meu obrigado
O brev
e texto da carta das publicações Maitreya que acompanha a oferta da obra é de uma simpatia imensa para comigo. Não mereço uma palavra, evidentemente, mas gostava de a merecer. Mas assim fiz na vida até aqui: procurar, de facto, a verdade, a seriedade e o bem dos outros, tudo no horizonte do sentido da transcendência. Fiz, todavia, bem pouco. Cheguei, todavia, bem perto de aonde estou e bem longe de aonde está o que  [mais]  importa.
Muito obrigado pela simpatia com que m
e tenho sentido sempre acolhido por si. Essa simpatia é retribuída.
Peço-lhe, finalmente, que transm
ita os meus agradecimentos à Maitreya.
Um ab
raço do Manuel Patrício.»

 Realcemos para concluir, o ambiente tão simpático e pleno de amor que Manuel Ferreira Patrício transmite na relação de amizade comigo, as referências admiradoras de Erasmo e de José V. de Pina Martins, nosso comum e excelente amigo (e sob a sua égide nos encontramos uma ou duas vezes na Academia das Ciências) e, sobretudo, no que sentimos na carta quase como já o testamento da sua vida ética e espiritual, sobretudo agora que ele já partiu para o além: «procurar, de facto, a verdade, a seriedade e o bem dos outros, tudo no horizonte do sentido da transcendência. Fiz, todavia, bem pouco. Cheguei, todavia, bem perto de aonde estou e bem longe de aonde está o que  [mais]  importa.»  Que beleza de sabedoria humilde e profunda...

Enviemos pois as nossas orações e raios anímicos para Manuel Ferreira Patrício, desejando que vá estando agora cada vez mais próximo, no seu interior, da Divindade, "que é o que mais importa"....

                                   

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Poema da demanda da Divindade, inscrita na aspiração íntima. With english translation.

    

DEUS,
só ele
sabe plenamente

na luz 
sábia
e dinâmica

quem é.

 E nós,
nós somos o Ser
e o não-Ser
e, portanto,
ora somos
ora não somos,
mas aspiramos a ser
mais plenamente;
e eis as Religiões
e Espiritualidades.

A busca da entrada
na nossa intimidade
onde está a Divindade
é altamente valiosa
e harmonizadora,
em tudo e todos.

Eis o que inscrevemos
aqui e agora:
Aspira a que Deus
desça mais em ti,
nasça mais em ti!

Aum, Amen, Hum.

English translation:

GOD,
He alone
fully knows
in the light
wise
and dynamic
who is He.

 And we,
we are Being
and non-being
and therefore
sometimes we are
and sometimes we are not,
but we aspire to Be
more fully;
and these are the religions
and spiritualities.

The quest to enter
into our intimacy
where Divinity is
is highly valuable
and harmonising
in everything and everyone.

This is what we inscribe
here and now:
Aspire for God
to descend more in you,
to be born more in you!

Aum, Amen, Hum.

sábado, 3 de fevereiro de 2024

Metamorfoses da procura da palavra perdida, e da realização espiritual do Logos na Terra e em nós, vencendo-se as limitações ambientais, criativamente.

                                                      

Um texto batido à máquina há muitos anos e agora metamorfoseado, aprofundado....

