segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Daria Dugina: Juliano imperador e os princípios solares e do neoplatonismo aplicados na política. Tradução, com breves biografias dela e do imperador filósofo Juliano, por Pedro Teixeira da Mota.

 Uma das mortes mais trágicas para a Humanidade ocorrida nos últimos anos foi certamente a de Darya Aleksandrovna Dugina (Moscovo 15 de Dezembro de 1992 – Moscovo Oblast, 20 de Agosto de 2022), já que tanto se esperava dela após os seus juvenis frutos ou valiosas primícias de uma intermediarização entre a sabedoria perene da Antiguidade e  a actualidade post-modernista, e de uma luta contral o caos de valores e significados, derivado do individualismo excessivo e anti-ético,  do neo-liberalismo opressivo globalista da elite ocidental e do excepcionalismo norte-americano e seu infinito dólar corruptor, controladores dos principais meios de informação,  e logo das mentes e almas de muitos. Anote-se  a mentalidade e atitude sinistra da administração norte-americana que em Março de 2022 incluíra Daria Dugina  na lista das pessoas embargadas ou sob sanções.
                                          
Brilhante jovem filósofa, filh
a de uma professora de filosofia, Natalia Melentyeva, e de Aleksander Dugin, um dos grandes filósofos do Logos na história humana, nomeadamente como autor da Noomachia, em vinte e quatro volumes, considerado um dos melhores teorizadores da civilização Euroasiática e da Tradição Perene, sobretudo ao nível dos paradigmas e da geoestratégia mundial, Daria Dugina Platonova, que estudara na Rússia e na França,  gerara já  valiosos ensaios, para além de numerosos discursos e conferências, nos quais a sua visão tradicional e profunda do ser humano livre e da actualidade do platonismo  e do neoplatonismo numa humanidade multipolar e assente em princípios, governantes e companheiros justos e solares, face às sombras da post-modernidade em que nos encontramos, e que ela confrontou (por exemplo na crítica a Gilles Deleuze e seus seguidores),  abriu  sulcos luminosos para o alto e em torno das almas que a ouviam e  viam, liam e tocavam.
                                      
O assassinato perp
etrado por uma cobarde agente dos serviços secretos ucranianos, a diabólica Natalia Vovk, ceifou uma vida que estava grávida do muito que poderia contribuir para a melhoria da Humanidade. Caberá a alguns de nós mantê-la viva na Terra e no mundo filosófico e político, inspirados pela seu espírito corajoso, agora nos mundos espirituais.
                                                                           
A condecoração que a sua mátria
e santa Rússia lhe atribui, ou mesmo a gratidão que muita gente e em especial alguns dos seus admiradores e amigos lhe testemunharam e sentem, serão pouco para o muito que ela merecia.
                                                    
É sobretudo na leitura, reflexã
o e partilha dos princípios, ideias e sentimentos contidos nos seus textos e livros, que começam a ser mais publicados, traduzidos e divulgados hoje, que a podemos comungar, revivificar e continuar.
                                    
Vamos poder ler em seguida o ensaio de Daria Dugina Platonova sobre as aplicações políticas da filosofia neoplatónica pelo imperador romano Juliano, um místico pagã
o e solar que entre nós teve em Fernando Pessoa um seu admirador, o qual, na época da revista Orfeu e nos anos seguintes, teorizou o Paganismo e  a sua ressurgência, fundando (teoricamente) um Concílio Pagão e um Conselho Magistral do Neopaganismo Portuguêsafirmando a sua grande afinidade com o tal tipo de mística mitraica, ocultista e teosófica, escrevendo que «mais do que, propriamente, o dos neoplatónicos é meu o paganismo sincrético de Juliano Apóstata» e chegando a admitir mesmo ser uma sua reincarnação, restando-nos  de tal admiração e especulações alguns fragmentos poéticos, filosóficos e ocultistas de valor. Certamente apreciaria muito este texto profundo e esclarecedor de Daria Dugina,  que alargaria a sua visão sobre Juliano, o paganismo, o neoplatonismo,e a metafísica da realeza, do império, ou da soberania solar, logóica.

O Imperador Juliano, que sofrera  o assassinato do seu pai e os seus irmãos mais velhos quando tinha seis anos, nas lutas de sucessão do Império, e vivia em Constantinopla, onde nascera em 331, veio a tornar-se, depois dum trajecto vasto que o levou a contactar e a aprender com vários seres importantes em sucessivos locais, um valioso investigador da filosofia  e da espiritualidade, desenvolvendo e aprofundando  o neoplatonismo e o culto do deus do Sol, Hélio, para ele e os neoplatónicos considerado uma hipóstase, ou avatarização do Logos a Inteligência-Razão Divina no Cosmos ao nível humano. 
Após esse período de estudos, meditações e práticas espirituais, em que sentiu mais de uma vez os influxos espirituais e divinos, entrou numa nova fase da sua missão, quando o seu tio o nomeou  em 355 César, ou seja vice-Imperador, na zona da Gália e Germânia onde, após uma curta preparação de estratégia e de melhoria do latim, já que falava grego, e graças as suas virtudes austeras e resistentes, obteve triunfos estratégicos e heroicos em várias campanhas, além de uma melhoria notável da administração, pelo que, apesar de todas as calúnias e conspirações, veio a ser nomeado  à hora da morte pelo seu tio e imperador Constâncio II como o seu sucessor.
Exerceu tal função soberana  entre 361 e 363 com grande integralidade e universalidade, ou seja, nos três mundos metafisico, psíquico e material, exaltando e aplicando os valores civilizacionais tão evoluídos do Helenismo, embora religiosamente, face ao Cristianismo (tolerado desde 311) e à sua pressão crescente e destruidora do Paganismo, que se encontrava bastante dividido e não unificado,  apoiasse e desenvolvesse mais as letras, a moral antiga e  sobretudo os cultos tradicionais greco-romanos, nomeadamente o da Deusa Mãe de todos os deuses, Cibele, a Grande Mãe, a quem dedicou com grande entusiasmo hinos, e o de Atena, a quem se refere na sua carta aos Atenienses como sua protectora efectiva, através dos seus daimons, anjos ou espíritos celestiais: «Ela guiou-me em toda a parte, e rodeou-me por todos os lados dos anjos ou espíritos guardiões que o Sol e Lua lhe atribuem».
Acima ainda estava o culto do Sol, Hélio, pois era a linhagem espiritual em que Juliano se sentia,  sobretudo depois de aprender na escola neoplatónica de Pérgamo com dois discípulos do famoso Jâmblico, Prisco e Máximo de Éfeso, e depois ao ser iniciado em 351 nos mistérios do Mitraísmo,  os quais com o culto solar e ígneo de Mitra-Sol e os valores fraternos e de disciplina na batalha entre a Luz e as trevas se tornaram decisivos para que a civilização romana e os seus exércitos se robustecessem e resistissem mais tempo tanto à pressão envolvente dos povos não romanizados como à do Cristianismo, com as suas qualidades e defeitos, o qual Juliano restringiu e não apoiou, de tal modo que veio a ser chamado pelos historiadores cristãos de Juliano, o Apóstata, já que renunciara ao baptismo no credo cristão ariano a que fora obrigado em criança, "apostasia" que historiadores ou apolegistas  não podiam ou não quiseram compreender como condição para a sua tentativa de preservar na fase final do paganismo do Estado romano a tradição duma Teologia Antiga inspirada, de uma Filosofia Perene que a comentava e de uma Ética viva, e que mesmo assim foi em parte assimilada pela nova religião.
                                                           
