segunda-feira, 4 de setembro de 2023

Daria Dugina: Juliano imperador e os princípios solares e do neoplatonismo aplicados na política. Tradução, com breves biografias dela e do imperador filósofo Juliano, por Pedro Teixeira da Mota.

 Uma das mortes mais trágicas para a Humanidade ocorrida nos últimos anos foi certamente a recente de Darya Aleksandrovna Dugina (Moscovo 15 de Dezembro de 1992 – Moscovo Oblast, 20 de Agosto de 2022), já que tanto se esperava dela após os seus juvenis frutos, valiosas primícias de uma intermediarização entre a sabedoria perene da Antiguidade e  a actualidade post-modernista, em que o caos de valores e significados, derivados do individualismo excessivo e anti-ético,  do neo-liberalismo opressivo globalista da elite ocidental e do excepcionalismo norte-americano e seu infinito dólar corruptor (e em Março de 2022 Daria foi incluída na lista das pessoas embargadas ou sob sanções), controladores dos principais meios de informação e logo das mentes e almas de muitos.
                                          
Brilhante jovem filósofa, filh
a de uma notável professora de filosofia, Natalia Melentyeva, e de Aleksander Dugin, um dos grandes filósofos do Logos na história humana, nomeadamente como autor da Noomachia, em vinte e quatro volumes, considerado um dos melhores teorizadores da civilização Euroasiática e da Tradição Perene, sobretudo ao nível dos paradigmas e da geoestratégia mundial, Daria Dugina Platonova, que estudara na Rússia e na França,  gerara já  valiosos ensaios e livros, para além de numerosos discursos e conferências, nos quais a sua visão tradicional e profunda do ser humano livre e da actualidade do platonismo  e do neoplatonismo numa humanidade multipolar e assente em princípios, governantes e companheiros justos e solares, face às sombras da post-modernidade em que nos encontramos, e que ela confrontou (por exemplo na crítica a Gilles Deleuze e seus seguidores),  abriu  sulcos luminosos para o alto e em torno nas almas que a ouviam e  viam, liam e tocavam.
                                         
O assassinato perp
etrado por uma cobarde agente dos serviços secretos ucranianos ceifou uma vida que estava grávida do muito que poderia contribuir para a melhoria da Humanidade. Caberá a alguns de nós mantê-la viva na Terra e no mundo político, inspirados pela seu espírito corajoso agora nos mundos espirituais.
                                                                           
A condecoração que a sua mátria
e santa Rússia lhe atribui, ou mesmo a gratidão que muita gente e em especial alguns dos seus admiradores e amigos lhe testemunharam e sentem, serão pouco para o muito que ela merecia.
                                                    
É sobretudo na leitura, reflexã
o e partilha dos princípios, ideias e sentimentos contidos nos seus textos e livros, que começaram a ser mais traduzidos e divulgados hoje, que a podemos comungar, revivificar e continuar.
                                    
Vamos poder ler em seguida o ensaio de Daria Dugina Platonova sobre as aplicações políticas da filosofia neoplatónica pelo imperador romano Juliano, um místico pagã
o e solar que entre nós teve em Fernando Pessoa um seu admirador, o qual, na época da revista Orfeu e nos anos seguintes, teorizou o Paganismo e  a sua ressurgência, fundando (teoricamente) um Concílio Pagão e um Conselho Magistral do Neopaganismo Portuguêsafirmando a grande afinidade com o seu tipo de mística mitraísta, ocultista e teosófica, escrevendo que «mais do que, propriamente, o dos neoplatónicos é meu o paganismo sincrético de Juliano Apóstata» e chegando a admitir mesmo ser uma sua reincarnação, restando-nos  de tal admiração e especulações alguns fragmentos poéticos, filosóficos e ocultistas de valor. Certamente apreciaria muito este texto profundo e esclarecedor de Daria Dugina,  que alargaria a sua visão sobre Juliano, o paganismo, o neoplatonismo, e a metafísica da realeza, império ou soberania solar, ou logóica.

