quinta-feira, 23 de fevereiro de 2023

Biografias de Sri Ramakrishna: resumo dos 12 capítulos da "Vida de Ramakrishna", de Romain Rolland, por Pedro T. da Mota. No seu 188º aniversário.

Uma fotografia de Ramakrishna Paramahansa, em Calcuta, 10-X-1881.

Qualquer biografia, para ser mais fidedigna e impactante, requer testemunhos de contemporâneos,  conhecimento directo, visualização e sensação, e assim a do santo místico bengali Ramakrishna (1836-1886) tem de forçosamente colher muito no que um discípulo Mahendranath Gupta registou com autorização do mestre ao longo dos últimos anos da sua vida, de 1862 a 1866, e que publicou em bengali, em 5 volumes, de 1897 a 1932, data em que deixou a Terra. São notas muito vivas quase cinematográficas as que ele nos deixou do que era o dia a dia, os ambientes, os diálogos, as ideias, os êxtases, os problemas de um dos últimos grandes mestres da Índia. 

Mahendranath Gupta

Tal registo, que se autonomizou como o Evangelho de Ramakrishna, e que teve algumas mudanças nas sucessivas edições das traduções em inglês, é a base fundamental para se desenvolverem  aproximações, teorizações, facetas, biografias de acordo com a individualidade do historiador, biógrafo, ensaísta, orientalista ou mero devoto. Entre os ocidentais, sem dúvida  Romain Rolland foi um dos melhores dos seus biógrafos, pois a sua  Vida de Ramakrishna, na qual, após os dois avisos preliminares aos leitores do Ocidente e do Oriente, escalona a obra em doze capítulos, foi realizada com grande sensibilidade, empatia e sabedoria, esta tanto inata como  adquirida, já que, para além de ter escrito anteriormente boas novelas e biografias e ter recebido, por tal e pelo seu elevado idealismo e amor da verdade, em 1915, o Prémio Nobel da Literatura, uns anos antes, em 1924, biografara Gandhi, outra grande alma da Índia, da qual se considerara mesmo o seu Evangelista europeu, nomeadamente da ahimsa, não-violência. Como a de Ramakrishna nunca foi traduzida para português, ao contrário da que ele realizou de Gandhiji, vamos resumi-la brevemente.

Romain Rolland e Gandhi, em 1931.
  

 No 1º capítulo, intitulado o Evangelho da Infância,  narra o seu nascimento, seguindo o modo subtil de ter sido anunciado em sonho, a 18 de Fevereiro de 1836, e descreve os seus dois primeiros êxtases, e a vida simples e plena de imaginação do tão sensível jovem, que pela morte do pai aos sete anos, acabou por juntar-se ao irmão mais velho, que era sacerdote num templo em Calcutá quando tinha 16 anos, ajudando-o na jardinagem e oferta de flores no templo. Quando este morre, passado cinco anos, Sri Ramakrishna acaba por aceitar tornar-se o novo sacerdote nesse templo de Dakshineswar, na margem esquerda do Ganges, a seis milhas de Calcutá e que fora fundada por uma milionária mas da casta mais baixa Rani Rasmani, e onde viverá toda a sua vida, à parte algumas peregrinações e viagens não muito longas, e as idas mais regulares a Calcutá. Deste capítulo já extraímos uns parágrafos valiosos para o blogue, conforme pode ler em Os êxtases da alma-Proteu de Ramakrishna, por Romain Rolland, na sua "Vida de Ramakrishna".

