quarta-feira, 30 de agosto de 2023

A Rosa e a Violeta, sainete num acto, manuscrito de Higino da Costa Paulino. Pangim, Índia, começos do séc. XX. Inédito até hoje.

Esta pequena peça num acto, A Rosa e a Violeta, um sainete, na terminologia de origem espanhola, foi escrita em Pangim, Goa, Índia Portuguesa, nos começos do século XX, por Higino Augusto Mascarenhas da Costa Paulino, que ali casou com Maria Helena Gama de Noronha e foi o pai da minha avó materna Fernanda Maria, e onde viveu trinta  anos bem criativos e animados.

Jovem de vinte anos, em 1888, Lisboa.

Em Lisboa estudara Medicina mas depois deixou-a e dedicou-se mais às artes:  música,  poesia,  pintura,  piano, tendo sido director da revista lisboeta Gazeta Musical, Jornal Ilustrado Theatros, Musica e Bellas Artes, nos anos de 1886 a 1888, onde conviveu bem e publicou sob o pseudónimo de Gino várias biografias de compositores, pianistas e cantoras, algumas delas já transcritas para este blogue.

                                         

Conhecera a sua futura mulher Maria Helena Corrêa da Silva e Gama de Noronha em Queluz, mas que, nascida numa família há séculos na Índia em Goa  vivia, o obrigou, por indicação do seu pai D. José Joaquim de Noronha  a partir para esse Oriente de sonho, onde se casou e foi inspector dos Caminhos de Ferro, e pai de seis crianças (duas delas viriam a publicar dois livros de memórias da Índia), entregando-se à educação cultural, artística, moral e espiritual delas, e de outras crianças de Pangim, organizando récitas e representações teatrais, e escrevendo para tal mas também para outros fins,  poemas, alguns impressos em folhas volantes, como também realizava o seu amigo e mais famoso poeta Fernando Leal, o grande amigo de Antero de Quental (curiosamente casado com Guiomar, irmã da sua mulher Maria Helena) e peças teatrais, uma só impressa e que foi representada em benefício das crianças da Bélgica aquando da 1ª grande guerra, Pátria, que possuo mas que não está registada na Porbase, o catálogo online da Biblioteca Nacional e de outras bibliotecas públicas. Possuímos, além deste sainete que a minha mãe, sua neta, me transmitiu e que pude agora transcrever, outra peça inédita também representada «em récita a benefício das Crianças belgas» nas noites de 9 e 23 de Setembro de 1926 no teatro Vasco da Gama, em Pangim.
Nele Higino aborda o facto de duas jovens amigas terem de participar um baile com o objectivo de conhecerem os seus noivos e eventualmente de submeterem-se à vida permanente com outrem, e de quem podem nada saber ou gostar. Numa altura em que os casamentos eram na maioria arranjados pelos pais, tais escolhas segundo os interesses e sensibilidades deles frequentemente só traziam desilusões e sofrimentos para as jovens ou jovens forçados a casar-se. E na sociedade indiana, que rodeava a indo-portuguesa, isso era flagrante e frequentemente trágico, dadas as diferenças de idade e a eventual morte em pira da viúva, sati, contra a qual também se insurgira numa peça Tomás Ribeiro, que fora à Índia em 1870 (do que deixou uma boa descrição da viajem), onde esteve dois anos como secretário geral do Governador Visconde de S. Januário, e foi um dos fundadores do valioso Instituto Vasco da Gama.  