Daria Platonova Dugina no seu ensaio realça v
ários aspectos importantes do pensamento tradicional metafísico de Juliano e logo da sua aplicação e clarifica as perspectivas e julgamentos que se podem gerar sobre a sua vida e obra, nomeadamente na sua intencionalidade e verticalidade, religiosidade e metafisica. Certamente que se poderia acrescentar muitíssimo ao que escrevemos sobre esta fascinante personalidade, que deixou várias obras poéticas e de epistolografia, além de religião e política, e veio a morrer fatalmente cedo, numa batalha, ao fim de dois anos apenas no seu posto de Imperador e soberano metafísico, com 33 anos, comaparáveis aos 29 e pouco de Daria Platonova Dugina),. Leiamos então, talvez melhor preparados pelas contextualizações e com as notas minhas, entre parênteses rectos e curvos no texto, Daria Platonova Dugin, hoje guia e musa nossa nos mundos espirituais:
                                   Resumo apresentacional
«Este artigo trata da
implementação da filosofia política do Neoplatonismo pelo imperador Flavius Claudius Julianus. O seu reinado não foi uma tentativa de restauração ou restabelecimento do Paganismo, mas sim uma temática metafísica e religiosa completamente nova, que não combinava nem com o Cristianismo, que ainda não adquirira uma sólida plataforma política, nem com o Paganismo [tão dividido, algo caótico e em crenças nos deuses e ritos muito enfraquecido], que estava a perder rapidamente a sua antiga força. A categoria central da filosofia política de Juliano é a ideia do "mediador", o "Rei Sol", que encarna uma figura e uma função metafisicamente necessárias para o mundo, semelhante ao "soberano-filósofo" de Platão, ligando o mundo do intelecto ao mundo material. Seguindo o princípio platónico da homologia entre o metafísico e o político, Juliano vê em Hélio tanto um elemento da hierarquia do mundo, que proporciona uma ligação entre o mundo intelectualmente compreensível e o mundo material, como também a figura política do Soberano, o Rei, que na filosofia política de Juliano torna-se um intérprete das ideias para o mundo não iluminado, distante do Uno. O objetivo principal deste trabalho é reconstruir a filosofia política do imperador Juliano e procurar o seu lugar no panorama da doutrina neoplatónica. O curto mas coloridíssimo reinado de Juliano foi uma tentativa de construir uma Platonopolis universal, alinhada com os princípios do Estado de Platão.  Muitos dos princípios desenvolvidos na filosofia política de Juliano seriam mais tarde absorvidos pelo Cristianismo, substituindo o edifício em desagregação da Antiguidade.

                                                 Introdução
 Os historiadores do Platonismo tardio adoptam frequentemente a perspetiva segundo a qual o Neoplatonismo não incluía o plano político nas suas esferas de interesse e estava exclusivamente orientado para a contemplação, centrando-se no Um apofático (Ἕν) [do qual pouco ou nada se pode dizer], na hierarquia das emanações e nas práticas teúrgicas. Esta posição é defendida, em particular, pelo historiador alemão do platonismo Ehrhardt [Ehrhardt, 1953]. Esta posição foi repetidamente criticada na obra de Dominic O'Meara Platonopolis: Platonic Political Philosophy of Late Antiquity. Um dos argumentos decisivos quanto a isto é o caso do imperador Juliano (331 ou 332-363), que não só ofereceu uma versão desenvolvida da teoria política neoplatónica, mas também deu uma série de passos decisivos na sua aplicação prática na administração do impéri
o.
                                        C
orpo do texto
O imperador Flavius Claudius Julianus, representante da escola de Pérgamo do Neoplatonismo, é a imagem de um platónico que não só reflectia sobre a necessidade de um filósofo se empenhar na política (de ser um governante), mas que, por um breve mas vivíssimo período, foi imperador do Império Romano, um imperador que encarnava na sua figura o projeto político do Estado ideal de Platão. Esta combinação de alta veneração da vida contemplativa e do serviço político era rara (houve muito poucos imperadores-filósofos na história - um deles foi Marco Aurélio, um pensador que, em muitos aspectos, também inspirou Juliano). "Raramente se encontram sonhadores deste estilo entre os príncipes: é por isso que devemos honrá-lo", observa o historiador francês Victor Duruy. Uma diferença notável em relação aos seus antecessores seria a sua verdadeira e própria obsessão pela filosofia, cuja manifestação máxima era, aos olhos do próprio Juliano, a doutrina neoplatónica. O jovem imperador foi particularmente atraído por Jâmblico (245/280-325/330), representante da escola síria do neoplatonismo. A escola de Pérgamo, onde o próprio Juliano estudou, era uma espécie de ramo da escola síria e Jâmblico era 
considerado uma autoridade incontestável.

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Pérgamo.

Para Juliano, Jâmblico era um modelo do "místico e perfeito" [Julian, 2016], e nos seus escritos encontrava "a sabedoria perfeita que só o homem pode descobrir". No entanto, um biógrafo de Juliano, Jacques Benoit-Meschen [Benoit-Meschen, 2001], observa que Juliano não se limita a ecoar e a reproduzir os ensinamentos de Jâmblico, mas integra-os e desenvolve-os, elaborando a doutrina do elemento intermédio ("mundo intermédio"), o Rei Sol (em três hipóstases), detalhando deste modo a configuração metafísica da filosofia neoplatónica.
A hipóstase mais elevada do Sol era o Sol apofático, idêntico ao Um (Ἕν) de Plotino. O Sol intermédio era a Luz metafísica, que liga os mundos especulativos (noéticos) ao Cosmos. Finalmente, a terceira hipóstase do Sol era o Sol do mundo corpóreo visível, representando
o limite inferior das emanações do princípio absoluto.
Para Juliano,
a questão da conexão entre a mente e o mundo material (ou seja, o problema do "Sol do meio") torna-se a principal. E ele procura simultaneamente uma resposta para ela tanto ontológica como politicamente. Para ele, como para qualquer platónico, os planos político e ontológico estão interligados e são homólogos. O mediador, Hélio, é para Juliano simultaneamente uma figura metafísica e política, o Rei (e em referência ao Sol, Juliano usa os substantivos βασιλεύς - basileu ou rei, κύριος - kirious senhor, e os verbos ἐπι-τροπεύω - ser guardião, gerente, e ἡγέομαι - administrar, liderar, preceder). Os paralelos entre Hélio e a figura do governante permeiam todo o hino Ao Rei Sol. Por exemplo: "Os planetas conduzem uma dança redonda à volta dele [Hélio], mantendo as distâncias como à volta do seu rei" [Julian, 2016]. Tal como Hélio, o Deus Sol, actua como intérprete das ideias no mundo sensual, o imperador-filósofo é um companheiro, um acompanhante do Rei Sol. É o "companheiro" (ὀπᾱδός) [opados, discípulo] que Juliano chama a si próprio no início do hino [ibid]. Todo o governante, observa Juliano no seu tratado Sobre os actos do autocrata e do Reino, deve ser um servidor  e um adivinho do rei dos deuses [Hélios] [ibid].

 Também do Rei Sol, Hélio, a sabedoria e o conhecimento, bem como a essência, são adoptados por Atena, a deusa padroeira da polis [ou cidade] e dos Estados: a sua sabedoria, que provém de Hélio, "é a base da comunicação política" [ibid.] Na concepção de Juliano, Hélio acaba por ser o fundador de Roma e Juliano demonstra na lenda segundo a qual a alma de Rómulo teria descido do Sol à Terra, que: "a estreita convergência de Hélio e Selene (...) tornou possível a descida da sua alma à terra e, depois da destruição da parte mortal do seu corpo pelo fogo do relâmpago, a sua ascensão da terra " [ibid.]