O Imperador Juliano, que sofrera  o assassinato do seu pai e os seus irmãos mais velhos quando tinha seis anos, nas lutas de sucessão do Império, e vivia em Constantinopla, onde nascera em 331, veio a tornar-se, depois dum trajecto vasto que o levou a contactar e a aprender com vários seres importantes em sucessivos locais, um valioso investigador da filosofia  e da espiritualidade, desenvolvendo e aprofundando  o neoplatonismo e o culto do deus do Sol, Hélio, para ele e os neoplatónicos considerado uma hipóstase, ou avatarização do Logos ou Inteligência-Razão Divina no Cosmos ao nível humano. 
Após esse período de estudos, meditações e práticas espirituais, em que sentiu mais de uma vez os influxos espirituais e divinos, entrou numa nova fase da sua missão, quando o seu tio o nomeou  em 355 César, ou seja vice-Imperador, na zona da Gália e Germânia onde, após uma curta preparação de estratégia e de melhoria do latim, já que falava grego, e graças as suas virtudes austeras e resistentes, obteve triunfos estratégicos e heroicos em várias campanhas, além de uma melhoria notável da administração, pelo que, apesar de todas as calúnias e conspirações, veio a ser nomeado  à hora da morte pelo seu tio e imperador Constâncio II como o seu sucessor.
Exerceu tal função soberana  entre 361 e 363 com grande integralidade e universalidade, ou seja, nos três mundos metafisico, psíquico e material, exaltando e aplicando os valores civilizacionais tão evoluídos do Helenismo, embora religiosamente, face ao Cristianismo (tolerado desde 311) e à sua pressão crescente e destruidora do Paganismo, de facto bastante dividido e não unificado,  desenvolvesse mais as letras e a moral antiga e apoiasse sobretudo os cultos tradicionais greco-romanos, nomeadamente o da Deusa Mãe de todos os deuses, Cibele, a Grande Mãe, a quem dedicou com grande entusiasmo hinos, e o de Atena, a quem se refere na sua carta aos Atenienses como sua protectora efectiva, através dos seus daimons, anjos ou espíritos celestiais: «Ela guiou-me em toda a parte, e rodeou-me por todos os lados dos anjos ou espíritos guardiões que o Sol e Lua lhe atribuem».
E sobretudo o do Sol, Hélio, a linhagem espiritual em que Juliano se sentia,  sobretudo depois de aprender na escola neoplatónica de Pérgamo com dois discípulos do famoso Jâmblico, Prisco e Máximo de Éfeso, ao ser iniciado em 351 nos mistérios do Mitraísmo,  e que com o culto solar e ígneo de Mitra-Sol e os valores fraternos e de disciplina na batalha entre a Luz e as trevas se tornaram decisivos para que a civilização romana e os seus exércitos se robustecessem e resistissem mais tempo tanto à pressão envolvente dos povos não romanizados como à do Cristianismo, com as suas qualidades e defeitos, o qual Juliano restringiu e não apoiou, de tal modo que veio a ser chamado pelos historiadores cristãos de Juliano, o Apóstata, já que renunciara ao baptismo no credo cristão ariano a que fora obrigado em criança, "apostasia" que historiadores ou apolegistas  não podiam ou não quiseram compreender como condição para a sua tentativa de preservar na fase final do paganismo do Estado romano a tradição duma Teologia Antiga inspirada, de uma Filosofia Perene que a comentava e de uma Ética viva, e que mesmo assim foi em parte assimilada pela nova religião.
                                                           