Higino da Costa Paulino escolheu este título A Rosa e a Violeta, dentro do princípio homológico de que  os animais e as plantas simbolizam e espelham tanto qualidades abstractas e naturais como as virtudes e fraquezas dos seres humanos, e que  portanto podem-se deles tirar correspondências instrutivas valiosas, tal como as fábulas, os contos e os livros de emblemata transmitem-nos.  Com elas, Higino expande e insere na Natureza e na Flora as duas jovens  Noémia e Sílvia,  com as suas  diferenças de personalidade, riqueza, sensibilidade, intencionalidade e vias futuras possíveis,  as quais se acentuarão e se transformarão pela sabedoria e o amor,  ou seja a relação com o Amor, com elas, o outro, os outros,  numa vivência individual inter-relacional própria mas influenciada pela educação, pelos exemplos, pelo ambiente, ou mesmo pelas conversas sinceras em almas abertas à procura da verdade,  conjunção esta denominada na Índia satsanga, de sat, verdade, sanga, companhia.  A peça tem claramente intuitos didácticos, axiológicos, em certos aspectos estará algo datada ou, melhor, reflecte uma época e meio, sendo demasiado moralista para alguns, mas é uma peça pequena, divertida e séria e nas duas páginas finais, Higino, num certo golpe de génio, dramatiza-a mais e coroa-a com um poema em que enaltece o amor-caridade, usando contudo  a palavra esmola, que há que compreende-la, não num sentido de superioridade e coitadinho, tanto mais que muitas das suas peças foram representadas para angariar fundos para causas sociais, mas na sua etimologia de acto realizado por partilha de bens ou do tempo por compaixão, piedade,  benevolência,  empatia e unidade, qualidades estas do coração espiritual que ao longo da vida devemos desenvolver, e por vezes em vitória árdua sobre a insensibilidade,  desconfiança e egoísmo que nos desalinham do Amor Sabedoria e da Unidade da Humanidade.
A quais dos seus filhos e filhas terá lido, quem a apreciou, no que frutificou? E hoje, haverá quem ainda vibre em alguns passos com ela? Bem, eu  senti alguns sentimentos, e espero que algumas poucas de pessoas, além dos descendentes, ainda apreciem esta peça que entra assim, modesto vaso de rosa e violeta, no reportório da história do Teatro Português.  E exprimo a saudação e gratidão anímica a um antepassado criativo bom e sábio que certamente nos planos espirituais sorrirá connosco. Lux-Amor!


A ROSA E A VIOLETA

sainete em um acto

 

Personagens


Noémia
Sílvia

Actualidade

por Higino da Costa Paulino.


A ROSA E A VIOLETA

sainete em um acto


Sala de estar (boudoir) elegante de menina rica. Toilette Pompadour (ao estilo, no séc. XVIII, da famosa amante de Luís XV). Observa-se alguma desordem na disposição do mobiliário. Vestidos e ao centro está um candeeiro acesso, com o respectivo abat-jour. Sobre andas espalhadas ao acaso sobre alguns móveis. É noite e na mesa mesa e toilette alguns ecrans com joias. Uma coluna de madeira sobre a qual assenta um vaso de flores, uma estatueta ou um candeeiro. Nóemia em elegante vestido de baile. Trata de cingir no pescoço um colar de pérolas, em frente do espelho.
Sílvia também em traje de baile, toda de branco, sem jóias, penteado liso, trazendo ao pescoço uma fita preta de veludo donde pende uma cruz de ouro, entreabre o reposteiro

CENA ÚNICA

Noémia e Silva.