  Kali

No 2º capítulo intitulado Kali, a Mãe, observamos o crescimento da intimidade com a Deusa, a Divindade na sua essência feminina, Kali sendo uma das faces e a mais adorada na Bengala, e como ela se revela em visões, numa crescente numa fusão anímica e corporal, e que irá originar o senti-La continuamente presente.  Eis a primeira, narrada por Ramakrishna: «Um dia, fiquei preso de uma angústia intolerável. Pareci-me que me torciam o coração como uma tolha molhada. A dor dilacerava-me. Quando pensei que não teria em vida a bênção da visão divina, uma agitação terrível tomou-me. Pensei: Se tem de ser assim, então chega de vida... A grande espada [atributo da deusa] estava pendurada na parede do templo de Kali. O meu olhar caiu sobre ela e de repente um raio atravessou o meu cérebro: Ela... Ela vai ajudar-me... Precipito-me, empunho-a como um louco e eis que subitamente a sala, com as suas portas e janelas, o templo, tudo se desvaneceu. Parecia que nada existia. E, em seu lugar, apercebi-me de um oceano de espírito, sem limites, refulgente. Para qualquer lado que virasse os olhos, tão longe quanto olhasse, eu via chegarem vagas enormes deste oceano luminoso. Precipitavam-se furiosamente sobre mim, como para me engolirem. Num instante ficaram sobre mim, abateram-se e engolfaram-me. Rolado por elas, sufocava. Perdi toda a consciência natural, tombei... Como se passou esse dia e o seguinte, não sei. Dentro de mim ondulava um oceano de felicidade (ananda) inefável. E até ao fundo dele, eu estava consciente da Mãe Divina...». Uma bela descrição de um típico momento de iniciação, no limite das nossas forças, e a posterior comunhão com o beatífico ou amoroso oceano da Divindade...

 No 3º capítulo, Os dois mestres do conhecimento: A monja brâmane e Totapuri, o homem todo nu, descreve a vinda destes dois grandes seres espirituais, bem importantes na sua aprendizagem dos caminhos tradicionais da Índia, ao alargarem bastante o seu conhecimento prático, as sadhanas, e teórico, das darshanas, ou visões filosóficas, e passando a abranger em si tanto a devoção à Divindade com forma, em especial a Deusa Kali, como a Divindade sem forma, o Brahman, no qual Totapuri estava de certo modo imerso consciencialmente, budicamente.

Transcrevo de Romain Rolland a sua descrição dos efeitos do ensinamento da Bhairavi e do reconhecimento que ela fez dele como avatar:« Ele possuía agora todas as formas de união de amor com Deus, - as dezanove atitudes ou emoções (rasas) diversas da alma na presença da Divindade: as relações de servo para senhor, de filho para a mãe, de amigo, de amante, de marido, etc. Investira a citadela divina, por todos lados, e o "conquistador" de Deus participava da sua natureza.
A sua iniciadora reconheceu nele uma incarnação da Divindade.
Numa reunião que ela provocou, em Dakshineswar, após discussões com os sábios panditas, a Bhairavani impôs [ou convenceu] às autoridades religiosas o reconhecimento do novo avatar. Então o seu renome começou a estender-se. Vinham de longe para ver o homem maravilhoso, que não só realizara uma das sadhanas ou vias de iluminação mas todas, e os peregrinos que se esforçavam pelo Divino, por uma ou outra dessas vias, - monges, ascetas, sábios, sadhus - vinham pedir-lhe conselho (...) As descrições dele [poucas] falam da fascinação que produzia o aspecto daquele que vinha não, como Dante, do Inferno - mas do Mar profundo, como um pescador de pérolas, - a irradiação dourada do seu corpo, que o fogo do êxtase [e do amor e devoção] lentamente cozera e dera uma patine [pelo afluxo de sangue, anotará Romain, a que podemos acrescentar a aspiração, a respiração e a intensificação energética]»

Será com Totapuri, que foi mesmo obrigado a feri-lo no 3º olho com um vidro, que conseguirá passar subitamente da sua devoção fixada na forma de Kali, a divindade pessoal, para a Divindade absoluta, sem dualismo. Anos mais tarde Ramakrishna dará uma compreensão mais unificada: «Kali não é alguém diferente do que chamais Brahman [a Divindade Absoluta]. Kali é a energia primordial, Shakti. Inactiva, chamamos-lhe Aquilo, Tat, ou Brahman, mas quando está em função criadora, preservadora e destrutiva, então chamamos a tal Shakti ou Kali».

No 4º capítulo A Identidade com o Absoluto, aprofunda aspectos e  efeitos dos ensinamentos vedânticos monistas ou advaiticos que Totapuri lhe transmitira, e especula a realização da unidade do espírito individual com o Absoluto.