Daria Dugin no seu ensaio realça v
ários aspectos importantes do pensamento tradicional metafísico de Juliano e logo da aplicação deles e clarifica as perspectivas e julgamentos que se podem fazer sobre a sua vida e obra, nomeadamente na sua intencionalidade e verticalidade, religiosidade e metafisica. Certamente que se poderia acrescentar muitíssimo ao que escrevemos sobre esta fascinante personalidade, que deixou várias obras poéticas e de epistolografia, além de religião e política, e veio a morrer fatalmente cedo, com 33 anos, sendo 29 os de Daria Dugina Platonova, numa batalha, ao fim de dois anos apenas no seu posto de Imperador e soberano metafísico. Leiamos então, talvez melhor preparados pelas contextualizações e com as notas minhas, entre parênteses rectos e curvos no texto, Daria Dugin, hoje guia e musa nossa nos mundos espirituais:
                                   Resumo apresentacional
«Este artigo trata da
implementação da filosofia política do Neoplatonismo pelo imperador Flavius Claudius Julianus. O seu reinado não foi uma tentativa de restauração ou restabelecimento do Paganismo, mas sim uma temática metafísica e religiosa completamente nova, que não combinava nem com o Cristianismo, que ainda não adquirira uma sólida plataforma política, nem com o Paganismo [(tão dividido, algo caótico e em crenças nos deuses e ritos muito enfraquecido)], que estava a perder rapidamente a sua antiga força. A categoria central da filosofia política de Juliano é a ideia do "mediador", o "Rei Sol", que encarna uma figura e uma função metafisicamente necessárias para o mundo, semelhante ao "soberano-filósofo" de Platão, ligando o mundo do intelecto ao mundo material. Seguindo o princípio platónico da homologia entre o metafísico e o político, Juliano vê em Hélio tanto um elemento da hierarquia do mundo, que proporciona uma ligação entre o mundo intelectualmente compreensível e o mundo material, como também a figura política do Soberano, o Rei, que na filosofia política de Juliano torna-se um intérprete das ideias para o mundo não iluminado, distante do Uno. O objetivo principal deste trabalho é reconstruir a filosofia política do imperador Juliano e procurar o seu lugar no panorama da doutrina neoplatónica. O curto mas coloridíssimo reinado de Juliano foi uma tentativa de construir uma Platonopolis universal, alinhada com os princípios do Estado de Platão.  Muitos dos princípios desenvolvidos na filosofia política de Juliano seriam mais tarde absorvidos pelo Cristianismo, substituindo o edifício em desagregação da Antiguidade.

                                                 Introdução
 Os historiadores do Platonismo tardio adoptam frequentemente a perspetiva segundo a qual o Neoplatonismo não incluía o plano político nas suas esferas de interesse e estava exclusivamente orientado para a contemplação, centrando-se no Um apofático (Ἕν) [(do qual pouco ou nada se pode dizer)], na hierarquia das emanações e nas práticas teúrgicas. Esta posição é defendida, em particular, pelo historiador alemão do platonismo Ehrhardt [Ehrhardt, 1953]. Esta posição foi repetidamente criticada na obra de Dominic O'Meara Platonopolis: Platonic Political Philosophy of Late Antiquity. Um dos argumentos decisivos quanto a isto é o caso do imperador Juliano (331 ou 332-363), que não só ofereceu uma versão desenvolvida da teoria política neoplatónica, mas também deu uma série de passos decisivos na sua aplicação prática na administração do império.

                                               Corpo do texto
O imperador Flavius Claudius Julianus, representante da escola de Pérgamo do Neoplatonismo, é a imagem de um platónico que não só reflectia sobre a necessidade de um filósofo se empenhar na política (de ser um governante), mas que, por um breve mas vivíssimo período foi imperador do Império Romano, um imperador que encarnava na sua figura o projeto político do Estado ideal de Platão. Esta combinação de alta veneração da vida contemplativa e do serviço político era rara (houve muito poucos imperadores-filósofos na história - um deles foi Marco Aurélio, um pensador que, em muitos aspectos, também inspirou Juliano). "Raramente se encontram sonhadores deste estilo entre os príncipes: é por isso que devemos honrá-lo." [Duruy, 1883], observa o historiador francês Victor Duruy. Uma diferença notável em relação aos seus antecessores seria a sua verdadeira e própria obsessão pela filosofia, cuja manifestação máxima era, aos olhos do próprio Juliano, a doutrina neoplatónica. O jovem imperador foi particularmente atraído por Jâmblico (245/280-325/330), representante da escola síria do neoplatonismo. A escola de Pérgamo, onde o próprio Juliano estudou, era uma espécie de ramo da escola síria e Jâmblico era 
considerado uma autoridade incontestável.

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Pérgamo.