Sílvia (Entre portas)
Pode-se entrar?
Noémia
(Em face do espelho, sempre preocupada com o colar) Pois não, já pronta?
Sílvia
Não é cedo.
Noémia
Como te enganas, minha Sílvia! Não devemos entrar no baile antes da meia noite, é o chic! Tua mãe onde está?
Sílvia
No salão pequeno, conversando com a tua. Mandaram-me para aqui, vim.
Noémia
E fizeste muito bem! Provavelmente elas desejam estar sós.
Sílvia
É possível, pelo menos assim parece... mas porque será?
Noémia
Nada sei ao certo, mas desconfio! Por mais que diligencie não consigo fechar este colar! Se tu me auxiliares, minha boa Sílvia...
Sílvia
Com muito prazer. É lindo... não t'o conhecia!
Noémia
Não admira. Deu-me o meu pai, há apenas três horas. É realmente um encanto. As pérolas são o emblema da mocidade, as joias únicas que nos são mais próprias, dizem, mas eu dou preferência aos diamantes, embora os moralistas proclamem que o seu brilho é um reclamo a quem os usa e por consequência impróprias à nossa idade. Mas minha querida Sílvia, tempo virá, em que elas façam parte da nossa corbeille de noivas.
Sílvia
Noivas?
Noémia
Noivas, sim!... então nós havemos de permanecer toda a vida solteiras?
Sílvia
Quem sabe...
Noémia
Credo: Longe vá o teu agoiro! (Reparando no traje de Sílvia) Mas como te vestiram para um baile: parece que vais tomar a primeira comunhão. E para rematar esta cruz ao pescoço, pendente de uma fita preta.
Sílvia
Então não estou bem assim?
Noémia
Só te faltam, minha Sílvia, o livro de orações, a grinalda de flores e o véu branco. Que ausência de bom gosto! Nem sequer um pequeno decote... os cabelos lisos... sem brincos... que esquisitice! Assim ninguém repara em ti, só pela excentricidade chamarás à atenção! Vou pôr-te uns brincos meus, e com eles ficarás melhor. (Vai buscar um estojo donde tira um par de brincos) Senta-te aqui. (Sílvia senta-se junto à toilette, Noémia põe-lhe os brincos). Já me pareces outra! E se tua mãe não se zangasse... vestia-te um dos melhores vestidos...
Sílvia
Não, não, isso não!
Noémia
Como queiras! Desconfio, porém que alguma coisa se trama, a que não somos alheias, embora nada nos tenham dito.
Sílvia
Também eu tenho algumas suspeitas
Noémia
Sim? Diz, diz, o que sabes.
Sílvia
Minha mãe recebeu, ontem, da tua duas cartas.
Noémia
Como soubeste?
Sílvia
Foi teu criado Ervafólio quem as levou. Eis o que se passou. Tinham anunciado o almoço, quando tocaram a sineta do portão. Eu já estava na sala da mesa, quando a minha criada Júlia entrando, me disse terem trazido uma carta para a minha mãe. Cheguei à janela e vi sair o Ervafólio. Perguntando à mamã de quem era a carta, respondeu-me indiferentemente, como quem não dá importância, nem ao facto, nem à pergunta. De tarde volta de novo o Ervafólio, e diz-me a Júlia – veio mais uma carta! Em vista, pois desta assídua e estranhável correspondência, suspeitei desde logo que alguma coisa de extraordinário se passava
Noémia
Também me parece
Sílvia
Esta noite...
Noémia
Uma terceira carta...
Sílvia
Não... Meu pai, que nada de expansivo tem, como sabes, e que fica sempre mal humorado, quando a mamã e eu saímos, abraçou-me com muito afecto, e disse-me: Desejo-te que te divirtas muito, minha querida filha! Ora eu não achei tudo isto, natural à nossa vida íntima?
Noémia
Tens razão! Eu também estou persuadida que não somos alheias a essa correspondência, e até à conferencia secreta que se está realizando! Alguma coisa se projecta a nosso respeito. Disseste, que ontem minha mãe por duas vezes escreveu à tua, e eu, pela minha parte, estranhei também, que ontem, notável coincidência, a condessa de Miramar, e que nos oferece o baile, duas vezes aqui viesse, encerrando-se no gabinete com a mamã, e em tão prolongada conversa, que me causou admiração, o que me prova haver caso extraordinário.