 A recorrência do exterior está como que já dentro de nós, de modo a moldar-nos constantemente sob as formas e ideias ambientais, ainda que tal se passe bastante inconscientemente, já que não discernimos as ondulações energéticas emitidas por tudo o que existe ou nos rodeia, nem os impactos das subtis formas do pensamento, seja nossas, dos outros e nacionais, seja televisivas e digitais.
Mesmo quando fechamos os olhos, o espaço, o ambiente, as formas físicas e subtis, os sons e aromas que nos rodeiam impactam subtilmente sobre o nosso corpo psicofísico e na sua aura e emanações.
Ao fechá-los é mais fácil libertar-nos ou desinfluenciar-nos, mas outras formas e energias, as das ideias, sentimentos, memórias, habitam  e constituem-se no nosso ambiente interior. Em geral quem medita sabe por experiência própria que leva tempo e é preciso uma certa aspiração ou mesmo Graça espiritual para deixarmos de estar tão condicionados e atravessados pelas ondulações de pensamentos, desejos e preocupações e podermos entrar em momentos de maior silêncio ou de intensificação dum pensamento, oração, sentimento, imagem, que são estabilizadores e elevantes e,  finalmente,  recebermos bênçãos luminosas.
A escrita pode ser um exercício de catarse das formas ambientais físicas e psíquicas que nos influenciam ou que connosco habitam, pois ao escrevermos concentrados e com uma intencionalidade boa, faz-se ordem no nosso ser e ficamos mais abertos a intuições, associações de ideias, gerando plasticizações neuronais positivas. E não vamos sequer falar do que vem dos mundos subtis, do além, seja dos Anjos seja dos espíritos já partidos, ou das forças anímicas que eles deixaram no interland e que interagem por vezes connosco sob formas ou meios insuspeitados.
Foi por isso que resolvi ir mais fundo e tentar chegar ao grande Livro da Vida, em que todos entramos, e descobrir  a folha que me corresponde, e talvez compreender se o meu percurso e currículo de vida está próximo dele e, portanto, discernir se o que eu escrevo, faço, sinto, penso e sou na actualidade está certo, e não me lamentarei mais tarde de me ter desviado e não ter sabido moldar-me pelas formas correctas e luminosas,  de forma a conseguir reunir-me ou ligar-me com as energias mais apropriadas a todos os níveis que constituem a nossa multidimensionalidade numa orientação aperfeiçoante, plenificante.
Começa assim esta minha história e escrita e que é também a vossa, e que é, foi e será: a procura da autenticidade, de sermos nós próprios, a demanda da Luz espiritual e Divina e da verdade alegre interna.
Certamente que as palavras pensadas, faladas ou escritas não chegam, não chegam,  para traduzir ou explicitar níveis por tão ricos e subtis, tanto mais que não as conhecemos em si e nas suas energias, nem as que precisávamos mais de saber e usar, pois utilizamo-las frequentemente num nível superficial e rápido, entretecido ou contaminado com tanta palavra oca, distorcida, falsa, interesseira, negativa, manipuladora.
Também chegam tarde frequentemente as palavras, quando as ideias feitas e manipuladas são já irremovíveis, quando os mal entendidos já cavaram fundas ravinas entre as pessoas ou entre entre os povos e só por grandes esforços é que a palavra curadora sarará as feridas e estabelecerá as novas estradas de comunicação e conexão luminosa e libertadora.
Chegam tarde as palavras se foram pensadas ou intuídas e não as pronunciamos apropriadamente e acertadamente no tempo e espaço, entoação, ritmo e intenção. Assim, numa das legendas ou versões da tradição do santo Graal, mesmo quem consegue merecer ver passar a procissão com o santo vaso, se não sabe fazer a pergunta, não recebe a desvendação própria.
As palavras morrem
ao dar à costa, mesmo provindas do oceano animado de uma boa pessoa,  quando lidas ou ouvidas, não são bem acolhidas, assimiladas, aprofundadas ou aplicados, ou ainda porque não nos deixamos modelar e aprofundar com elas.
Por isso em  todas as tradições se valoriza muito o saber de cor algumas orações, litanias, poesias, frases e que podem ser dedilhadas sobre o corpo e alma sempre que necessitarmos ou nos parecer apropriado, para nós e pelos outros na terra e no céu.
Mas saber discernir as palavras mais justas, necessárias, próprias, que nos possam fazer despertar ou ver a nossa essência e missão não é fácil e leva sempre muito tempo, tal como qualquer grande, larga e poderosa árvore que liga o céu e a terra, pois estamos habitados por demasiadas palavras inúteis, superficiais, mecânicas, conflituosas e há pouco silêncio e transparência no nosso interior.
A maré dos nossos ouvidos e da nossa psique, senão praticamos o 
trabalho atento, o recolhimento, o silêncio, a meditação, a contemplação, a caminhada imersiva na natureza,  tem apenas uma baixa mar relativa quando adormecemos, e mesmo aí os sonhos e as interelações astrais também falam e influenciam, com pesadelos a poderem gerar-se.
O planeta, o sistema solar, a galáxia, o Universo enquanto Cosmos (que significa em grego "um todo belo e ordenado") tem uma linguagem, um Logos, sentido, inteligência, razão e sabermos descobrir, acolher e ler as palavras e as ideias, ou seja, a sua linguagem que dá sons e nomes às formas e energias é um desafio grande pela sua subtileza. Mas que nos atrai naturalmente, seja por sermos mais sensíveis ou poetas, seja porque todos ansiamos melhorar, saber mais, aperfeiçoar-nos, sermos mais plenos, embora frequentemente nos deixemos moldar, desviar ou prender por slogans, enganos, ilusões,
hábitos, auto-limitações, para não falarmos das infinitas manipulações dos meios de informação ou dos grupos políticos, religiosos e espirituais.
Embora seja imensa a beleza do Universo criamos tantas palas e obstáculos à sua visão e assimilação que nos tornamos quase que cegos, surdos e amnésicos face a essa linguagem subtil logóica da alma do mundo e da natureza e que tem como sua substância princípios, valores e ideias, originando nas formas a sua maior ou menor simetria, beleza, harmonia e transparência divina.
Na viagem da vida, o tempo e o espaço, com todos os seus conteúdos,  tendem a moldar-nos e limitar-nos e devemos por isso tentar transcende-los em criativas espirais de movimentos e paragens, ritmos e intensidades, procurando sincronizar a nossa percepção consciencial deles com os horizontes, os céus estrelados, as vastidões cósmicas ou mesmo o infinito divino, sem dúvida esta última uma meta muito elevada para conseguirmos mais de que uns vislumbres indirectos, ou então alguns minutos de transcendência de tais limitações, graças à ampliação da nossa consciencialização espaço-temporal, num estado de consciência mais expandido, e algo sensível ao infinito e perene.
Naturalmente deveremos  viver em comunhão com os elementos, seja o sol, a lua, o fogo, o vento, a terra, a chuva, mas também com os elementos psíquicos,
sabendo superá-los, e não nos deixando dominar pelas alegrias e  tristezas, dores e  prazeres, pois só assim somos livre em nós próprios e conscientes da interpenetração harmoniosa com a Ordem do Universo, com a evolução ou manifestação pluridimensional dos espíritos no Cosmos...
Assim vamos desenhando, gerando, fortalecendo um corpo subtil psico-espiritual, sobre a base do nosso melhor molde ou forma física. E com o livre-arbítrio ou a  liberdade pessoal harmónica com o coexistente ou ambiente natural e dos nossos deveres
(swadharma), e tal realização da potencial identidade espiritual em sincronia com ambiente vai dando os seus sinais e frutos de discernimento, conhecimento, justiça, coragem, independência, liberdade, amor, sabedoria.
Os arcanos celestes, os arquétipos, ideias e ideais da Humanidade espiritual, podem e devem ser realizados por vários caminhos, por vários meios, por várias formas, entrecruzando-se as palavras e as linhas que aspiram e sobem ao céu do inteligível e inefável, passando e fortalecendo-se nos centros subtis do coração, da garganta e da cabeça, e gerando  as palavras justas, as orações eficazes, as interrogações apropriadas, as decisões benéficas que  causam a clarificação, o descobrirmos e caminharmos melhor nas nossas ressonâncias, afinidades e linhas de ascensão,  gerando a descoberta e plenificação do nosso verdadeiro ser, som, nome. Ou seja, a mítica Palavra perdida, esquecida talvez ao descermos do alto e nascermos, para que então a paz e a claridade mental possam estabelecer-se, permitindo ao nosso eu consciencial essencial espiritual realizar-se e manifestar-se criativamente e, com alegria, amor, luz e conhecimento  comungar sábia e amorosamente da Unidade. Aum...

Pintura de Bô Yin Râ: Lux in Tenebris!

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

"Leonardo Coimbra. Testemunhos dos seus Contemporâneos", (3º): Cardoso Júnior, Faure de Rosa, Augusto Casimiro, Francisco Torrinha, Aarão de Lacerda e Damião de Peres.