Deste capítulo transcrevo uma parte de Romain Rolland que o anterior possuidor deste livro (o meu irmão Carlos, e Luz para ele!) sublinhou: «Para Ramakrishna há dois planos distintos e escalonados da visão: a Visão sob o signo de Maya que cria a realidade do Universo diferenciado - e a supra-visão da perfeita contemplação (Samadhi), pela qual o contacto com o Absoluto faz desvanecer-se  instantaneamente  a irrealidade de todos os eus "diferenciados" nossos ou dos outros. Mas, realça Ramakrishna, é absurdo pretender que o mundo seja irreal enquanto fizermos parte dele e que, conservando o nosso eu, recebemos dele a convicção inextinguível (mesmo que esteja velada na nossa lanterna) da sua realidade. Mesmo o santo que voltasse do Samadhi [unificação total ou êxtase] ao plano da vida corrente, está constrangido a retomar o envelope do seu eu diferenciado, se bem que atenuado e purificado. Ele é rejeitado no mundo da relatividade.  (...) E então a verdadeira face de Maya aparece-lhe: ela é o verdadeiro, e o falso, Vidya o conhecimento e Avidya a ignorância, tudo o que leva a Deus e o que não leva. "Portanto ela é". E a sua afirmação toma o valor de um testemunho pessoal, - qual S. Tomé apóstolo, que viu e tocou, - quando Ramakrishna atesta os Vijnani, os supra-conscientes (dos quais ele é um), que obtiveram o privilégio de realizar nesta vida, Deus pessoal e impessoal.»

A Harmonia das Religiões, pintura da época por Keshab Navavidhan. À esquerda Keshub e Ramakrishna.
No 5º capítulo, o Retorno aos Homens, descreve como Sri Ramakrisna começando a sentir a unidade de todos os seres e religiões, quis aprofundar o conhecimento vivencial delas e assim no fim de 1866 vivenciou a entrada no Islão graças a Govinda Rai, um sufi que tinha uma boa realização divina e que o iniciou e com quem praticou até o profeta Maomé lhe aparecer e fundir-se com ele. Em 1872, quando a sua jovem mulher Sarada Devi veio passar algum tempo a Dakshineswar e viver com ele, consagrou-a como deusa Kali, oficiando o ritual tântrico do Shodashi Puja, e adorando-a como Deusa.
Sete anos depois em 187
4 foi com o Cristianismo que se relacionou intensamente, sendo-lhe lido os Evangelhos e durante dias foi inundado pelas imagens e o amor compaixão típico cristão, até por fim obter a visão de Jesus  aproximando-se dele e fundindo-se consigo.
Mais tarde a partir
destas experiências Ramakrisna clamará que o mesmo Deus é aproximado pelas diferentes religiões e seitas e que não há razões para lutarem entre si, pois elas não são mais que vias ou recipientes diferenciados pelos climas, temperamentos, línguas, mas para uma Substância ou Divindade única, que carrega ou a que se atribuíram tais nomes diferentes.

Nos capítulo VI Os Construtores da Unidade: Ram Mohun Roy, Devendranath Tagore, Keshab Chunder Sen, Dayananda, e  VII, o Reencontro com os grandes Pastores, escreve a importância destes quatro reformadores religiosos e sociais de Bengala e da Índia e como conhecendo os três últimos só com Keshub Chunder Sen (1838-1884), e o movimento do Brahmosamaj desenvolveu uma genuína e prolongada amizade.

Devendranath Tagore

Foi Devendranath Tagore (1817-1905), sucessor de Ram Mohun Roy (1772-1833), que organizou e sistematizou o Brahmosamaj, baseando-se sobretudo nas Upanishads livremente interpretadas e criando um caminho do meio entre o politeísmo hindu e o trinitarismo cristão. Sublinhados pelo meu irmão Carlos, eis os seus e do grupo-assembleia (samaj) Quatro artigos de Fé:
I - Ao Princípio era o nada. Só o Um supremo existia. Ele criou todo o Universo.
II - Ele (a) só é o Deus (a) da Verdade, a Infinita Sabedoria, a Bondade, a Potência, a Eternidade, a Omnipresença, a Unidade sem segundo.
III - É no seu culto, na sua adoração que reside a nossa salvação, neste mundo e no outro.
IV - O culto consiste em amá-lo e em fazer o que Ele-Ela ama».

Keshub Chundra Sen, grande amigo e admirador de Ramakrishna.