Para Juliano, Jâmblico era um modelo do "místico e perfeito" [Julian, 2016], e nos seus escritos encontrava "a sabedoria perfeita que só o homem pode descobrir". No entanto, um biógrafo de Juliano, Jacques Benoit-Meschen [Benoit-Meschen, 2001], observa que Juliano não se limita a ecoar e a reproduzir os ensinamentos de Jâmblico, mas integra-os e desenvolve-os, elaborando a doutrina do elemento intermédio ("mundo intermédio"), o Rei Sol (em três hipóstases), detalhando deste modo a configuração metafísica da filosofia neoplatónica.
A hipóstase mais elevada do Sol era o Sol apofático, idêntico ao Um (Ἕν) de Plotino. O Sol intermédio era a Luz metafísica, que liga os mundos especulativos (noéticos) ao Cosmos. Finalmente, a terceira hipóstase do Sol era o Sol do mundo corpóreo visível, representando
o limite inferior das emanações do princípio absoluto.
Para Juliano,
a questão da conexão entre a mente e o mundo material (ou seja, o problema do "Sol do meio") torna-se a principal. E ele procura simultaneamente uma resposta para ela tanto ontológica como politicamente. Para ele, como para qualquer platónico, os planos político e ontológico estão interligados e são homólogos. O mediador, Hélio, é para Juliano simultaneamente uma figura metafísica e política, o Rei (e em referência ao Sol, Juliano usa os substantivos βασιλεύς - basileu ou rei, κύριος - kirious senhor, e os verbos ἐπι-τροπεύω - ser guardião, gerente, e ἡγέομαι - administrar, liderar, preceder). Os paralelos entre Hélio e a figura do governante permeiam todo o hino Ao Rei Sol. Por exemplo: "Os planetas conduzem uma dança redonda à volta dele [Hélio], mantendo as distâncias como à volta do seu rei" [Julian, 2016]. Tal como Hélio, o Deus Sol, actua como intérprete das ideias no mundo sensual, o imperador-filósofo é um companheiro, um acompanhante do Rei Sol. É o "companheiro" (ὀπᾱδός) que Juliano chama a si próprio no início do hino [ibid]. Todo o governante, observa Juliano no seu tratado Sobre os actos do autocrata e do Reino, deve ser um servidor  e um adivinho do rei dos deuses [Hélios] [ibid].

 Também do Rei Sol, Hélio, a sabedoria e o conhecimento, bem como a essência, são adoptados por Atena, a deusa padroeira da polis [(ou cidade)] e dos Estados: a sua sabedoria, que provém de Hélio, "é a base da comunicação política" [ibid.] Na concepção de Juliano, Hélio acaba por ser o fundador de Roma e Juliano demonstra na lenda segundo a qual a alma de Rómulo teria descido do Sol à Terra, que: "a estreita convergência de Hélio e Selene (...) tornou possível a descida da sua alma à terra e, depois da destruição da parte mortal do seu corpo pelo fogo do relâmpago, a sua ascensão da terra " [ibid.]

 A unidade da Luz entendida metafisicamente, simbolizada por Hélio, permeia todo o sistema da filosofia juliana. De acordo com a visão neoplatónica, a unidade é sempre apofática [impossível de se verbalizar] e só pode ser alcançada tangencialmente. A forma mais elevada de Unidade é acessível através da genada [(?)], a comunhão com o Uno. Por isso, o cosmos está como que reunido, gravitando em direção ao Uno, mas nunca o alcançando. Mesmo a hipóstase mais elevada do Rei Sol em Juliano é apofática. A natureza da Luz tem origem nesta obscuridade apofática do Sol invisível e a partir daí permeia todos os outros níveis da criação. O Estado, entendido como império, isto é, como reunião da multidão dos povos numa unidade, é como uma genada [(?)]. Não é a Unidade em si mesma nem a Luz em si, mas a vontade em direção a ela, o movimento em direção a ela. E, tal como a alma ou essência do rei desce das esferas superiores, assim o próprio reino aspira ao rei como sua fonte, que informa a política com a graça genésica [(?)].