O genial e corajoso Leonardo Coimbra nos anos vinte, já depois de ter sido ministro, contestado, da Instrução Pública, em 1919 e 1923.
No 26º contributo, para o livro Leonardo Coimbra, Testemunhos dos seus Contemporâneos, [Francisco José] Cardoso Júnior, nascido  a 14 de Junho de 1884, de família do Tabuaço, notável professor, jornalista e escritor (que chegou a director da Escola Normal do Porto  mas com o movimento militar do 28 de Maio foi logo demitido por ser um republicano democrata), em O meu Preito transmite e, por veras afinidades muito bem, a aspiração à Verdade que impulsionava e guiava Leonardo Coimbra,  e transcreveremos quando o caracteriza como professor e mestre, e abordagem à sua faceta mais contestada: a reforma da Universidade e do Ensino religioso, já que nos iluminam quanto à dimensão bem vasta e profunda da alma de Leonardo Coimbra, filho de um médico que morreu cedo, e que quis sempre continuar essa missão do pai no plano das almas, da filosofia, da ética, da espiritualidade:
O pai, o médico António Coimbra (1848-1901). Lux!
«Evoco sempre com estremecimento a memória de Leonardo Coimbra. Formosíssimo e luminoso espírito (com os defeitos e as virtudes peculiares de tantos homens eminentes), mereceu em  vida a minha admiração humilde, merece na imortalidade o meu preito sincero. Conheci-o nos belos tempos da propaganda da República, quando mal saíamos da adolescência; acompanhei-o na sua fulgurante actividade de tribuno e de professor; tive a honra de partilhar do seu convívio, sem embargo de estar distante de tantos dos seus discípulos na cátedra e no verdadeiro Jardim de Academo [em Atenas] que era a tertúlia em que ele professava naturalmente, ainda quando não tinha a pretensão de ensinar. Tal como Sócrates - e divergindo tantas vezes de Sócrates - Leonardo Coimbra comprazia-se em ensinar e discutir, nos encontros fortuitos da rua, nas deambulações com os alunos ou com os amigos, ora contrariando-os, ara animando-os, com perfeita bonomia lhaneza, como quem cumpre o mais simples e humano dos deveres.
Ensinar, transmitir a quem o esc
utava as doutrinas apreendidas rapidamente, mercê das suas prodigiosas faculdades de assimilação, o produto das suas elucubrações constantes, as dúvidas que agitavam o seu espírito cintilante e que o abrasavam tantas vezes - eram para ele uma necessidade imperativa. Aquilo que muitos julgariam versatilidade, inconstância, contradição em matéria, política e religiosa, ou filosófica - se é lícito separar alguma dessas modalidades da sua omnímoda actividade espiritual - era apenas o anseio vivo, tenaz, persistente e procurar, se não a verdade absoluta, aquela verdade que aos humanos é dado esperar atingir».
Depois desta excelente descrição da alma em
constante aspiração de realizar e partilhar a verdade, oiçamo-lo acerca das intervenções públicas mais criticadas: «Tão vasta e variada era a sua cultura, que tratava, sem preparação especial, os temas mais díspares com igual à vontade. Sim, pude ouvi-lo em reunião pública na crítica à reforma do ensino primário de Março de 1911, reforma que denominou uma obra de instinto, e na justificação da reforma da organização o ensino filosófico na Faculdade de Letras. E vem a propósito, para confirmar asserções anteriores, dizer que Aarão de Lacerda, então estudante de Coimbra, pertenceu ao número dos que o combateram, e foi depois escolhido para o corpo docente da Faculdade de Letras do Porto. A escolha desse corpo docente, feito em hora feliz por Leonardo Coimbra, testemunha a ausência de preocupações sectárias, de partidarismo político. E podemos acrescentar que a criação dessa Faculdade, donde saiu um verdadeiro escol, representa na vida de Leonardo Coimbra alto título de glória.
Quando um dia, que oxalá não tarde, essa Faculdade ressurgir, o seu espírito pairará nas suas aulas, e no átrio deve erguer-se o busto do egrégio fundador e patrono.
Quero, a
ntes de rematar as pobres palavras que dedico à memória do grande tribuno, recordar que foi a mim que Leonardo Coimbra recorreu para justificar a sua proposta de concessão de liberdade de ensino religioso nas escolas particulares. Partidário da escola neutra, consciente de que o lugar do ensino religioso pertence à família e às confissões respectivas, não hesitei em explicar publicamente o pensamento do ministro [Leonardo Coimbra], glosando a sua afirmação:"O livre pensamento é um método e não uma doutrina". Bem haja a memória de Mayer Garção  e de Louis Derouet, que acolheram as minhas palavras modestas, dando-lhes especial relevo na Manhã, não por mim, mas pelo prestígio do ministro, independentemente de ele ter ou não razão. O que teve foi coragem moral para arrostar com a oposição que a sua proposta, aliás inconstitucional, despertou.»

O 27º contributo, do escritor neo-realista, natural de Goa, e coronel Faure de Rosa (1912-1985), é certamente importante pois intitulando-o As experiências metapsíquicas  de Leonardo Coimbra, aborda-as baseando-se em dados transmitidos por Sant'anna Dionísio e nas quarenta páginas que Leonardo lhes  dedica na sua A Luta pela Imortalidade, transcrevendo este passo: «A primeira conquista da metapsicologia - escreve ele - é que os nossos conhecimentos não têm por única porta os sentidos normais. Vemos e ouvimos dentro de certos limites e normas. Essas normas são excedidas em certos indivíduos e condições, cujo determinismo está longe da nossa apreensão. É assim que se verificam casos de transmissão dum pensamento sem a sua expressão sensível. São por vezes, de ordem experimental, as mais das vezes são espontâneos.» E dá alguns exemplos, tal o o seu filho de quatro anos «uma noite estando ao meu lado deitado no meu braço e lendo eu um livro, ele pronunciou claramente a palavra "genie".» Surpreendido, verifiquei que tinha acabado de ler mentalmente a palavra genie». Leonardo narra mais casos de telepatia, por ele praticados, ou os que o jornalista Silva Passos e o romancista Sousa Costa lhe confessaram.
Faure de Rosa, praticante e teorizado
r do espiritismo, pensa que Leonardo não teve mais respostas dos espíritos que invocava com alguns médiuns seus alunos ou amigos, «um deles era amigo íntimo de Leonardo Coimbra e seu colega no professorado: o Dr. Ângelo Ribeiro [e já lhe dedicámos um texto no blogue], a quem Leonardo Coimbra apresenta como um temperamento dramatizante», porque Leonardo «não se acomodava com as indicações do Além; em vez de se deixar dirigir pelos conselhos dos desencarnados, era ele quem pretendia a direcção das indagações»,  e por essa teimosia pouco conseguira nas suas tentativas, embora numa delas comprovara-se mesmo, por misteriosa carta enviada por um médium a pedido dum espírito, para o professor Leonardo Coimbra, no Liceu Gil Vicente, os dados apresentados numa sessão espírita anterior. Leonardo, confrontado, com as dificuldades de explicação e criticando certos aspectos das sessões espíritas, mas sempre animado pela demanda da verdade, concluiria:«é sempre bom que a certeza não nos adormeça e, em pleno mistério, uma grande emoção nos erga dramáticos, assaltantes, pugnazes conquistadores da imortalidade.»