 A unidade da Luz entendida metafisicamente, simbolizada por Hélio, permeia todo o sistema da filosofia juliana. De acordo com a visão neoplatónica, a unidade é sempre apofática [impossível de se verbalizar] e só pode ser alcançada tangencialmente. A forma mais elevada de Unidade é acessível através da genada [(?)], a comunhão com o Uno. Por isso, o cosmos está como que reunido, gravitando em direção ao Uno, mas nunca o alcançando. Mesmo a hipóstase mais elevada do Rei Sol em Juliano é apofática. A natureza da Luz tem origem nesta obscuridade apofática do Sol invisível e a partir daí permeia todos os outros níveis da criação. O Estado, entendido como império, isto é, como reunião da multidão dos povos numa unidade, é como uma genada [(?)]. Não é a Unidade em si mesma nem a Luz em si, mas a vontade em direção a ela, o movimento em direção a ela. E, tal como a alma ou essência do rei desce das esferas superiores, assim o próprio reino aspira ao rei como sua fonte, que informa a política com a graça genésica [(?)].

Juliano propôs-se a tarefa quase impossível de realizar o ideal platónico do rei-filósofo, no contexto do Império Romano real do século IV e dum cristianismo cada vez mais poderoso e influente,  para se tornar um "companheiro" do Sol que fosse um garante da justiça (δικαιοσύνη) [dikaiosýnē]. "A sua principal força motriz era um sentido de responsabilidade tão forte como o do filósofo no trono, Marco Aurélio, que o filósofo Juliano admirava" [Zalinsky, 2016].
Durante o ano e meio do seu reinado imperial (e alguns anos como César, na Gália, antes disso), Juliano, guiado pelos princípios do Estado platónico (como Walter Hyde observou com razão, "Juliano pôs em prática a teoria platónica" [Hyde, 1843]), tentou harmonizar o sistema político com o ideal filosófico da tradição filosófica platónica [Athanassiadi, 1981], e conseguiu-o em parte.

 Político de sucesso, mostrou-se simultaneamente seja um líder valoroso (vitórias brilhantes na Gália sobre os Germanos, comando eficaz do exército até à sua morte - até à última batalha com os Persas, na qual o imperador foi morto) seja um reformador radical da fé pagã, que perdia força devido ao advento da nova religião cristã, de contornos ainda pouco nítidos (na altura fragmentada por inúmeras interpretações, vigorosamente polémicas entre si). Juliano não foi só um governante laico, mas procurou também encarnar a imagem ideal de um rei-filósofo na sua conceção ontológica - pancósmica - em estreita consonância com os esquemas simbólicos em estreita conformidade com os padrões simbólicos do neoplatonismo. A declarada tolerância religiosa de Juliano baseava-se também nas suas profundas convicções filosóficas. Não se tratava de uma simples rejeição da cristianização do Império em favor do secularismo, e ainda menos da substituição de uma religião por outra. De acordo com o pensamento de Juliano, a fé, a religião, a autoridade - o reino da opinião (δόξα) [doxa] - devem ser subordinadas a um princípio superior, o Rei do universo, "aquele em torno do qual tudo está ou é".

 Mas esta subordinação não podia ser formal, porque toda a estrutura hierárquica do princípio dominante - o Rei-Sol - estava aberta a partir de cima, ou seja, era genésica [(?)]. Na estrutura da filosofia neoplatónica, só se pode ter a certeza do movimento em direção ao Um, mas não do próprio Um, que é inatingível. Consequentemente, o modelo político de Juliano representava o princípio de um "império aberto", no qual o imperativo era a busca da sabedoria, mas não a Sabedoria em si, dado que esta não podia em última análise ser encarnada em qualquer conjunto de princípios - não apenas cristãos mas também pagãos. Mas a conclusão desta abertura foi o oposto das tendências seculares da nova era [(cristã)]: o sagrado e o princípio da Luz devem governar, e este é o imperativo da filosofia política juliana, embora esta regra não possa ser fixada em leis imutáveis. O significado da Luz é que ela é viva. E, da mesma forma, o Império revelado e o seu governante devem estar vivos. Aqui a própria noção de filosofia recupera o seu significado mais profundo. A filosofia é amor pela sabedoria, um movimento em direção a ela. É uma busca da Luz, um serviço ao Rei Sol, uma companhia com ele. Mas se dermos a esta sabedoria um carácter formalizado, não estamos a lidar com filosofia, mas com o sofisma. O que Juliano manifestamente rejeitava no cristianismo.
Enclausurando-se e
m  dogmas rígidos, a genuflexão do Império aberto foi substituída por um código alienado, e assim o império fechou-se ao alto, perdendo a sua sacralidade total a favor de uma única versão possível da religião. O reino da opinião (δόξα, doxa) é conscientemente o reino do relativo, do contingente. Deve ser orientado para o Sol, caso em que a opinião se tornará ortodoxia (ορθο-δοξία), uma "opinião correcta", mas ainda assim uma opinião.
O que é interessante sobre o d
estino de Juliano é o facto de ele não ter tido qualquer desejo particular de conquistar o poder, preocupando-se sobretudo com a filosofia e maravilhando-se com os rituais teúrgicos. Juliano foi, antes de mais, um filósofo e, só por força da inevitabilidade, do destino, do presságio e do caminho escolhido para ele por Hélio, um soberano.
No
 Elogio de Juliano, o retórico Libânio observa que: "ele não se esforçou por dominar, mas pelo bem-estar das cidades". [Libânio, 2014], e anteriormente o retórico observa que, se no tempo de Juliano tivesse havido outro candidato ao trono capaz de reavivar o helenismo, Juliano "teria evitado obstinadamente o poder". Juliano era um filósofo condenado pela Providência à descida, à emanação, pelo que a sua missão era demiúrgica e soteriológica. Estava destinado a tornar-se um governante e em virtude da sua natureza filosófica um companheiro do Sol.