Juliano propôs-se a tarefa quase impossível de realizar o ideal platónico do rei-filósofo, no contexto do Império Romano real do século IV e dum cristianismo cada vez mais poderoso e influente,  para se tornar um "companheiro" do Sol que fosse um garante da justiça (δικαιοσύνη). "A sua principal força motriz era um sentido de responsabilidade tão forte como o do filósofo no trono, Marco Aurélio, que o filósofo Juliano admirava" [Zalinsky, 2016].
Durante o ano e meio do seu reinado imperial (e alguns anos como César, na Gália, antes disso), Juliano, guiado pelos princípios do Estado platónico (como Walter Hyde observou com razão, "Juliano pôs em prática a teoria platónica" [Hyde, 1843]), tentou harmonizar o sistema político com o ideal filosófico da tradição filosófica platónica [Athanassiadi, 1981], e conseguiu-o em parte.

 Político de sucesso, mostrou-se simultaneamente seja um líder valoroso (vitórias brilhantes na Gália sobre os Germanos, comando eficaz do exército até à sua morte - até à última batalha com os Persas, na qual o imperador foi morto) seja um reformador radical da fé pagã, que perdia força devido ao advento da nova religião cristã, de contornos ainda pouco nítidos (na altura fragmentada por inúmeras interpretações, vigorosamente polémicas entre si). Juliano não foi só um governante laico, mas procurou também encarnar a imagem ideal de um rei-filósofo na sua conceção ontológica - pancósmica - em estreita consonância com os esquemas simbólicos em estreita conformidade com os padrões simbólicos do neoplatonismo. A declarada tolerância religiosa de Juliano baseava-se também nas suas profundas convicções filosóficas. Não se tratava de uma simples rejeição da cristianização do Império em favor do secularismo, e ainda menos da substituição de uma religião por outra. De acordo com o pensamento de Juliano, a fé, a religião, a autoridade - o reino da opinião (δόξα) - devem ser subordinadas a um princípio superior, o Rei do universo, "aquele em torno do qual tudo está ou é".

 Mas esta subordinação não podia ser formal, porque toda a estrutura hierárquica do princípio dominante - o Rei-Sol - estava aberta a partir de cima, ou seja, era genésica [(?)]. Na estrutura da filosofia neoplatónica, só se pode ter a certeza do movimento em direção ao Um, mas não do próprio Um, que é inatingível. Consequentemente, o modelo político de Juliano representava o princípio de um "império aberto", no qual o imperativo era a busca da sabedoria, mas não a Sabedoria em si, dado que esta não podia em última análise ser encarnada em qualquer conjunto de princípios - não apenas cristãos mas também pagãos. Mas a conclusão desta abertura foi o oposto das tendências seculares da nova era [(cristã)]: o sagrado e o princípio da Luz devem governar, e este é o imperativo da filosofia política juliana, embora esta regra não possa ser fixada em leis imutáveis. O significado da Luz é que ela é viva. E, da mesma forma, o Império revelado e o seu governante devem estar vivos. Aqui a própria noção de filosofia recupera o seu significado mais profundo. A filosofia é amor pela sabedoria, um movimento em direção a ela. É uma busca da Luz, um serviço ao Rei Sol, uma companhia com ele. Mas se dermos a esta sabedoria um carácter formalizado, não estamos a lidar com filosofia, mas com o sofisma. O que Juliano manifestamente rejeitava no cristianismo. 

Enclausurando-se em  dogmas rígidos, a genuflexão do Império aberto foi substituída por um código alienado, e assim o império fechou-se ao alto, perdendo a sua sacralidade total a favor de uma única versão possível da religião. O reino da opinião (δόξα, doxa) é conscientemente o reino do relativo, do contingente. Deve ser orientado para o Sol, caso em que a opinião se tornará ortodoxia (ορθο-δοξία), uma "opinião correcta", mas ainda assim uma opinião.

 O que é interessante sobre o destino de Juliano é o facto de ele não ter tido qualquer desejo particular de conquistar o poder, preocupando-se sobretudo com a filosofia e maravilhando-se com os rituais teúrgicos. Juliano foi, antes de mais, um filósofo e, só por força da inevitabilidade, do destino, do presságio e do caminho escolhido para ele por Hélio, um soberano. No Elogio de Juliano, retórico Libânio observa que: "ele não se esforçou por dominar, mas pelo bem-estar das cidades". [Libânio, 2014], e anteriormente o retórico observa que, se no tempo de Juliano tivesse havido outro candidato ao trono capaz de reavivar o helenismo, Juliano "teria evitado obstinadamente o poder". Juliano era um filósofo condenado pela Providência à descida, à emanação, pelo que a sua missão era demiúrgica e soteriológica. Estava destinado a tornar-se um governante e em virtude da sua natureza filosófica um companheiro do Sol.