Sílvia
É de supor... pelo menos!
Noémia
Mas ainda não é tudo!
Sílvia
Sim?
Noémia
Hoje em vez de ser penteada pela minha criada como é costume, mesmo quando vou a qualquer soirée, fui penteada por um cabeleireiro, que mandaram chamar, e cuja presença me surpreendeu! Desconfio bem, minha querida Sílvia, que vamos ter noivos pela proa e que necessitamos de estar alerta!
Sílvia
Se assim é, é mal pensado, é mal feito!
Noémia
Pelo contrário... é lindo, encantador
Sílvia
E quando assim seja, supões que nós possamos imediatamente simpatizar com esses dois rapazes... que talvez nem sequer conheçamos?
Noémia
Simpatizar desde logo... não direi... mas com o tempo, tudo é possível.
Sílvia
E gostarão eles de nós?
Noémia
Eu te digo (tira dum ramo um malmequer, ramo que há num vaso sobre a mesa, e desfolha-o) Mal me quer bem me quer muito pouco nada! (Deixa cair a flor) Nada! Já vês... uma desilusão.
Sílvia
(Tendo seguido atentamente o desfolhar da flor) Perdão, faltou-te uma palavra! Malmequer, bem me quer, muito, pouco, apaixonadamente, nada! Apaixonadamente foi o que a flor disse!
Noémia
Alimentemos essa esperança!
Sílvia
Que é consoladora!
(Riem-se ambas e ouve-se meia hora no relógio)
Noémia
Falta-nos apenas meia hora, já pouco tempo nos resta. É pena que eu não possa abrir um pouco mais esse teu decote, e modificar essa toilette de educanda! Quem te fez esse vestido?
Sílvia
Uma costureira que há muito tempos temos em casa. É muito modesta, mas tem habilidade, talha bem.
Noémia
Talha bem... à moda do século passado! Mas enfim tua mãe assim o quer, faça-se-lhe a vontade. Persuade-se talvez que vamos dançar com alguns meninos do coro, ou aprendizes de clérigos! Queres tu que ao menos te ponha um bocado de carmesin nas faces?
Sílvia
Não... não!
Noémia
Pois olha, é assim que nos teatros as actrizes se tornam lindas... Faces, lábios, sobrancelhas, … tudo pintam.
Sílvia
Mas eu não quero! Prefiro parecer o que sou!
Noémia
Faz o que quiseres. (Outro tom) E se nós ensaiássemos a nossa entrada nos salões do grande mundo?!
Sílvia
Pois sim... mas como?
Noémia
Vamos ver! (Dispõe a perna como o melhor convier) Aqui as mães de família, as avós e outras matronas já reformadas: (Continuando a preparar a cena) Agora... aqui... as meninas solteiras, sob as vistas austeras de toda a veneranda parentela. (A Sílvia) Senta-te, Eu faço de condessa de Miramar e esta coluna será o visconde de Sousel teu futuro marido.
Sílvia
O visconde de Sousel... meu marido?
Noémia
Não te assustes. É por enquanto uma suposição. Vou conduzi-lo à transparência, e depois digo-te: Minha menina, eis aqui o senhor visconde de Sousel, que deseja ser-lhe apresentado. Tu levantas um pouco a cabeça, apenas por instantes, pousando logo e apenas por instantes, pousando logo em seguida os olhos no chão. E contudo indispensável sorrir e dizer: Tenho muito prazer em conhecer V. Exª. Ele em seguida, sem dúvida, pede-te a primeira valsa... Suponho que não te proibiram de dançar?...
Sílvia
Não, a mamã consultou a esse respeito o nosso confessor.
Noémia
Muito bem, está salva a honra do convento! Mas que respondes tu ao visconde?
Sílvia
Que concedo a valsa...
Noémia
Imediatamente? Sem mais uma palavra?
Sílvia
Pois que mais hei de dizer eu dizer?
Noémia