Jaime Cortesão, Augusto Casimiro e Leonardo Coimbra, nas vésperas de Augusto partir para a Flandres, na guerra contra a Alemanha imperialista, e onde corajosamente se cobriu de glória e condecorações...
O autor do 28º contributo, Para o In Memoriam de Leonardo Coimbra, Augusto Casimiro (1889-1967), natural de Amarante, foi um companheiro de Leonardo no movimento da Renascença Portuguesa, e da revista A Águia, e depois co-fundador da Seara Nova, cedo se destacando  pela sua sensibilidade e coragem, participando com Leonardo em comícios pela República e entrando nas batalhas na I grande Guerra, onde esteve com Jaime Cortesão (e foi amplamente condecorado), ambos vindo a descrever as suas vivências. Pelo seu democratismo republicano foi perseguido pelo regime de Salazar, demitido do Exército e desterrado de 1933 a 1936 para Cabo Verde, ironia do destino ele que tinha sido governador interino de Angola de 1923-1926. Mas nunca deixou de ser um opositor activo do regime salazarista e um prolífero escritor, até para sobreviver, deixando uma extensa obra histórica, literária, patriótica e memorialista. Neste contributo Augusto Casimiro descreve sumariamente a longa e fraterna amizade  de 1909 a 1926, e as múltiplas ocasiões em que colaboraram em comícios ou em revistas, narrando depois alguns episódios desses tempo agitados e emocionantes, "desse tempo de mais viva camaradagem". Começa-o assim: «Para mim, Leonardo foi, sobretudo, um grande orador. Dele evoco a lírica eloquência, a figura dominadora e bela no alor mais vivo dos seus discursos que ressoam ainda na minha memória com toda a sua música imperativa e viril. (...) Entre os seus amigos e admiradores fui talvez aquele em quem a amizade e a admiração mais frequentemente ousaram dizer-se na desassombrada confiança que discorda ou censura sem deixar de admirar e amar. O melhor prémio da minha ousadia vinha-me dele, sempre, com o silêncio confirmativo e cheio de consciência ou as palavras ricas de explicação fraterna que mais nos aproximavam, justificando-o.»

Dos dois episódios da genialidade da eloquência de Leonardo Coimbra, o último passado em 1916, quando Leonardo, Jaime Cortesão e ele propagandeavam a intervenção portuguesa na grande Guerra, numa Associação em Arroios, é quase comovente, pois depois de Augusto Casimiro ter falado e sido interpelado no fim, ainda que discretamente, por ter utilizado a palavra Deus, emocionado, sem saber ainda como responder, eis que Leonardo, tocou-lhe no braço e pediu-lhe para dar a resposta, irradiando o seu fogo espiritual numa intervenção genial, e na qual, ainda que alguns pudessem não o ter acompanhado, «nenhum deixou de aplaudi-lo com um arrebato que era um eco da sua ardente emoção.»

Anote-se que em 1916, na revista A Águia, Leonardo Coimbra escrevera umas linhas valiosas sobre A Primavera de Deus, o último livro então de Augusto Casimiro, onde a dado momento, após ter dito que «só é grande a palavra dita a sós, a conversa do homem com a própria alma», afirma:«O canto do Poeta começa no mais íntimo da própria alma, onde os amores, as aspirações, a fome de comunicar se concentram num ponto incandescente e indestrutível./ A alma do poeta é, então, um firmamento de eternos astros, um oceano de indissolúvel fundo./ Alguma coisa de certo e substancial se encontrou, e o Poeta vai subindo o canto, do Abismo à Altura. (...) O Poeta ergue o seu canto, o ar abriu-se à sua voz, o Espaço recebeu a forma do seu verbo; eis um acordo que o anima e sustenta», intuindo e exprimindo bem certas fases do processo criativo da Poesia...
                                                
O 28º contributo, de Francisco To
rrinha (1879-1955), natural de Joane, Famalicão, formado em Teologia, especialista de Latim, professor na Faculdade de Letras criada por Leonardo e ainda no liceu Rodrigues de Freitas até 1949, aí conheceu  Leonardo, que vinha com fama «de ateu, inimigo da sociedade constituída, um demolidor, a verdadeira pessoa do Anti-Cristo vindo ao mundo só para o mal» [no rodar da fortuna, o mesmo dizem hoje os milhazes  de Putin] (...) mas, depois, convivendo com ele, compreenderá que afinal «alma franca, generosa e leal, Leonardo Coimbra rejubilava com a alegria dos outros e enternecia-se com os sofrimentos e agruras alheias a tal ponto que se esquecia, por vezes, de si e dos seus para valer a amigos e até a desconhecidos não bafejados pela sorte. O seu ministro das Finanças - como ele dizia [e quem sabe se seria piada a Salazar], referindo-se à Esposa - o que o livrava de apuros, se a tempo conseguia arrecadar a receita dos seus honorários.[Pouco conhecidos estes aspectos domésticos, mas significativos].
«Perdulário do seu extraordinário talen
to, quer como professor quer como orador, o que lhe granjeou grande prestígio e renome, despendia naquele meio os frutos do seu saber, de mistura com críticas e apreciações, que lhe criaram inimizades e invejas e avolumaram o número de detractores que por todos os meios procuravam amesquinhar-lhe o mérito».
Concluirá confessando que durante
algum tempo, «por causa do espírito crítico e cáustico e da agressividade de temperamento que lhe eram atribuídas, não era sem constrangimento que eu fazia o interrogatório nos júris de exame a que ele assistia. Por fim tudo se dissipou e hoje só me resta uma saudade profunda desse grande Homem, que tão tragicamente desapareceu na pujança e fulgor do seu talento.»
                                                            