  A capacidade de mediar  do Sol, de que falámos acima, a sua liderança corresponde à posição do rei-filósofo no estado ideal. Tal como Hélio, na sua atividade demiúrgica que gera ou adorna muitos eidos [(ou ideias)] ("pois alguns eidos ele aperfeiçoou, outros produziu, outros adornou, outros despertou [à vida e a identidade], de modo que não há uma única coisa que possa vir à existência ou nascer fora do poder demiúrgico que emana de Hélio" [Juliano, 2016]), assim também o filósofo-diretor dá a sua justa delimitação às propriedades. Ele, o "mediador", é o agente do verdadeiro conhecimento da natureza secreta das coisas e o organizador da ordem com base nesse verdadeiro conhecimento. Hélio é também associado por Juliano a Apolo, o qual estabeleceu oráculos por toda a Terra para dar aos homens a verdade inspirada pela Divindade. Hélio-Apolo é também considerado pelo imperador como o progenitor do povo romano, o que acrescenta à doutrina política de Juliano a tese da "escolha divina" dos Romanos.
Hélio-Zeus aparece também como o portador do princípio real. E também o deus dos mistérios noturnos Dionísio, que se torna em Juliano uma outra encarnação do Sol, Hélio-Dionísio, sendo também interpretado como uma continuação do mesmo princípio real nas profundezas dos mundos corpóreos. Zeus, Apolo e Dionísio, segundo Juliano, assinalam os três momentos no demiurgo político do governante perfeito: como Zeus governa o mundo, como Apolo, escreve as leis e impõe a vertical sagrada do Império Solar, como Dionísio, patrocina as religiões, os cultos e as artes, supervisiona os mistérios e ordena as liturgias.

 Está provado que a imagem do Sol Mediador impressionou de tal modo o imperador que o induziu, na reforma do exército romano, a substituir no brasão imperial a inscrição cristã "Neste signo vencerás"  pela dedicatória mitraica "Sol Invencível". Obviamente, a imagem de Mitra é tomada aqui como uma metáfora filosófica e não como uma indicação de que foi o Mitraísmo que inspirou as reformas religiosas e políticas de Juliano. Sol Invicto é o próprio Rei Hélio na sua natureza original generalizante. Poderia servir como denominador comum de várias imagens religiosas - no espírito da síntese neo-platónica ou daquilo a que o  neo-platonista posterior Proclus chamaria Teologia Platónica. [Proclus, 2001].
No caso desta substituição de In hoc signo vincis por Sol invictus, que é por vezes interpretada como o exemplo mais claro de "restauração pagã", podemos ver outra realidade: não a substituição de um culto por outro, mas o apelo a uma fonte filosófica comum a várias religiões e credos. Tal como o império une as nações e o reino, também uma sacralidade imperial integral eleva todas as formas privadas a uma fonte genésica [(no italiano (genadica)]. De resto, a cruz é também um símbolo solar e, no brasão imperial, estava muito associada ao episódio da vitória militar e ao florescimento político de Roma sob Constantino.

  Conclusão

A era de Juliano foi uma tentativa de construir um Império-Platonopolis  universal: como um verdadeiro platónico, Juliano procurou abraçar e reformar todas as áreas - tanto a religiosa (a introdução de ritos penitenciais, caridade,  dando aos cultos pagãos formais um caráter ético, o Édito sobre a tolerância religiosa), como a da vida na corte (a racionalização do pessoal da corte, convite a estarem na corte  filósofos, oradores e sacerdotes nobres,  restauração do estatuto e do poder anteriores do Senado), bem como a vida financeira (a restauração do autogoverno urbano, a transferência para os municípios do direito de cobrar impostos em benefício das cidades). Mas o curso da história já estava  predeterminado. O Cristianismo, embora tendo absorvido alguns elementos do Helenismo (em particular, incorporando a doutrina da realeza platónica e assimilando os melhores elementos do misticismo e da teologia neoplatónicos), demoliu irreversivelmente o vetusto edifício da antiguidade.