  A capacidade de mediar  do Sol, de que falámos acima, a sua liderança corresponde à posição do rei-filósofo no estado ideal. Tal como Hélio, na sua atividade demiúrgica que gera ou adorna muitos eidos [ou ideias] ("pois alguns eidos ele aperfeiçoou, outros produziu, outros adornou, outros despertou [à vida e a identidade], de modo que não há uma única coisa que possa vir à existência ou nascer fora do poder demiúrgico que emana de Hélio" [Juliano, 2016]), assim também o filósofo-diretor dá a sua justa delimitação às propriedades. Ele, o "mediador", é o agente do verdadeiro conhecimento da natureza secreta das coisas e o organizador da ordem com base nesse verdadeiro conhecimento. Hélio é também associado por Juliano a Apolo, o qual estabeleceu oráculos por toda a Terra para dar aos homens a verdade inspirada pela Divindade. Hélio-Apolo é também considerado pelo imperador como o progenitor do povo romano, o que acrescenta à doutrina política de Juliano a tese da "escolha divina" dos Romanos.
Hélio-Zeus aparece também como o portador do princípio real. E também o deus dos mistérios noturnos Dionísio, que se torna em Juliano uma outra encarnação do Sol, Hélio-Dionísio, sendo também interpretado como uma continuação do mesmo princípio real nas profundezas dos mundos corpóreos. Zeus, Apolo e Dionísio, segundo Juliano, assinalam os três momentos no demiurgo político do governante perfeito: como Zeus governa o mundo, como Apolo, escreve as leis e impõe a vertical sagrada do Império Solar, como Dionísio, patrocina as religiões, os cultos e as artes, supervisiona os mistérios e ordena a
s liturgias.
Está provado que
 a imagem do Sol Mediador impressionou de tal modo o imperador que o induziu, na reforma do exército romano, a substituir no brasão imperial a inscrição cristã "Neste signo vencerás"  pela dedicatória mitraica "Sol Invencível". Obviamente, a imagem de Mitra é tomada aqui como uma metáfora filosófica e não como uma indicação de que foi o Mitraísmo que inspirou as reformas religiosas e políticas de Juliano. Sol Invicto é o próprio Rei Hélio na sua natureza original generalizante. Poderia servir como denominador comum de várias imagens religiosas - no espírito da síntese neo-platónica ou daquilo a que o  neo-platonista posterior Proclus chamaria Teologia Platónica. [Proclus, 2001].
No caso desta substituição de In hoc signo vincis por Sol invictus, que é por vezes interpretada como o exemplo mais claro de "restauração pagã", podemos ver outra realidade: não a substituição de um culto por outro, mas o apelo a uma fonte filosófica comum a várias religiões e credos. Tal como o império une as nações e o reino, também uma sacralidade imperial integral eleva todas as formas privadas a uma fonte genésica [(no italiano (genadica)]. De resto, a cruz é também um símbolo solar e, no brasão imperial, estava muito associada ao episódio da vitória militar e ao florescimento político de Roma sob Constantin
o.
                                   Conclusão
A era de Juliano
 foi uma tentativa de construir um Império-Platonopolis  universal: como um verdadeiro platónico, Juliano procurou abraçar e reformar todas as áreas - tanto a religiosa (a introdução de ritos penitenciais, caridade,  dando aos cultos pagãos formais um caráter ético, o Édito sobre a tolerância religiosa), como a da vida na corte (a racionalização do pessoal da corte, convite a estarem na corte  filósofos, oradores e sacerdotes nobres,  restauração do estatuto e do poder anteriores do Senado), bem como a vida financeira (a restauração do autogoverno urbano, a transferência para os municípios do direito de cobrar impostos em benefício das cidades). Mas o curso da história já estava  predeterminado. O Cristianismo, embora tendo absorvido alguns elementos do Helenismo (em particular, incorporando a doutrina da realeza platónica e assimilando os melhores elementos do misticismo e da teologia neoplatónicos), demoliu irreversivelmente o vetusto edifício da antiguidade.
O historiado
r Inge observa que Juliano "era um conservador quando não havia mais nada para conservar". [Inge, 1900]. O tempo de Juliano havia passado e um novo governante havia chegado ao mundo. A partir de então, a sacralidade imperial e a missão metafísica do imperador foram interpretadas em um contexto estritamente cristão - como a figura de um catecúmeno (κατέχων), que retém, cuja semântica foi determinada pela estrutura da escatologia cristã, na qual o imperador ortodoxo, de acordo com a interpretação de João Crisóstomo, era visto como o principal obstáculo à vinda do Anticristo. Mas mesmo nesse conceito de catecúmeno é possível discernir ecos distantes da ontologia política do Rei Sol, já que no bizantinismo o império também se torna um fenómeno metafísico e, portanto, adquire um caráter filosófico. Trata-se, no entanto, de uma versão substancialmente reduzida do platonismo político, já que mais particular e definida dogmaticamente em relação ao âmbito mais universal da filosofia política de Juliano.

 Bibliografia

1. Athanassiadi P. (1981) Julian: An Intellectual Biography. Oxford: Clarendon Press.
2. Benoit-Meschen J. (2001) Yulian Otstupnik [Julian the Apostate]. Moscow: Molodaya gvardiya Publ.
3. Bowersock G. (1978) Julian the Apostate. London.
4. Duruy V. (1883) Annuaire de l'Association pour l'encouragement des études grecques en France. Revue des Études Grecques, 17, pp. 319-323.
5. Ehrhardt A. (1953) The Political Philosophy of Neo-Platonism. In: Mélanges V. Arangio-Ruiz. Naples.
6. Gardner A. (1895) Julian Philosopher and Emperor and the Last Struggle of Paganism Against Christianity. London: G.P. Putnam's Son.
7. Hyde W. (1843) Emperor Julian. The classical weekly, 37, 3.
8. Inge W.R. (1900) The Permanent Influence of Neoplatonism upon Christianity. The American Journal of Theology, 4, 2.
9. Julian (2016) Polnoe sobranie tvorenii [Full collection of works]. St. Petersburg: Kvadrivium Publ.
10. Libanius (2014) Rechi [Speeches]. St. Petersburg: Kvadrivium Publ. Vol. 1.
11. O’Meara D.J. (2003) Platonopolis. Platonic Political Philosophy in Late Antiquity. Oxford: Clarendon Press.
12. Proclus (2001) Platonovskaya teologiya [Platonic Theology]. St. Petersburg: Letnii sad Publ.
13. Veyne P. (2005) L'Empire Gréco-Romain. Paris: Seuil.
14. Zelinskii F.F. (2016) Rimskaya imperiya [Roman Empire]. St. Petersburg: Aleteiya Publ. 

For citation
Dugina D.A. (2018) Politicheskii platonizm imperatora Yuliana [The political Platonism of the Emperor Julian]. Kontekst i refleksiya: filosofiya o mire i cheloveke [Context and Reflection: Philosophy of the World and Human Being], 7 (2А), pp. 32-38. 

Keywords 
Political Platonism, Neoplatonism, Emperor Julian, late Platonism, political philosophy of Neoplatonism. 

Palavras Chaves
Platonismo político, Neoplatonismo, Imperador Juliano, Platonismo tardio, Filosofia política do Neoplaton
ismo.

Tradução minha da tradução italiana Il platonismo politico dell'imperatore Giuliano por Lorenzo Maria Pacini, publicada em 27.VIII.2023, em www.geopolitika.ru, do ensaio da filósofa e mártir Daria Dugina Platonova. 

                                           

Muita luz e amor na sua alma e espírito! 

Que como "companheira" do Sol central da Divindade, Logos, Hélio, Zeus, seja Daria Dugina também companheira, guia e subtil inspiradora dos que a admiram, estudam e amam, ou a meditam e invocam!

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Aprofundar a contemplação do coração devocional espiritual e divino.

2º texto e poema sobre "Um ícone ou mandala psico-mórfico para o mês de Setembro de 2023 ser mais pleno e luminoso."

Contemplar na mão o coração ardente, em símbolo,

mais do que descansar o coração na mão de Deus,

 como suspirara em soneto Antero de Quental, 

é adentramos em amor os mistérios da unificação,

é abrirmos o peito e a visão aos centros contemplados,

é permitirmos que as flores das almas desabrochem,

é sentirmos a unidade amorosa espiritual e divina! 

 
    Um belíssimo exemplar da devoção tradicional portuguesa à Divindade, neste caso um registo do início do séc. XIX em forma de coração com volume, e um ritmo pulsante sugerido pelas hastes, folhas e flores bordadas em fios dourados  coloridos, quais sentimentos e orações, mostrando a beleza subtil da nosso coração espiritual em oração e amor devocional para com a Divindade, neste caso avatarizada (do sânscrito avatar, descida da divindade) em Jesus e seu coração, que surgem representados numa gravurinha ao centro, numa mandorla, ovo ou olho, delimitado por fios dourados, como que pairando numa dimensão infinita circularizada, e que nos convida a contemplá-la, a unificarmos sujeito e objecto, e a entrar e a sentir o Amor Divino que neles e em nós quer arder e irradiar mais.                                     Felizes os que podem e conseguem contemplar os símbolos devocionais e neles se alinhar e unificar com as dimensões e realidades representadas e invocadas, e assim estar mais em Amor e no Ser...
  

Um ícone ou mandala psico-mórfico para o mês de Setembro de 2023 ser mais pleno e luminoso.

A nova fase do ciclo anual em que começamos a singrar, que culmina nas colheitas, vindimas e S. Miguel, pode ser melhor atravessada se contemplarmos diariamente um ícone bem colorido,  obra artística propícia à nossa harmonização psico-espiritual, à  abertura do olho e coração subtis e até à religação aos guias, ou aos anjos, ou à Divindade..., a Fonte..., qualquer que seja a forma e a ideia que adoptarmos, tanto mais que Ela é também o Coração e Amor-Sabedoria primordial e íntimo, que pela nossa aspiração nesta janela-olho podemos sentir-aceder.