O 29º contributo é de
Aarão de Lacerda (1890-1947), escritor e professor, sobretudo de história de Arte, director da revista Dyonisios e nele, em duas breves páginas, transmite bastante do espiritual que era Leonardo, um mestre que passou fulgurante e até apedrejado entre nós. Conheceu-o no Porto dos comícios pela República, depois, «a par de Teixeira de Pascoaes e Jaime Cortesão, na sua magnífica cruzada da Renascença Portuguesa», vindo a ser em seguida chamado para ser professor no sonho efémero mas de tanta sabedoria e alegria esfuziante da Faculdade de Letras do Porto. Eis como Aarão de Lacerda começa as Duas Palavras de Saudade: «Na admiração ninguém excederá a que lhe devotei, desde há muito, do momento em que pela primeira vez o ouvi, e fui envolvido, levado pelo arrebatamento da sua palavra ardente, ungida de uma fé apostólica, como de alguém que espalhava um evangelho e procurava convencer, não pela violência, mas pela graça, o amor, os que acorriam a escutá-lo.
Nos estrados das
assembleias populares onde se pregava a República, em conferências, em discursos e orações tribunícias, Leonardo Coimbra apareceu sempre, não como orador vulgar das turbas, mas como um raro, um excepcional espírito que nunca se confunde, tal a maneira bela e levitante como falava, num estado de inspiração que sempre me deixava abismado, ante o milagre do verbo que ele próprio encarnava [um Christos, um ungido], num fenomenal desenvolvimento de ideias, avassalador e contagioso.
Cabeleira ao vento, laço à Lavallière, sempre v
estido de preto, no olhar um ígneo fulgor, tal foi o Leonardo que conheci em plenitude romântica, no rubro, generoso e puro instante histórico, no momento extraordinariamente belo da Propaganda.»
E terminará assim o seu belo contributo, convidando-nos a medita-lo, a acomp
anhá-lo: «A sua profunda confiança na continuidade da vida moral, permitia-lhe afirmar que o verdadeiro caminho de Deus é o da bondade.
Estou a ouvi-lo no seu sublime discurso sobre a Morte:
"- O que precisamos é saber destilar a podridão em beleza e frescura, como sabem as raízes transformar o pântano em jardim, alado e balsâmico aroma."
Assim vejo Leonardo, projectado já, muito alto, na luz astral, como ele decerto quer que o ergamos
[orando, visualizando]- "afastando a inconsciente e habitual imagem da morte, feita de horrores e acusações irreflectidas"»
                                                 
No 30º contributo, intitulado
A Ideia de Pátria na Obra de Leonardo Coimbra, o notável e fecundo historiador Damião Peres (1889-1976), que veio a ser também professor na Faculdade de Letras do Porto, partilha a ligação que Leonardo tinha desde criança com o Infinito como sua Pátria, e ainda a que ele com a Pátria Portuguesa expressou constante, intensa e genialmente, num grande o seu amor, dando disso exemplos. Oiçamo-lo:«Leonardo Coimbra, filósofo e pensador, foi também um poético espírito inebriado de Infinito - inebriamento que, ou em absoluta substantivação ou adjectivamente, iluminou, avassalador as páginas dos seus livros. Antes, porém, que o Eterno e o Ilimitado nelas surgissem sob raciocinada forma, já essas noções tinham nimbado, em mimoso devaneio, a juvenilidade de Leonardo Coimbra.»
Depois de transcrever as confis
sões de Leonardo sobre os seus primeiros contactos com o Mistério do Infinito, realça do livro a Luta pela Imortalidade "as conclusões optimistas sobre o mundo como sociedade de seres espirituais imperecíveis"; e em seguida que «o homem, consciência no Infinito, é cidadão na sua Pátria" ou ainda que "as fronteiras dum país não são os estagnados marcos convencionais, mas sim a linha onde morre a palavra maternal". Concluirá o seu preito com bastante subtileza anímica:
«Em hor
a de mais funda emoção patriótica essa espiritualidade ditava-lhe expressões de inusitada profundidade. Assim, ao encerrar o seu primoroso discurso de 1920, comemorativo do dia de Camões, Leonardo Coimbra, enternecidamente dominado pela imagem duma Pátria agradecida aos seus leais servidores - a Pátria portuguesa [e nós diríamos, o Génio ou Arcanjo de Portugal] - rematou, exclamando: "No Infinito, radiosa e feliz, a Pátria há-de sorrir!"»

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Conto espiritual: Dos eremitas solitários e dos seres unidos amorosamente.

  Escrito em Junho de 1998 e melhorado e finalizado em 1-II-2024.

Fora um eremita no mundo, embora pouca gente se desse conta pois  nada exteriormente o denunciava; mas  era-o interiormente na  forte valorização da religação espiritual e porque a vida social estava reduzida ao mínimo necessário e justo e pouco o afectava ou influenciava. O mais importante para si era mesmo o sentir interior, a liberdade de pensamento, as suas leituras e escritas, práticas e orações, meditações e contemplações, e o ajudar natural.
O
azul do céu não era só o atmosférico que apreciava pois também interiormente o recebia, com gratidão, nas suas meditações, e aprendera ainda a unir-se  com o verde das árvores e arbustos, o cinzento dos penedos de granito e o castanho da terra humilde e discreta que amava e com a qual se envolvia periodicamente em subidas e nascer do sol, peregrinações e comunhões nas faldas do Marão, da Estrela e do Gerês.