Ouve-me, minha Sílvia. Tu consultas em primeiro lugar o teu carnet (caderninho pessoal), dizendo ao mesmo tempo: Vou ver se ainda tenho alguma valsa disponível... e logo a seguir acrescentas, - apenas posso conceder-lhe o terceiro two steps (tipo de dança, e não fácil...). Naturalmente ele insiste, lamenta-se, e tu então, condescendente, dizes-lhe, que a primeira valsa está prometida a pessoa de família, ou de muita intimidade, e como tal, essa pessoa a teu pedido a trocará pelo two steps... portanto a valsa pedida é concedida.
Sílvia
E se valsando ele me falar?...
Noémia
Não te inquietes por isso! Eis palavras que a valsa inspira, ou as leva o vento, ou trazem um pedido...
Sílvia
Um pedido?
Noémia
De casamento
Sílvia
É possível... mas...
Noémia
Mas... o quê?
Sílvia
Conheces o meu padrinho o general Atouguia?
Noémia
Perfeitamente, é um velho rapaz, muito simpático, sempre muito apurado, que já conta três , e é por todos muito querido. Também sei, que não obstante a sua avançada idade, todas as damas se orgulham de entrar pelo seu braço em qualquer salão!
Sílvia
Esse mesmo! Ora no meu dia dos anos trouxe-me ela esta cruz, que aqui vês ao pescoço e disse-me: pequena conserva sempre esse aspecto inocente e tímido. É ele o verdadeiro encanto de uma menina da tua idade. A simpliciade e a modéstia conquistam sempre o respeito e a simpatia de toda a gente de bom senso.
Noémia
E que mais?
Sílvia
Disse ainda: Repara nessas criaturas vaidosas, garridas, que às vezes ainda no verdor da mocidade, se apresentam nos teatros, nas salas em toiletes quase descompostas, ornadas de diamantes, que mais provocam a atenção, e às quais os homens fazem então a corte, engrandecendo-lhes a vaidade com frases banais, compremetendo-as depois.... mas que só os idiotas escolhem para esposas.
Noémia (muito preocupada)
E depois?
Sílvia
Os homens em geral são menos frívolos, menos cépticos do que maioria das vezes se supões, ajuntou meu padrinho. No fundo do seu íntimo, com o que eles mais sonham, é com uma mulher simples, terna, delicada, que seja a apetecida companheira da sua vida, a alegria do seu lar, a veneranda mãe dos seus filhos. Conserva pois, minha Sílvia, esse teu ar cândido e tímido, tão natural à tua idade, assemelhando-se à violeta, a mais humilde das flores e cujo perfume se denuncia a distâncias quando mesmo o oculta na mais densa folhagem.
Noémia (muito pensativa)
Sim... sim, deve ser isso!
Sílvia
E certamente não se engana quem como ele tem vivido no turbilhão do grande mundo.
Noémia
Mas... (Num impeto nervoso, com sufocação de riso e de choro) Não, não, não pode ser. Teu padrinho desvaira, como todos os velhos carunchosos, mal humorados, que sofrem de gota e de reumáticos, e que não podendo volver à mocidade, veem o mundo a fugir-lhes, e com a cabeça metida até às orelhas no clássico barrete de algodão, e os pés em pantufas de lontra querm ransformar o universo num vasto e austero convento, onde todos orram de enfado e inanição! Os nossos encantos, a nossa juventude, a vida enfim que nos sorrie e nos deslumbra, não a devemos sacrificar a qualquer sujeito, que nos obrige a cozer-lhes as peúgas e a remendar-lhes as calças, isso seria um sacrilégio! Tenho pena de não encontrar agora aqui na minha presença esse senhor general Atouguia, que já se bateu em três duelos, para o mandar de presente a minha tia Hermengarda, que já enviuvou de três maridos, que funga rapé e que sofre de um catarro crónico! Provavelmente oferecia-lhe outra cruz com a competente fita preta, acompanhada de salutares conselhos sobre a aquisição de um quarto marido! (Ri novamente de desespero).