Boas contemplações e respirações, inspirações e acções!

Devoção tradicional psico-mórfica portuguesa ao mestre Jesus e seu coração, e ao Amor Divino que deles emana e em nós quer arder e irradiar: em discernimento, amor e paz!

quarta-feira, 30 de agosto de 2023

A Rosa e a Violeta, sainete num acto, manuscrito de Higino da Costa Paulino. Pangim, Índia, começos do séc. XX. Inédito até hoje.


Esta pequena peça num acto, A Rosa e a Violeta, um sainete, na terminologia de origem espanhola, foi escrita em Pangim, Goa, Índia Portuguesa, nos começos do século XX, por Higino Augusto Mascarenhas da Costa Paulino, que ali casou com Maria Helena Gama de Noronha e foi o pai da minha avó materna Fernanda Maria, e onde viveu trinta anos bem criativos e animados.

Jovem de vinte anos, em 1888, Lisboa.
Em Lisboa estudara Medicina mas depois deixou-a e dedicou-se mais às artes:  música,  poesia,  pintura,  piano, tendo sido director da revista lisboeta Gazeta Musical, Jornal Ilustrado Theatros, Musica e Bellas Artes, nos anos de 1886 a 1888, onde conviveu bem e publicou sob o pseudónimo de Gino várias biografias de compositores, pianistas e cantoras, algumas delas já transcritas para este blogue.
Conhecera a sua futura mulher Maria Helena Corrêa da Silva e Gama de Noronha em Queluz, mas que, nascida numa família há séculos na Índia em Goa vivia, o obrigou, por indicação do seu pai D. José Joaquim de Noronha a partir para esse Oriente de sonho, onde se casou e foi inspector dos Caminhos de Ferro, e pai de seis crianças (duas delas viriam a publicar dois livros de memórias da Índia), entregando-se à educação cultural, artística, moral e espiritual delas, e de outras crianças de Pangim, organizando récitas e representações teatrais, e escrevendo para tal mas também para outros fins,  poemas, alguns impressos em folhas volantes, como também realizava o seu amigo e mais famoso poeta Fernando Leal, o grande amigo de Antero de Quental (curiosamente casado com Guiomar, irmã da sua mulher Maria Helena) e peças teatrais, uma só impressa e que foi representada em benefício das crianças da Bélgica aquando da 1ª grande guerra, Pátria, que possuo mas que não está registada na Porbase, o catálogo online da Biblioteca Nacional e de outras bibliotecas públicas. Possuímos, além deste sainete que a minha mãe, sua neta, me transmitiu e que pude agora transcrever, outra peça inédita também representada «em récita a benefício das Crianças belgas» nas noites de 9 e 23 de Setembro de 1926 no teatro Vasco da Gama, em Pangim.

Nele Higino aborda o facto de duas jovens amigas terem de participar um baile com o objectivo de conhecerem os seus noivos e eventualmente de submeterem-se à vida permanente com outrem, e de quem podem nada saber ou gostar. Numa altura em que os casamentos eram na maioria arranjados pelos pais, tais escolhas segundo os interesses e sensibilidades deles frequentemente só traziam desilusões e sofrimentos para as jovens ou jovens forçados a casar-se. E na sociedade indiana, que rodeava a indo-portuguesa, isso era flagrante e frequentemente trágico, dadas as diferenças de idade e a eventual morte em pira da viúva, sati, contra a qual também se insurgira numa peça Tomás Ribeiro, que fora à Índia em 1870 (do que deixou uma boa descrição da viajem), onde esteve dois anos como secretário geral do Governador Visconde de S. Januário, e foi um dos fundadores do valioso Instituto Vasco da Gama.  

Higino da Costa Paulino escolheu este título A Rosa e a Violeta, dentro do princípio homológico de que  os animais e as plantas simbolizam e espelham tanto qualidades abstractas e naturais como as virtudes e fraquezas dos seres humanos, e que  portanto podem-se deles tirar correspondências instrutivas valiosas, tal como as fábulas, os contos e os livros de emblemata transmitem-nos.  Com elas, Higino expande e insere na Natureza e na Flora as duas jovens  Noémia e Sílvia,  com as suas  diferenças de personalidade, riqueza, sensibilidade, intencionalidade e vias futuras possíveis,  as quais se acentuarão e se transformarão pela sabedoria e o amor,  ou seja a relação com o Amor, com elas, o outro, os outros,  numa vivência individual inter-relacional própria mas influenciada pela educação, pelos exemplos, pelo ambiente, ou mesmo pelas conversas sinceras em almas abertas à procura da verdade,  conjunção esta denominada na Índia satsanga, de sat, verdade, sanga, companhia.  A peça tem claramente intuitos didácticos, axiológicos, em certos aspectos estará algo datada ou, melhor, reflecte uma época e meio, sendo demasiado moralista para alguns, mas é uma peça pequena, divertida e séria e nas duas páginas finais, Higino, num certo golpe de génio, dramatiza-a mais e coroa-a com um poema em que enaltece o amor-caridade, usando contudo  a palavra esmola, que há que compreende-la, não num sentido de superioridade e coitadinho, tanto mais que muitas das suas peças foram representadas para angariar fundos para causas sociais, mas na sua etimologia de acto realizado por partilha de bens ou do tempo por compaixão, piedade,  benevolência,  empatia e unidade, qualidades estas do coração espiritual que ao longo da vida devemos desenvolver, e por vezes em vitória árdua sobre a insensibilidade,  desconfiança e egoísmo que nos desalinham do Amor Sabedoria e da Unidade da Humanidade.
A quais dos seus filhos e filhas terá lido, quem a apreciou, no que frutificou? E hoje, haverá quem ainda vibre em alguns passos com ela? Bem, eu  senti alguns sentimentos, e espero que algumas poucas de pessoas, além dos descendentes, ainda apreciem esta peça que entra assim, modesto vaso de rosa e violeta, no reportório da história do Teatro Português.  E exprimo a saudação e gratidão anímica a um antepassado criativo bom e sábio que certamente nos planos espirituais sorrirá connosco. Lux-Amor!

A ROSA E A VIOLETA

sainete em um acto

Personagens


Noémia
Sílvia

Actualidade

por Higino da Costa Paulino.

A ROSA E A VIOLETA

sainete em um acto

Sala de estar (boudoir) elegante de menina rica. Toilette Pompadour (ao estilo, no séc. XVIII, da famosa amante de Luís XV). Observa-se alguma desordem na disposição do mobiliário. Vestidos e ao centro está um candeeiro acesso, com o respectivo abat-jour. Sobre andas espalhadas ao acaso sobre alguns móveis. É noite e na mesa mesa e toilette alguns ecrans com joias. Uma coluna de madeira sobre a qual assenta um vaso de flores, uma estatueta ou um candeeiro. Nóemia em elegante vestido de baile. Trata de cingir no pescoço um colar de pérolas, em frente do espelho.
Sílvia também em traje de baile, toda de branco, sem jóias, penteado liso, trazendo ao pescoço uma fita preta de veludo donde pende uma cruz de ouro, entreabre o reposteiro

CENA ÚNICA

Noémia e Silva.