                                        

Cavara terras, ensinara almas, apontara caminhos, rasgara regos, semeara palavras e ideias e abrira sulcos para o céu. Mas as contas subitamente saíram-lhe ao contrário pois quando menos esperava um anjo sob a forma humana viera-lhe ao encontro e a sua vida solitária parecia estar terminada
Diga-se pois que o anjo era uma mulher, com todas as suas características femininas e pessoais e portanto não já era apenas inspiração ou subtil visão a agraciarem-no e a conviverem com ele mas um outro corpo, personalidade, alma e espírito.
Lentamente teve de aprender a deixar-se ser beijado, tal como as dunas pelo vento e a responder na mesma linguagem. E as partículas de areia que voavam e se depositavam na praia eram como as palavras doces que transmitia ou no seu peito se aninhavam e iam alterando a sua paisagem anímica, agora mais horizontal e humanizada.
Natural da província a viver em Lisboa não era, mas um sonho tinha ainda, o de regressar à terra, à pureza primordial na qual o humano encontra, e está mais sensível, os sinais divinos na harmonias da Natureza. Mas dizia-lhe ela que o trabalho a dois era o mais importante e que o cultivar a terra absorveria muito do tempo necessário para o que eles deveriam desenvolver...
Por vezes um espaço entre os dois abria-se ou criava-se, ora evaporado nos abraços de grande fusão e em que os êxtases do coração podiam surgir, ora algo alargado nos encontros com outras pessoas, que assim entravam de algum modo na relação espiritual, afectiva e unitiva, ora beneficiando do ambiente ora ondulando-o.
Era evidente que a fluidez dos sentidos e sentimentos se erguia forte sobre os escombros das antigas regras solitárias, dos ermos, dos conceitos, das orações. E quando tal comunicação amorosa irrompia mais, gerava-se o desvio das energias ascendentes em direcção ao corpo e alma femininos, o que provocava uma diminuição da consciência meditativa e adorativa ascética metódica e regular, como estava habituado quando vivia sozinho.
Era o tempo de leitura a diminuir, era uma estranha dualidade entre a liberdade e a unidade, entre o solitário e a companhia, com a necessária co-responsabilidade a vigorar mais.
Paulatinamente, ao estilo do final de uma audiência, algumas pessoas das mais amigas e amadas retiravam-se perante a associação nova e tão absorvente e o minguar comunicativo do amor, agora partilhado sobretudo na amiga e amada, o que gerava uma certa frustração, embora aceite como uma poda da distribuição da seiva no tronco da vide.
As forças naturais comunicativas das realizações e riquezas anímicas desenvolvidas ou ganhas eram assim limitadas, sacrificadas. Era como se o arquétipo da união das águas do amar e do mar, das costas e dos litorais, dos montes e dos vales, da terra e das estrelas do céu, se concentrasse só num homem e numa mulher, a sós, quando outros também deveriam entrar nessa obra alquímica mais directamente, embora certamente algo emanava deles para as outras pessoas, mesmo quando estavam dias e dias sem ver ninguém.
Despontavam, assim, algumas interrogações dos subtis sonhos que se erguiam e duma certa insatisfação interior que se formava. Provinha ela contudo de quem? De si mesmo ou da sua personalidade, ou realmente porque outra era sua natureza e missão, e logo afectividade?
Rasgar este interrogador dilema, afastar as nuvens que como um véu cobriam o sol tornava-se imperioso, e assim teria de discernir se estava unificado no que sentia e queria, ou se era apenas um campo de luta de múltiplos desejos e aspirações. compreender e assumir se o mais importante era o despertar e ser espiritual, ou o amar, o estar e relacionar-se amorosamente. Era um ponto quente, ainda não bem assente, controverso: egoísmo e eremitismo ou dádiva e partilha, uma unidade a dois?
Todavia, assim como as páginas do livro ou do breviário se podem tornar cansativas ou repetitivas, assim a relação adquiria alguns desses aspectos criadores de insuspeitadas frustações ou limitações: a obrigação de amar, a culpabilização de não amar tanto, uma aspiração universal geral mais do que particularizada do amor.
Diz-se que a paz só chega após o sofrimento. Ou que os olhos só se cerram quando verdadeiramente cansados. Ou que é preciso morrer para renascer. Caía a noite e cada um regressava a si mesmo após as escritas, meditações e uniões realizadas mais ou menos plenamente.
Sobre a alma passavam as questões e tensões e o futuro era como um mistério fechado ou dificílimo de se abrir ou ver claramente. Só podia orar para ser inspirado, fechar os olhos e entrar no mundo subtil, movimentado e enigmático dos sonhos, onde entramos todas as noites sem nunca sabermos até onde iremos e que indicações ou intuições acolheremos.
Foi então que acordou e viu que tudo fora um sonho, e ali estava ele sozinho na sua mansarda lisboeta, com as andorinhas a chilrearem e a pedirem-lhe que lhes assobiasse, que com elas comunicasse com simpatia ou alegria. Calmamente, alinhou o corpo e alma, fez umas breves orações e, após ter-se espreguiçado, levantou-se do seu leito, e orou na posição do pentagrama e invocando as bênçãos do Alto e do íntimo: «Irradiarei mais o fogo do Amor, olharei o futuro com optimismo, unir-me-ei com o espírito ígneo que é a minha essência, que eu sou,  comungarei com os seres no Dharma ou Dever-Ordem que nos compete pelo Bem da Humanidade e a religação maior à Divindade.» E após meditar-orar, avançou pela aurora e novo dia a dentro...

quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Leonardo Coimbra, Testemunhos dos seus Contemporâneos: Santos Graça, Paulo de Castro (Francisco de Barros Capachuz), Álvaro Ribeiro, Eduardo Dias Ribeiro Padrão e Manuel Couto Viana.