 O historiador Inge observa que Julian "era um conservador quando não havia mais nada para conservar". [Inge, 1900]. O tempo de Juliano havia passado e um novo governante havia chegado ao mundo. A partir de então, a sacralidade imperial e a missão metafísica do imperador foram interpretadas em um contexto estritamente cristão - como a figura de um catecúmeno (κατέχων), que retém, cuja semântica foi determinada pela estrutura da escatologia cristã, na qual o imperador ortodoxo, de acordo com a interpretação de João Crisóstomo, era visto como o principal obstáculo à vinda do Anticristo. Mas mesmo nesse conceito de catecúmeno é possível discernir ecos distantes da ontologia política do Rei Sol, já que no bizantinismo o império também se torna um fenómeno metafísico e, portanto, adquire um caráter filosófico. Trata-se, no entanto, de uma versão substancialmente reduzida do platonismo político, já que mais particular e definida dogmaticamente em relação ao âmbito mais universal da filosofia política de Juliano.

 Bibliografia

1. Athanassiadi P. (1981) Julian: An Intellectual Biography. Oxford: Clarendon Press.
2. Benoit-Meschen J. (2001) Yulian Otstupnik [Julian the Apostate]. Moscow: Molodaya gvardiya Publ.
3. Bowersock G. (1978) Julian the Apostate. London.
4. Duruy V. (1883) Annuaire de l'Association pour l'encouragement des études grecques en France. Revue des Études Grecques, 17, pp. 319-323.
5. Ehrhardt A. (1953) The Political Philosophy of Neo-Platonism. In: Mélanges V. Arangio-Ruiz. Naples.
6. Gardner A. (1895) Julian Philosopher and Emperor and the Last Struggle of Paganism Against Christianity. London: G.P. Putnam's Son.
7. Hyde W. (1843) Emperor Julian. The classical weekly, 37, 3.
8. Inge W.R. (1900) The Permanent Influence of Neoplatonism upon Christianity. The American Journal of Theology, 4, 2.
9. Julian (2016) Polnoe sobranie tvorenii [Full collection of works]. St. Petersburg: Kvadrivium Publ.
10. Libanius (2014) Rechi [Speeches]. St. Petersburg: Kvadrivium Publ. Vol. 1.
11. O’Meara D.J. (2003) Platonopolis. Platonic Political Philosophy in Late Antiquity. Oxford: Clarendon Press.
12. Proclus (2001) Platonovskaya teologiya [Platonic Theology]. St. Petersburg: Letnii sad Publ.
13. Veyne P. (2005) L'Empire Gréco-Romain. Paris: Seuil.
14. Zelinskii F.F. (2016) Rimskaya imperiya [Roman Empire]. St. Petersburg: Aleteiya Publ. 

For citation
Dugina D.A. (2018) Politicheskii platonizm imperatora Yuliana [The political Platonism of the Emperor Julian]. Kontekst i refleksiya: filosofiya o mire i cheloveke [Context and Reflection: Philosophy of the World and Human Being], 7 (2А), pp. 32-38. 

Keywords 
Political Platonism, Neoplatonism, Emperor Julian, late Platonism, political philosophy of Neoplatonism. 

Palavras Chaves
Platonismo político, Neoplatonismo, Imperador Juliano, Platonismo tardio, Filosofia política do Neoplaton
ismo.

Tradução minha da tradução italiana Il platonismo politico dell'imperatore Giuliano por Lorenzo Maria Pacini, publicada em 27.VIII.2023, em www.geopolitika.ru, do ensaio da filósofa e mártir Daria Dugina Platonova. 

                                           

Muita luz e amor na sua alma e espírito! 

Que como "companheira" do Sol central da Divindade, Logos, Hélio, Zeus, seja também companheira, guia e subtil inspiradora dos que a admiram, estudam e amam, ou a meditam e invocam!

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