Sílvia (Entre portas)
Pode-se entrar?
Noémia
(Em face do espelho, sempre preocupada com o colar) Pois não, já pronta?
Sílvia
Não é cedo.
Noémia
Como te enganas, minha Sílvia! Não devemos entrar no baile antes da meia noite, é o chic! Tua mãe onde está?
Sílvia
No salão pequeno, conversando com a tua. Mandaram-me para aqui, vim.
Noémia
E fizeste muito bem! Provavelmente elas desejam estar sós.
Sílvia
É possível, pelo menos assim parece... mas porque será?
Noémia
Nada sei ao certo, mas desconfio! Por mais que diligencie não consigo fechar este colar! Se tu me auxiliares, minha boa Sílvia...
Sílvia
Com muito prazer. É lindo... não t'o conhecia!
Noémia
Não admira. Deu-me o meu pai, há apenas três horas. É realmente um encanto. As pérolas são o emblema da mocidade, as joias únicas que nos são mais próprias, dizem, mas eu dou preferência aos diamantes, embora os moralistas proclamem que o seu brilho é um reclamo a quem os usa e por consequência impróprias à nossa idade. Mas minha querida Sílvia, tempo virá, em que elas façam parte da nossa corbeille de noivas.
Sílvia
Noivas?
Noémia
Noivas, sim!... então nós havemos de permanecer toda a vida solteiras?
Sílvia
Quem sabe...
Noémia
Credo: Longe vá o teu agoiro! (Reparando no traje de Sílvia) Mas como te vestiram para um baile: parece que vais tomar a primeira comunhão. E para rematar esta cruz ao pescoço, pendente de uma fita preta.
Sílvia
Então não estou bem assim?
Noémia
Só te faltam, minha Sílvia, o livro de orações, a grinalda de flores e o véu branco. Que ausência de bom gosto! Nem sequer um pequeno decote... os cabelos lisos... sem brincos... que esquisitice! Assim ninguém repara em ti, só pela excentricidade chamarás à atenção! Vou pôr-te uns brincos meus, e com eles ficarás melhor. (Vai buscar um estojo donde tira um par de brincos) Senta-te aqui. (Sílvia senta-se junto à toilette, Noémia põe-lhe os brincos). Já me pareces outra! E se tua mãe não se zangasse... vestia-te um dos melhores vestidos...
Sílvia
Não, não, isso não!
Noémia
Como queiras! Desconfio, porém que alguma coisa se trama, a que não somos alheias, embora nada nos tenham dito.
Sílvia
Também eu tenho algumas suspeitas
Noémia
Sim? Diz, diz, o que sabes.
Sílvia
Minha mãe recebeu, ontem, da tua duas cartas.
Noémia
Como soubeste?
Sílvia
Foi teu criado Ervafólio quem as levou. Eis o que se passou. Tinham anunciado o almoço, quando tocaram a sineta do portão. Eu já estava na sala da mesa, quando a minha criada Júlia entrando, me disse terem trazido uma carta para a minha mãe. Cheguei à janela e vi sair o Ervafólio. Perguntando à mamã de quem era a carta, respondeu-me indiferentemente, como quem não dá importância, nem ao facto, nem à pergunta. De tarde volta de novo o Ervafólio, e diz-me a Júlia – veio mais uma carta! Em vista, pois desta assídua e estranhável correspondência, suspeitei desde logo que alguma coisa de extraordinário se passava
Noémia
Também me parece
Sílvia
Esta noite...
Noémia
Uma terceira carta...
Sílvia
Não... Meu pai, que nada de expansivo tem, como sabes, e que fica sempre mal humorado, quando a mamã e eu saímos, abraçou-me com muito afecto, e disse-me: Desejo-te que te divirtas muito, minha querida filha! Ora eu não achei tudo isto, natural à nossa vida íntima?
Noémia
Tens razão! Eu também estou persuadida que não somos alheias a essa correspondência, e até à conferencia secreta que se está realizando! Alguma coisa se projecta a nosso respeito. Disseste, que ontem minha mãe por duas vezes escreveu à tua, e eu, pela minha parte, estranhei também, que ontem, notável coincidência, a condessa de Miramar, e que nos oferece o baile, duas vezes aqui viesse, encerrando-se no gabinete com a mamã, e em tão prolongada conversa, que me causou admiração, o que me prova haver caso extraordinário.
Sílvia
É de supor... pelo menos!
Noémia
Mas ainda não é tudo!
Sílvia
Sim?
Noémia
Hoje em vez de ser penteada pela minha criada como é costume, mesmo quando vou a qualquer soirée, fui penteada por um cabeleireiro, que mandaram chamar, e cuja presença me surpreendeu! Desconfio bem, minha querida Sílvia, que vamos ter noivos pela proa e que necessitamos de estar alerta!
Sílvia
Se assim é, é mal pensado, é mal feito!
Noémia
Pelo contrário... é lindo, encantador
Sílvia
E quando assim seja, supões que nós possamos imediatamente simpatizar com esses dois rapazes... que talvez nem sequer conheçamos?
Noémia
Simpatizar desde logo... não direi... mas com o tempo, tudo é possível.
Sílvia
E gostarão eles de nós?
Noémia
Eu te digo (tira dum ramo um malmequer, ramo que há num vaso sobre a mesa, e desfolha-o) Mal me quer bem me quer muito pouco nada! (Deixa cair a flor) Nada! Já vês... uma desilusão.
Sílvia
(Tendo seguido atentamente o desfolhar da flor) Perdão, faltou-te uma palavra! Malmequer, bem me quer, muito, pouco, apaixonadamente, nada! Apaixonadamente foi o que a flor disse!
Noémia
Alimentemos essa esperança!
Sílvia
Que é consoladora!
(Riem-se ambas e ouve-se meia hora no relógio)
Noémia
Falta-nos apenas meia hora, já pouco tempo nos resta. É pena que eu não possa abrir um pouco mais esse teu decote, e modificar essa toilette de educanda! Quem te fez esse vestido?
Sílvia
Uma costureira que há muito tempos temos em casa. É muito modesta, mas tem habilidade, talha bem.
Noémia
Talha bem... à moda do século passado! Mas enfim tua mãe assim o quer, faça-se-lhe a vontade. Persuade-se talvez que vamos dançar com alguns meninos do coro, ou aprendizes de clérigos! Queres tu que ao menos te ponha um bocado de carmesim nas faces?
Sílvia
Não... não!
Noémia
Pois olha, é assim que nos teatros as actrizes se tornam lindas... Faces, lábios, sobrancelhas, … tudo pintam.
Sílvia
Mas eu não quero! Prefiro parecer o que sou!
Noémia
Faz o que quiseres. (Outro tom) E se nós ensaiássemos a nossa entrada nos salões do grande mundo?!
Sílvia
Pois sim... mas como?
Noémia
Vamos ver! (Dispõe a perna como o melhor convier) Aqui as mães de família, as avós e outras matronas já reformadas: (Continuando a preparar a cena) Agora... aqui... as meninas solteiras, sob as vistas austeras de toda a veneranda parentela. (A Sílvia) Senta-te, Eu faço de condessa de Miramar e esta coluna será o visconde de Sousel teu futuro marido.
Sílvia
O visconde de Sousel... meu marido?
Noémia
Não te assustes. É por enquanto uma suposição. Vou conduzi-lo à transparência, e depois digo-te: Minha menina, eis aqui o senhor visconde de Sousel, que deseja ser-lhe apresentado. Tu levantas um pouco a cabeça, apenas por instantes, pousando logo e apenas por instantes, pousando logo em seguida os olhos no chão. E contudo indispensável sorrir e dizer: Tenho muito prazer em conhecer V. Exª. Ele em seguida, sem dúvida, pede-te a primeira valsa... Suponho que não te proibiram de dançar?...