Nos Testemunhos dos seus Contemporâneos, de Leonardo Coimbra, após o  contributo de Eudoro de Sousa encontramos o 21º, de António dos Santos Graça (1882-1956), um notável etnógrafo e jornalista poveiro, intitulado Leonardo Coimbra, professor do Liceu da Pova do Varzim, que narra essa fase da vida de Leonardo, de 1912 a 1913, com  pormenores emocionantes e que bem patenteiam a força anímica luminosa do grande orador e pedagogo. Foi o caso de ao ser nomeado para professor do liceu, o que gerou receios dos mais conservadores, entre os quais o médico Caetano de Oliveira, que pedira a Santos Graça que tentasse evitar a entrada desse perigoso "anarquista e destruidor de crenças" no meio calminho ou conservador da Póvoa. Nada de mais ilusória tal fama e a breve trecho Leonardo tornara-se querido de toda a gens poveira, sobretudo após um discurso no Teatro Garrett, com fins de beneficência, em que «a cada momento a plateia levantava-se num aplauso entusiástico, jamais visto na terra.»
Dirá
ainda este notável etnógrafo dos barcos (e sua simbólica) e  pescadores da Póvoa do Varzim: «Como professor, teve sempre a estima e a mais alta consideração pelos alunos. A Bondade era uma das pautas do seu carácter e onde se mostrava realmente uma pessoa  superior. O cuidado pelos humildes e desvalidos enchia-lhe a alma. (...) Era, sem dúvida, um amigo dedicado ao seu amigo. Alma aberta e leal, que ao abandonar a nossa terra deixou em todos nós, em cada poveiro, um amigo que muito lhe queria.
Não admira, pois, que a sua morte dramáti
ca e brutal caísse nessa terra poveira como um raio que fulminou os nossos corações, já cheios de saudade pelo Mestre querido da nossa juventude.»

O 22º contributo, enviado de S. Paulo, em Junho de 1948, do jornalista Paulo de Castro, pseudónimo de Francisco de Barros Capachuz (1911-1993), notável democrata e lutador anti-fascista em Portugal e no estrangeiro, preso e deportado por mais de uma vez, e exilado no Brasil desde 1946,  sob o título de Evocação, consegue fazer sentir a genialidade   desafiante, desconcertante e trágica de Leonardo. Todo o artigo é valioso, e é com dificuldade que seleccionamos: «(...) Ia caminhando até à avenida dos Aliados, depois até um café onde ficava na companhia de seus alunos e alguns operários, vindos para o interrogar, contrariar ou agradecer um pouco da espiritualidade que se desprendia do seu diálogo ágil e encantador.
Leonardo Coimbra foi um desses homens a quem vulgarmente se chama de temperamento trágico. Ele imprimia a tudo o que o rodeava um sentido de transcendente inquietação, de nervosismo visceral, de pânico metafísico. Foi como Antero, um homem de tipo faustico, mas enquanto o primeiro conseguiu atingir uma serenidade aparente ou real e certa inteligibilidade convivente e especulativa, Leonardo Coimbra foi durante toda a vida um homem desconcertante e perturbador, um caso específico de inclassificação do ponto de vista humano e até filosófico (Nota: Numa página admirável da Luta pela Imortalidade, ele responde indirectamente aos que o acusavam de bergsonista).
O mais competente dos seus biógrafos, Sant'Anna Dionísio, descreve-o como homem alternadamente idílico e agitado, por certos ângulos amorável, por outros, satânico, em certos momentos tocado de angústia religiosa, em outros impelido por desalinhos arbitrários, ora místico, ora naturalista - e possuindo apenas esta característica constante: a curiosidade de saber.
Uma outra constante de seue spírito que impora pôr e relevo, se o quiseremos considerar na sua totalidade, é o amor entranhado, diríamos quase totémico, ao círculo da sua afectividade, compreendendo a família, os amigos e os discípulos. (...)
Leonardo Coimbra não era um homem de adesão definitiva a nada, exceptuando o seu mundo afectivo. O discurso que pronunciou no teatro S. Carlos em que fora previamente entendido que seria de adesão, quase finalizou em escândalo, pois, ao atacar o bolcehvismo, como sistema totalitário, ele atacou igualmente o nazismo e o fascismo e todas as formas e pretextos de esmagamento da pessoa humana. Terminou citando uma profecia de Gogol tão surpreendentemente herética para um auditório tão ortodoxo, que o público emudeceu de espanto.
Assim foi Leonardo Coimbra até ao fim, um semeador de perplexidades, um catalizador de cultura, um homem seduzido pela multiplicidade dos caminhos mais propícios à problemática do que à conclusão.
Longe de nós esboçá-lo como um cidadão exemplar à maneira de Antero ou de Raul Proença (...) Em Leonardo Coimbra há também humildade, quando longe de tudo o que lhe inspirava intuito de combate tinha momentos de elevada compreensão, de afectividade, de lirismo e de veemente exortação às melhores virtualidades humanas.»
 O testemunho de Paulo de Castro, que vale ainda por ser o de um anti-fascista que admirava muito Leonardo, foi concluído assim: «Mesmo quando a nossa interpretação seja diferente da sua, há uma essência que nos transmitiu, e que conservaremos como mensagem de um dos espíritos mais complexos, brilhantes e inquietos que nos foram dado a conhecer». S. Paulo (Brasil) Junho de 1948.