No VIII Capítulo, O Apelo dos Discípulos,  mostra a organização do Brahmo Samaj da Índia, de Keshub Chundra Sen, nascida em 1886 da cisão (já que ele era mais teísta e entusiasta, com alguma influência do evangelismo  cristão) com o que passou a designar-se o Adi Brahamo, o 1º Brahmo (de Devendranath Tagore, mais olímpico e hindu). E com alguma originalidade Romain Rolland considera que Sri Ramakrishna, ao acompanhar Keshub e os seus discípulos desde 1875,  clarificou-se para a sua próxima fase da missão, a de mestre com discípulos, embora a monja brâmane Bhairavani já tivesse anunciado tal logo no início da sua vida como religioso. Uma visão com vários jovens a aproximarem-se dele como discípulos tê-lo-á preparado para começar a ser visto, apreciado e procurado pelos mais jovens e ardentes dos meios citadinos ligados ao renascimento bengali. Simultaneamente a fama dos seus samadhis e da sua sabedoria popular atraíam muita gente simples que o visitava, ouvia e divulgava. E assim começaram a surgir os primeiros discípulos, que ele começa a esmiuçar os contornos dos encontros e das suas características no IX capítulo, o Mestre e as suas crianças, e no X, algo influenciado pelos Evangelhos e a vida de Jesus, intitulado O Discípulo amado Naren, em que Narendranath Duth, depois chamado swami Vivekananda, é apresentado, mais extensamente, pois, para além de ser um dos que ele mais amava, será ele o líder, após a morte de Ramakrishna Paramahansa, da Ordem monástica que se estabelecerá em 1897 e irradiará para grande parte do mundo.

Uma das narrativas de Ramakrishna aos seus discípulos: «Eu digo às pessoas para cumprirem tantos os seus deveres no mundo e na família, como com Deus, pensando nele. Eu não peço para renunciarem a tudo... (Sorrindo), No outro dia, Keshab estava a discursar e orava assim: "Ó Deus, concede-nos o mergulharmos no rio de Bhakti, amor devocional, e atingir o oceano de Satchitananda (Ser, Consciência e Felicidade eternas)!..." Ora havia senhoras que estavam a ouvir mais atrás. E disse então a Keshab: «Como é que podes mergulhar toda a gente de repente? O que aconteceria às senhoras? É portanto melhor saírem da água de vez em quando, mergulhar e sair alternativamente!»... Keshab e as outras pessoas riram-se muito...

Quanto à inserção no mundo, dirá: «Não podeis deixar de trabalhar pois a Natureza, Prakriti, força-vos a isso. Sendo assim, que todo o trabalho seja feito, como deve ser. Se é feito desprendidamente, ele levará a Deus. O trabalho feito assim é um meio para chegar à meta. E a meta é a Divindade... Trabalhar sem apego, é trabalhar sem esperar qualquer recompensa, sem medo de qualquer castigo, neste mundo ou no outro...»

O símbolo ou emblema da Ordem de Ramakrishna, com um grande cisne, Parama Hansa, vogando no oceano de Stachitananda  

  Nos capítulos XI e XII, O Último Canto, e o Rio Reentra no Mar Romain Rolland  caracteriza os últimos anos de grandes satsangas ou conversas, rodeado e acarinhado pelos devotos e discípulos, e descreve alguns desses diálogos tão profundos e libertadores quão simples nas suas histórias e parábolas, mas que na sua generosidade o iam desgastando de tal modo que o corpo começou a tornar-se demasiado frágil e finalmente se romper, a partir de um cancro na garganta, que não obstou contudo a continuar a ensinar quase até ao fim, morrendo de noite, e pensando os discípulos durante algumas horas que ele tinha entrado apenas em samadhi.
Realçaremos, um
a passagem dessas satsangas inolvidáveis, que também tocou ao meu irmão Carlos e a assinalou no exemplar utilizado: «Certos cristãos e bramoístas (do Brahmo Samaj) veem no sentido do pecado quase toda a religião. O ideal que têm do devoto  é o de quem ora assim: «Ó Senhor, eu sou um pecador. Digna-te perdoar os meus pecados!...» Eles esquecem que o sentido do pecado caracteriza somente a etapa primeira e inferior da espiritualidade.... As pessoas  não se apercebem da força do hábito. Se dizeis constantemente: «Eu sou um pecador», permanecereis um pecador até à eternidade. Devereis repetir antes:«Eu não estou aprisionado, eu não estou encadeado... Quem me pode prender? Eu sou o filho de Deus, do Rei dos reis...» Fazei agir a vossa vontade, e sereis livres! O tolo que diz incessantemente: «Eu estou na escravidão», acaba em verdade por se tornar escravo. O miserável que repete incansavelmente: «Eu sou um pescador», torna-se pecador. Mas essa pessoa torna-se livre, quando pensa e diz: «Eu estou livre da escravatura do mundo. Eu estou livre...». «O Senhor não é nosso Pai?... A escravatura é do espírito. A Liberdade é também do espírito...»
Ou ainda: «
O telhado está ao alcance da vista de toda a gente, mas é muito difícil de ser atingido. Mas aquele que o atingiu pode deitar uma corda para os que estão em baixo e puxá-los para o telhado.»