Sílvia
Não, a mamã consultou a esse respeito o nosso confessor.
Noémia
Muito bem, está salva a honra do convento! Mas que respondes tu ao visconde?
Sílvia
Que concedo a valsa...
Noémia
Imediatamente? Sem mais uma palavra?
Sílvia
Pois que mais hei de dizer eu dizer?
Noémia
Ouve-me, minha Sílvia. Tu consultas em primeiro lugar o teu carnet (caderninho pessoal), dizendo ao mesmo tempo: Vou ver se ainda tenho alguma valsa disponível... e logo a seguir acrescentas, - apenas posso conceder-lhe o terceiro two steps (tipo de dança, e não fácil...). Naturalmente ele insiste, lamenta-se, e tu então, condescendente, dizes-lhe, que a primeira valsa está prometida a pessoa de família, ou de muita intimidade, e como tal, essa pessoa a teu pedido a trocará pelo two steps... portanto a valsa pedida é concedida.
Sílvia
E se valsando ele me falar?...
Noémia
Não te inquietes por isso! Eis palavras que a valsa inspira, ou as leva o vento, ou trazem um pedido...
Sílvia
Um pedido?
Noémia
De casamento
Sílvia
É possível... mas...
Noémia
Mas... o quê?
Sílvia
Conheces o meu padrinho o general Atouguia?
Noémia
Perfeitamente, é um velho rapaz, muito simpático, sempre muito apurado, que já conta três , e é por todos muito querido. Também sei, que não obstante a sua avançada idade, todas as damas se orgulham de entrar pelo seu braço em qualquer salão!
Sílvia
Esse mesmo! Ora no meu dia dos anos trouxe-me ela esta cruz, que aqui vês ao pescoço e disse-me: pequena conserva sempre esse aspecto inocente e tímido. É ele o verdadeiro encanto de uma menina da tua idade. A simplicidade e a modéstia conquistam sempre o respeito e a simpatia de toda a gente de bom senso.
Noémia
E que mais?
Sílvia
Disse ainda: Repara nessas criaturas vaidosas, garridas, que às vezes ainda no verdor da mocidade, se apresentam nos teatros, nas salas em toiletes quase descompostas, ornadas de diamantes, que mais provocam a atenção, e às quais os homens fazem então a corte, engrandecendo-lhes a vaidade com frases banais, comprometendo-as depois.... mas que só os idiotas escolhem para esposas.
Noémia (muito preocupada)
E depois?
Sílvia
Os homens em geral são menos frívolos, menos cépticos do que maioria das vezes se supões, ajuntou meu padrinho. No fundo do seu íntimo, com o que eles mais sonham, é com uma mulher simples, terna, delicada, que seja a apetecida companheira da sua vida, a alegria do seu lar, a veneranda mãe dos seus filhos. Conserva pois, minha Sílvia, esse teu ar cândido e tímido, tão natural à tua idade, assemelhando-se à violeta, a mais humilde das flores e cujo perfume se denuncia a distâncias quando mesmo o oculta na mais densa folhagem.
Noémia (muito pensativa)
Sim... sim, deve ser isso!
Sílvia
E certamente não se engana quem como ele tem vivido no turbilhão do grande mundo.
Noémia
Mas... (Num ímpeto nervoso, com sufocação de riso e de choro) Não, não, não pode ser. Teu padrinho desvaira, como todos os velhos carunchosos, mal humorados, que sofrem de gota e de reumáticos, e que não podendo volver à mocidade, veem o mundo a fugir-lhes, e com a cabeça metida até às orelhas no clássico barrete de algodão, e os pés em pantufas de lontra querem transformar o universo num vasto e austero convento, onde todos orram de enfado e inanição! Os nossos encantos, a nossa juventude, a vida enfim que nos sorrie e nos deslumbra, não a devemos sacrificar a qualquer sujeito, que nos obrigue a cozer-lhes as peúgas e a remendar-lhes as calças, isso seria um sacrilégio! Tenho pena de não encontrar agora aqui na minha presença esse senhor general Atouguia, que já se bateu em três duelos, para o mandar de presente a minha tia Hermengarda, que já enviuvou de três maridos, que funga rapé e que sofre de um catarro crónico! Provavelmente oferecia-lhe outra cruz com a competente fita preta, acompanhada de salutares conselhos sobre a aquisição de um quarto marido! (Ri novamente de desespero).
Sílvia
Mas, peço-te... suplico-te minha querida Noémia, que não te apoquentes... não chores! Perdoa-me se as minhas palavras, ou antes as do meu padrinho te magoaram. Hei-de ralhar com ele.. muito, muito.
Noémia
Para que?
Sílvia
Ele certamente disse-me tudo isto para desculpar este meu todo acanhado, quase selvagem, pois que me estremece muito.
Noémia
Não duvido
Sílvia
Quanto ele gostaria de ter uma afilhada como tu! E como nós somos tão diferentes no génio. Tu destinada a fulgir na sociedade, onde pelos teus dotes de encanto e de vivacidade serás sempre uma figura de destaque, qual linda rosa, que pelo perfume e a beleza subjuga as outras flores, enquanto que eu tímida como sou, toda essa sociedade me assusta e me retrai! Viste já alguma vez, um ninho muito oculto na ramagem, onde pequeninas avesinhas abrem os biquitos amarelos à mãe, que sobre elas estende a asa protectora para as aquecer, enquanto pai volteia em redor à busca do sustento? Pois bem, é esse o meu ideal... o meu sonho dourado... uma felicidade modesta num lar humilde, ignorado, longe do bulício estonteante que nos cerca.
(Sente-se o ruído de uma carruagem)
Noémia
O teu amor é uma cabana... dos tempos pré-históricos. Escuta... uma carruagem que parou.
Sílvia
Efectivamente
Noémia
É sem dúvida, a a carruagem que vem buscar-nos. Pois minha querida Sílvia, é uma criatura sensata o teu padrinho, e nunca ninguém me falou assim.
Serei talvez leviana... sou... bem o conheço agora...e nunca procuraram reprimir os meus caprichos, estas criancices de hoje que amanhã serão defeitos incuráveis... e contudo chorei e choro ouvindo as tuas palavras tão dignas de respeito e de exemplo! És muito superior, a mim, minha boa amiga, e o teu coração e um diamante muito mais precioso do que todos aqueles de que se possa compor a nossa corbeille de noivas. Fui má, fui ridícula, e tu és um anjo! Toma este colar, (tira o colar dando-o a Sílvia) e em troca dá-me essa cruz, e essa fita negra...terão também esse prestígio, que tanto realça a tua candura (Sílvia hesita). Dá-me... dá-me essa cruz... não m'a recuses... empresta-me e com ela empresta-me também um pouco desse teu suavíssimo perfume, minha encantadora violeta.
Sílvia
Mas o perfume da rosa, como o teu, é mais activo, mais inebriante, mais sedutor:
Noémia
E o violeta mais modesto, mais casto e mais puro! (Trocam o colar e a cruz) Já me sinto outra!
Sílvia
E agora?
Noémia
Vamos ao encontro das nossas mães (Ambas avançam até ao fundo. Noémia, com galanteria à moda antiga, convida Silvina a sair primeiro) Vossa Excelência tem a bondade...
Sílvia
(Com igual galanteria) Não... não... primeiro V. Excª.
Noémia
(De repente, mudando de tom) Mas que delicadeza a sua!
                                          
