Nos nossos dias este soneto musicado excelentemente por Vau, como pode ouvir no fim deste artigo, merece leitura e consideração nossa pela sua qualidade de iniciadora gnose, por manifestar a aspiração à visão ou conhecimento de Deus no jovem de 19 anos, algo que perdurava de certo modo ainda no homem que aos 49 admitiu e decidiu, não tendo mais laços afectivos (à parte as duas pupilas e um ou outro amigo) a reterem-no, ou forças e missão para cumprir na Terra no regresso à Lisboa do passado, arrojar-se ao mar nosso ignoto do além na perigosa barca do suicídio.
Vejamos e leiamos, nas duas impressões, a de 1886 bem mais artística, o soneto Ao Deus Ignoto.
IGNOTO DEO
«Que beleza mortal se te assemelha,
Ó sonhada visão desta alma ardente,
Que reflectes em mim teu brilho ingente,
Lá como sobre o mar o sol se espelha?
O mundo é grande – e esta ânsia me aconselha
A buscar-te na terra: e eu, pobre crente,
Pelo mundo procuro um Deus clemente,
Mas a ara só lhe encontro. . . nua e velha. . .
Não é mortal o que eu em ti adoro.
Que és tu aqui? olhar de piedade,
Gota de mel em taça de venenos. . .
Pura essência das lágrimas que choro
E sonho dos meus sonhos! se és verdade,
Descobre-te, visão, no céu ao menos!»
Breve hermenêutica: Na 1ª quadra Antero partilha a sua ideia ou visão de Deus, algo platónica porque faz logo a sua supremacia ou incomparabilidade em relação a qualquer beleza terrena, e estimula-nos a trabalharmos diariamente, seja na oração e meditação, seja na reflexão e escrita, pela melhoria da nossa compreensão vias de aproximação e religação à Divindade, tão desconhecida da Humanidade, e que foi por Antero invocada enquanto visão e evocada enquanto oração-poema, sob o título Ignoto Deo, Ao Deus ignoto, Ao Deus desconhecido.
Quando Antero de Quental escreve este soneto em meados do séc. XIX as concepções de Deus de base cristã, católica ou protestante, eram as predominante na maioria dos seres mais religiosos, apenas postas em causa pelos adeptos do paganismo, do panteísmo e do panpsiquismo (que Antero valorizou), e pelo que começava a brotar do Espiritismo, do Budismo (também por ele apreciado) e da Teosofia, enquanto que nos não-crentes o materialismo, o ateísmo e o agnosticismo cresciam bastante.
O que Antero, jovem genial (que não nas notas, onde chumbou até um ano) com 19 ciclos anuais do seu signo de Aries confessa, exprime e partilha de mais valioso é a aspiração ardente da sua alma a conhecer Deus, o qual ele sente em "sonhada visão" como o brilho ingente, isto é, não natural, não do tamanho da gente, do Sol tanto sobre ele como sobre o mar, e na 1º versão de 1861 evocado como o "mar anil", azul. Uma imagem tanto real no mundo físico como no espiritual, em que sobre as águas ou ondulações energéticas afectivas e psíquicas da nossa alma o Sol espiritual ou Divino pode infundir os seus raios ou reflectir-se, e para este desiderato ou fim muitas práticas de oração e meditação se ergueram ao longo dos séculos e muitos místicos testemunharam tal visão interior, com mais ou menos esplendor e impacto.
Este soneto foi lido por Fernando Pessoa e embora não traduzido para inglês como fez a muitos outros, pressentimos que a 2ª quadra possa ter tocado e influenciado Pessoa e logo vir ao de cima em alguns versos e personagens da Mensagem: o brilho ingente sobre o mar, o mundo é grande, a ânsia que arde nele...
A segunda quadra mostra-nos ainda a consciência forte que as aras ou altares dos templos não tinham para ele já suficiente energia vital, intelectual e anímica: não era nelas que o jovem revolucionário e em demanda de conhecimento filosófico, ecuménico e universal conseguia sentir ou intuir a Divindade, que denomina como Clemente, numa filiação etimológica romana, de bondosa, misericordiosa e que singrou no Catolicismo onde ele hauriu as primeiras luzes da adoração e aspiração ao Numinoso, muito sentido por ele também na poesia religiosa de Alexandre Herculano.
É uma visão divina bastante humana, e cristã, numa mescla da natureza paternal, filial e maternal, e sabendo nós como Antero amou fortemente a sua mãe ao longo da vida e que dedicou à Mãe Divina, à visão Dela, em sonho, um poema cheio de piedade, intitulado À Virgem Santíssima, Cheia de Graça, Mãe de Misericórdia, e que também concluirá a edição completa dos seus sonetos em 1886, no fim da sua extenuante jornada, com o soneto Na Mão de Deus, onde exprime o seu desejo de descansar o seu coração na "mão divina", qual "criança, em lobrega jornada que a mãe leva ao colo agasalhada", podendo-se assim descortinar o valor da face Feminina da Divindade em Antero, e até interrogarmos se Antero teria alguma vez orado a Deus Pai e Mãe e se teria intuído e valorizado a Deusa Mãe, que para a maioria dos cristãos se subsumiu em Maria, e a quem Antero dedicou piedosamente o tal soneto À Virgem Santíssima, Cheia de Graça, Mãe de Misericórdia, que afectiva e conceptualmente complementa excelentemente o soneto Na Mão de Deus, que embora sendo de lavra de 1882 foi escolhido para o fim que coroa a obra, dos Sonetos completos, de 1886.
O último terceto é também genial pois, numa compreensão de que Deus pode brotar em nós enquanto essência ou destilação das nossas lágrimas, e enquanto imaginação ou idealização das nossas melhores aspirações, pede-Lhe que, já que na Terra, nos templos e religiões não se encontra facilmente, ao menos como uma visão no céu lhe possa aparecer, visão interior pelo olho espiritual ou visão extraordinária ou miraculosa no céu exterior.
Sabemos que Antero de Quental não foi agraciado com tal desvendação divina, embora certamente tenha tido as suas iluminações relativas, sobretudo conceptuais mas também algumas, religiosas, poéticas e afectivas nos seus tempo mais juvenis. Foi assim avançando para a sua amiga Morte, corajosamente mas sem plenitude de despertar espiritual, antes suspirando ou até esperando por descanso para os seus nervos e alma abnegados e desiludidos.
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