Já o 23º é um  profundo estudo acerca de Leonardo Coimbra e a política do seu tempo, já que a autoria é de um dos seus principais discípulos, Álvaro Ribeiro (1905-1981) e que, embora portuense, por Lisboa impulsionaria a chamada Escola da Filosofia Portuguesa, congraçando à sua volta a segunda geração de admiradores e estudiosos de Leonardo e que muito escreveriam posteriormente. Traça a evolução social e psico-filosófica, desde os tempos em que o estudante Leonardo Coimbra aparecia nos comícios a fazer discursos incompreensíveis, de corpo varonil, gravata à Lavalliere, «um revolucionário do grupo mais temível, proferindo tolstoianas palavras de esperança e amor», e narra como, já bastante depois da proclamação da República, em que passara de anarca ("os avançados") a republicano, alguém o acusara, num comício eleitoral em que ele criticara os extremismos, de já ter sido anarquista,  Leonardo replicara magnificamente: «- Sim, senhor. Também mamei, também gatinhei, mas, palavra de honra, não fiquei toda a vida a andar a quatro patas. E agora que tenho os braços livres para os erguer em prece, dou graças a Deus por me ter feito à sua imagem e semelhança».
Perante a crise ideológica da I República, com os políticos incapazes em aplicar os princípios e programas, Leonardo expõe e desenvolve «uma doutrina democratista, um pensamento político original e autónomo, que inteiramente se distingue do republicanismo dos seus contemporâneos e compartidários. Raras vezes se prestou a devida justiça à iniciativa isolada deste doutrinador».
Comentando a passagem "rápida e fulgurante" de Leonardo como ministro da Instrução Publica em 1919 e 1923, e a sua luta contra todas as forças da oposição, o que gerou a Questão Universitária e «que proferisse na Câmara de Deputados a sua obra prima de eloquência parlamentar» considera, e é sempre uma lição para nós este "morrer para renascer", que «Leonardo Coimbra perdeu a questão universitária. Nem a Faculdade de Letras foi transferida de Coimbra para o Porto, nem foi dada execução à reforma de estudos filosóficos. A cidade do Porto, berço do Infante D. Henrique, obteve, porém, um benefício para a sua Universidade: a existência de uma Faculdade de Letras, de que Leonardo Coimbra foi mestre, ou melhor, grão mestre. Leonardo Coimbra teve de passar pelo ministério para chegar ao magistério, e para reconhecer que a escala de valores consentida pelos políticos seus contemporâneos estava na razão inversa da ordem tradicional.»
Aluno directo de Leonardo, Álvaro Ribeiro saberá descrever bem a originalidade do funcionamento da Faculdade de Letras e o magistério de Leonardo. E embora não mencionando os aspectos tão valiosos da sua doutrinação juvenil anarquista, fraternalista, republicana, espiritualista, que se manifestaram em tantos artigos na Nova Silva e na A Águia, sem dúvida que o resumirá bem, ainda que com algum acanhamento da sua universalidade, no último parágrafo da sua comunicação:
«A experiência política de Leonardo que fim do pessimismo anarquista ao misticismo cristão, mediante um democratismo original e singular, não seguiu uma carreira rectilínea, desenhada pela vontade estóica na cidade cosmopolita e geométrica; mais se assemelha a uma curva descrita pela ansiosa procura da equação entre o amor humano e o amor divino. Na ordem da eticidade, todos os actos políticos de Leonardo Coimbra exprimem a mais elevada intenção do filósofo, sem quebra de coerência, sem mancha de oportunismos, embora numa linha de públicos insucessos e de privados desgostos.»

Leonardo Coimbra,  por Eduardo Malta. Pintura que era de Sant'Anna Dionísio.

Do 24º contributo, Duas palavras simples, memórias dum seu aluno num trimestre no liceu da Póvoa de Varzim, no ano de 1913, o poveiro professor primário Eduardo Dias Ribeiro Padrão, e que desencarnou em 1956, destacaremos a bem realista fotografia de Leonardo em acção:  «Era Leonardo Coimbra uma figura simpática e risonha. Todos nós gostávamos dele e das lições que nos dava.
Sempre que ele realizava conferências, a sua eloquência arrebatava o público que acorria para o ouvir. As mulheres, sobretudo, comoviam-se com a sua palavra ardente, sempre tocada da mais pura poesia. Era para elas um ídolo.
Tive uma irmã (com que saudades a evoco!) que algumas vezes o ouviu; e entusiasmava-se, - mais do que por isso, transfigurava-se - quando se referia a este Homem extraordinário que possuía o dom da palavra, sempre eloquente, substancial e burilada no melhor ouro da língua portuguesa. (...) Ficou-me sempre gravada no espírito a sua figura inconfundível, em cujo todo se adivinhavam as crepitações do génio. (...) Morreu como um justo. Aproximando-se de Deus, na hora imprevisível do seu trágico fim, mais se engrandeceu aos nossos olhos. Até nisso foi grande e dramática a sua existência».

Leonardo Coimbra pouco antes de partir para os mundos espirituais, precocemente e por isso deixando alguma perturbação e saudade nos seus amigos mais próximos.

O testemunho 25º é do Manuel Couto Viana, e intitula-se Já lá vão quarenta anos, e narra o impacto e influência exercidos por Leonardo Coimbra num grupo de estudantes e amigos, que s e reuniam no café Central, na praça D. Pedro IV, no Porto,   pois ele  «aparecia frequentemente lá, discutindo e persuadindo com o seu verbo fácil e profundo, atraindo pela simpatia pessoal que de si irradiava e pela bondade com que acolhia todos os que dele se aproximavam (...) Trazíamos debaixo do braço, a alardear cultura, A Força e a Matéria, de Büchner, e A Origem das Espécies [de Darwin], mas não tínhamos coragem nem pachorra para demorar os olhos no recheio dessa e doutras brochuras, compradas no Lelo, onde amiudadamente entravamos a vasculhar os escaparates. Líamos sim, avidamente Hugo, Zola, Tolstoi, Gorki e creio que já nessa altura Dostoievski, cujos dramas sociais, por eles tratados nos seus romances, nos emocionavam até às lágrimas e geravam em nós a maior revolta contra a sociedade burguesa.» Narra ainda o grupo Os Amigos do A.B.C, que «tratava de iniciar operários no conhecimento das primeiras letras e de lhes formar o cérebro na doutrina anarquista - então familiarmente designada, entre nós, pela palavra "Ideia"», quem sabe com que forças ligadas ao ideário e poética de Antero de Quental. Mas explicará:«Não éramos contudo, apologistas da acção directa, porque o não era também Leonardo Coimbra. Nunca ouvimos da sua boca uma palavra de incitamento à violência ou uma expressão de ódio. Nas conferências em que combatia o Positivismo, contra o qual vigorosamente se insurgia, nunca ouvi Leonardo Coimbra descer à injúria ou ao ataque pessoal. Tudo tratava no campo elevado das ideias, apesar da sua obsessão, que era, por essa altura, a de arrazar o credo positivista (...)
O certo é que no Porto univer
sitário dessa época, de febris preocupações políticas, avultava a sua figura, a despeito dos que o detestavam ou malsinavam - sem se atreverem a enfrentá-lo ou a medir com ele forças no plano da cultura. Leonardo Coimbra era efectivamente já alguém por essa altura de 1908», ou seja, no fulgor dos seus 25 anos.