Noémia aproxima-se de Sílvia, segreda-lhe qualquer coisa e indica-lhe o público. Sílvia faz um sinal afirmativo. Ambas descem, avançando mais e Noémia recita os seguintes versos, enquanto a orquestra em surdina executa uma valsa lenta que se harmoniza com a recitação:
Nasce oculta entre a folhagem
a modesta violeta!
Receia os beijos da aragem
essa casta Julieta!

É triste e rasteira a planta,
onde a pobre flor assoma,
mas nessa humildade, encantador
o seu dulcíssimo aroma!

Também a flor Caridade
se brota numa alma pura,
retrai-se à publicidade,
secretamente fulgura.

E dessa mimosa flor
grato perfume s'evola
que se transforma em redor,
no perfume de uma esmola!

Essa esmola generosa,
vem da vossa mão discreta,
tem a beleza da rosa,
o perfume da violeta!

(Fim)

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Ignoto Deo, Ao Deus ignoto, soneto de Antero de Quental. Hermenêutica. Com a música de Vao: «Antagonia de Quental» - «Antero Antagony».


Ignoto Deo é sem dúvida um soneto bastante importante no conjunto da obra poética anteriana, pois é o primeiro soneto dos doze publicados na 1ª edição de Sonetos, a de Sténio, em 1861 quando era estudante em Coimbra. E igualmente, com pequenas variantes, é o primeiro a ser apresentado à alma leitora na edição final d'Os Sonetos completos de 1886.

Nos nossos dias este soneto musicado excelentemente por Vau, como pode  ouvir no fim deste artigo, merece leitura e consideração pela sua qualidade de iniciadora na gnose, por manifestar a aspiração à visão ou conhecimento de Deus no jovem de 19 anos, algo que perdurava de certo modo ainda no homem que aos 49 admitiu e decidiu, não tendo mais laços afectivos (à parte as duas pupilas e um ou outro amigo) a reterem-no, ou forças e missão para cumprir na Terra e com o regresso da ilha açoriana à Lisboa do passado, arrojar-se ao mar nosso ignoto do além, na perigosa barca do suicídio.

Vejamos e leiamos, nas duas impressões, a de 1886 bem mais artística,  o soneto  Ao Deus Ignoto. 

                                               IGNOTO DEO

«Que beleza mortal se te assemelha,
Ó sonhada visão desta alma ardente,
Que reflectes em mim teu brilho ingente,
Lá como sobre o mar o sol se espelha?

 O mundo é grande – e esta ânsia me aconselha
A buscar-te na terra: e eu, pobre crente,
Pelo mundo procuro um Deus clemente,
Mas a ara só lhe encontro. . . nua e velha. . .

Não é mortal o que eu em ti adoro.
Que és tu aqui? olhar de piedade,
Gota de mel em taça de venenos. . .

Pura essência das lágrimas que choro
E sonho dos meus sonhos! se és verdade,
Descobre-te, visão, no céu ao menos!»

Breve hermenêutica: Na 1ª quadra Antero partilha a sua ideia ou visão de Deus, algo platónica porque ergue logo a sua supremacia ou incomparabilidade em relação a qualquer beleza terrena, e estimula-nos a trabalharmos diariamente, seja na oração e meditação, seja na reflexão e escrita, pela melhoria da nossa compreensão das  vias de aproximação e religaçã

o à Divindade, tão desconhecida da Humanidade, e que foi por Antero invocada enquanto visão e evocada enquanto oração-poema, neste soneto sob o título Ignoto Deo, Ao Deus ignoto, Ao Deus desconhecido.

Quando Antero de Quental o escreve em meados do séc. XIX as concepções de Deus de base cristã, católica ou protestante, eram as predominante na maioria dos seres mais religiosos, apenas postas em causa pelos adeptos do paganismo, do panteísmo e do panpsiquismo (que Antero valorizou), e pelo que começava a brotar do Espiritismo, do Budismo (também por ele apreciado) e da Teosofia, enquanto que, nos não-crentes, o materialismo, o ateísmo e o agnosticismo cresciam bastante.
O que Antero, jovem genial (que não nas notas nas aulas universitárias, onde chumbou até um ano), então com 19 ciclos anuais do seu signo de Aries, confessa, exprime e partilha de mais valioso é a aspiração ardente da sua alma a conhecer Deus, o qual ele sente em "sonhada visão" como o brilho ingente, isto é, não natural, não do tamanho da gente, do Sol tanto sobre ele como sobre o mar, e na primeira versão de 1861 evocado como o "mar anil", azul. Uma imagem tanto real no mundo físico como no espiritual, pois, sobre as águas ou ondulações energéticas afectivas e psíquicas da nossa alma, o Sol espiritual ou Divino pode infundir os seus raios ou reflectir-se, e para este desiderato ou fim muitas práticas de oração e meditação se ergueram ao longo dos séculos e muitos místicos testemunharam tal visão interior, com mais ou menos esplendor e impacto.
Este soneto foi lido por Fernando Pessoa e embora não traduzido para inglês como fez a muitos outros, pressentimos que a 2ª quadra possa ter tocado e influenciado Pessoa e logo vir ao de cima em alguns versos e personagens da Mensagem: o brilho ingente sobre o mar, o mundo é grande, a ânsia que arde nele...
A segunda quadra mostra-nos ainda a consciência forte que as aras ou altares dos templos não tinham para ele já suficiente energia vital, intelectual e anímica: não era nelas que o jovem revolucionário e em demanda de conhecimento filosófico, ecuménico e universal conseguia sentir ou intuir a Divindade, que denomina como Clemente, numa filiação etimológica romana, de bondosa, misericordiosa e que singrou no
Catolicismo onde ele hauriu as primeiras luzes da adoração e aspiração ao Numinoso, muito sentido por ele também na poesia religiosa de Alexandre Herculano.

No primeiro terceto, Antero realça de novo tal face bondosa da Divindade pois cultua ou adora   a sua pietas, a sua doçura compassiva para que, face aos sofrimentos e venenos que experimentamos e que por vezes enchem dolorosamente a taça da vida, ela se derrama como mel ou bálsamo, nomeadamente pelo seu olhar  ou providência que nos agracia ou abençoa.
É uma vis
ão divina bastante humana, e cristã, numa mescla da natureza paternal, filial e maternal, e sabendo nós como Antero amou fortemente a sua mãe ao longo da vida e que dedicou à Mãe Divina, à visão Dela,  em sonho, um poema cheio de piedade, intitulado À Virgem Santíssima, Cheia de Graça, Mãe de Misericórdia, e que também concluirá a edição completa dos seus sonetos em 1886, no fim da sua extenuante jornada,  com o soneto Na Mão de Deus, onde exprime o seu desejo de descansar o seu coração na "mão divina", qual "criança, em lobrega jornada que a mãe leva ao colo agasalhada",  podendo-se assim descortinar o valor da face Feminina da Divindade em Antero, e até interrogarmos se Antero teria alguma vez orado a Deus Pai e Mãe e se teria intuído e valorizado a Deusa Mãe, que para a maioria dos cristãos se subsumiu em Maria, e a quem Antero dedicou piedosamente o tal soneto À Virgem Santíssima, Cheia de Graça, Mãe de Misericórdia, que afectiva e conceptualmente complementa bem o soneto Na Mão de Deus, o qual embora sendo de lavra de 1882 foi escolhido para o fim que coroa a obra, dos Sonetos completos, de 1886.

O último terceto é também genial pois, numa compreensão de que Deus pode brotar em nós enquanto essência ou destilação das nossas lágrimas, e enquanto imaginação ou idealização das nossas melhores aspirações, pede-Lhe que, já que na Terra, nos templos e religiões não se encontra facilmente, ao menos como uma visão no céu lhe possa aparecer, visão interior pelo olho espiritual ou visão extraordinária ou miraculosa no céu exterior.

Sabemos que Antero de Quental não foi agraciado com tal desvendação divina, embora certamente tenha tido as suas iluminações relativas, sobretudo conceptuais mas também algumas, religiosas, poéticas e afectivas nos seus tempo mais juvenis. Foi assim avançando para a sua amiga Morte, corajosamente mas sem plenitude de despertar espiritual, antes suspirando ou até esperando por descanso para os seus nervos e alma abnegados e desiludidos.
                                   

A música de Vao, Antagonia de Quental, acompanhada do soneto e sua tradução em inglês, é bem poderosa,is e fortifica-nos na nossa aspiração e determinação persistente de podermos merecer pela nossa vida espiritual, criativa e amorosa a visão da Divindade ou, pelo menos, uma melhor ligação com Ela, para que o discernimento justo e o amor sábio vibrem mais em nós e irradiem na Humanidade e em Antero de Quental...