Sílvia
Mas, peço-te... suplico-te minha querida Noémia, qu não te apoquentes... não chores! Perdoa-me se as minhas palavras, ou antes as do meu padrinho te magoaram. Hei-de ralhar com ele.. muito, muito.
Noémia
Para que?
Sílvia
Ele certamente disse-me tudo isto para desculpar este meu todo acanhado, quase selvagem, pois que me estremece muito.
Noémia
Não duvido
Sílvia
Quanto ele gostaria de ter uma afilhada como tu! E como nós somos tão diferentes no génio. Tu destinada a fulgir na sociedade, onde pelos teus dotes de encanto e de vivacidade serás sempre uma figura de destaque, qual linda rosa, que pelo perfume e a beleza subjuga as outras flores, enquanto que eu tímida como sou, toda essa sociedade me assusta e me retrai! Viste já alguma vez, um ninho muito oculto na ramagem, onde pequeninas avesinhas abrem os biquitos amarelos à mãe, que sobre elas estende a asa protectora para as aquecer, enquanto pai volteia em redor à busca do sustento? Pois bem, é esse o meu ideal... o meu sonho dourado... uma felicidade modesta num lar humilde, ignorado, longe do bulício estonteante que nos cerca.
(Sente-se o ruído de uma carruagem)
Noémia
O teu amor é uma cabana... dos tempos pré-históricos. Escuta... uma carruagem que parou.
Sílvia
Efectivamente
Noémia
É sem dúvida, a a carruagem que vem buscar-nos. Pois minha querida Sílvia, é uma criatura sensata o teu padrinho, e nunca ninguém me falou assim.
Serei talvez leviana... sou... bem o conheço agora...e nunca procuraram reprimir os meus caprichos, estas criancices de hoje que amanhã serão defeitos incuráveis... e contudo chorei e choro ouvindo as tuas palavras tão dignas de respeito e de exemplo! És muito superior, a mim, minha boa amiga, e o teu coração e um diamante muito mais precioso do que todos aqueles de que se possa compor a nossa corbeille de noivas. Fui má, fui ridícula, e tu és um anjo! Toma este colar, (tira o colar dando-o a Sílvia) e em troca dá-me essa cruz, e essa fita negra...terão também esse prestígio, que tanto realça a tua candura (Sílvia hesita). Dá-me... dá-me essa cruz... não m'a recuses... empresta-me e com ela empresta-me também um pouco desse teu suavíssimo perfume, minha encantadora violeta.
Sílvia
Mas o perfume da rosa, como o teu, é mais activo, mais inebriante, mais sedutor:
Noémia
E o violeta mais modesto, mais casto e mais puro! (Trocam o colar e a cruz) Já me sinto outra!
Sílvia
E agora?
Noémia
Vamos ao encontro das nossas mães (Ambas avançam até ao fundo. Noémia, com galanteria à moda antiga, convida Silvina a sair primeiro) Vossa Excelência tem a bondade...
Sílvia
(Com igual galanteria) Não... não... primeiro V. Excª.
Noémia
(De repente, mudando de tom) Mas que delicadeza a sua! 
 
 
Noémia aproxima-se de Sílvia, segreda-lhe qualquer coisa e indica-lhe o público. Sílvia faz um sinal afirmativo. Ambas descem, avançando mais e Noémia recita os seguintes versos, enquanto a orquestra em surdina executa uma valsa lenta que se harmoniza com a recitação:

Nasce oculta entre a folhagem
a modesta violeta!
Receia os beijos da aragem
essa casta Julieta!

É triste e rasteira a planta,
onde a pobre flor assoma,
mas nessa humildade, encantador
o seu dulcíssimo aroma!

Também a flor Caridade
se brota numa alma pura,
retrai-se à publicidade,
secretamente fulgura.

E dessa mimosa flor
grato perfume s'evola
que se transforma em redor,
no perfume de uma esmola!

Essa esmola generosa,
vem da vossa mão discreta,
tem a beleza da rosa,
o perfume da violeta!

(Fim)

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