Um Epílogo final,  descreve o começo da formação da Ordem de Ramakrisna, num pequeno mosteiro em Baranagore,  a que  junta três Notas, intitulada a primeira a Fisiologia da Ascese Indiana, onde compara os estudos da experiência mística na Índia e no Ocidente, valorizando a obra de Henri Bremond, a Histoire litteraire  du sentiment religieux en France (que tem afinidades com os dois valiosos tomos d' As Correntes do sentimento religioso em Portugal, de Silva Dias), destacando o tomo VI, que fala da Vida intensa dos místicos; contrapõe o minucioso conhecimento que na Índia se fez dos corpos subtis, chakras e kundalini, mencionando os perigos e acidentes de tais práticas mais intensas e tenta mapear a graduação e caracterização iluminativa através dos chakras, a partir de alguns ditos (complexos ou subtis) de Ramakrishna e Vivekananda; a segunda Nota é Os Sete Vales da Meditação, da obra The face of Silence, D. G. Mukerji, uma imaginação sobre o percurso de Ramakrishna e, finalmente, a terceira, Saradi Devi e os ladrões, sobre a experiência que a mulher de Ramakrishna só e perdida de noite no caminho teve com um ladrão e a mulher que face à sua irradiação a trataram como a uma filha e a guiaram à sua meta, vindo ela depois a ser uma mãe para muitos dos discípulos. Possamos todos nós chegar à meta divina!

terça-feira, 21 de fevereiro de 2023

Os êxtases da alma proteu (ou metamórfica) de Sri Ramakrishna, por Romain Rolland, na sua "Vida de Ramakrishna". Tradução e breve apresentação.M.

 Na sua Vida de Ramakrishna, Romain Rolland (29.I.1866 - 30.XII.1944), após os dois avisos preliminares aos leitores do Ocidente e do Oriente, escalona a obra em doze capítulos e desenvolve-os com grande sensibilidade e sabedoria, inata e adquirida, até por que uns anos antes biografara Gandhi (e antes dele Tolstoi, mestre deste), como refere no 1º capítulo, intitulado o Evangelho da Infância, onde depois de  narrar o seu nascimento a 18 de Fevereiro de 1836, e que em termos do calendário lunar corresponde neste ano de 2023 a 21 de Fevereiro, o dia de hoje, transcreve a narração de sri Ramakrishna da sua primeira iluminação ou êxtase, e tece um bom comentário a estes estados unitivos, fundamentais no caminhar espiritual e que de algum modo ou outro todos devemos sentir, tal como o mestre Bô Yin Râ também ensinava, nomeadamente nos sentimentos de unidade com o ser complementar e com a Natureza, e que Romain Rolland vai denominar como "manter a lanterna mágica acessa", tal como no Tarot, no arcano IX do Eremita, podemos ainda contemplar, simbólica que já desenvolvi neste blogue. 

                                             

Vamos então transcrever a bela aproximação de Romain Rolland aos dons de expansão de consciência de Ramakrishna, a capacidade de sermos lanternas mágicas e oiçamos o próprio Ramakrishna conforme narrou ao seu biógrafo, quando levava com seis anos o almoço para o seu pai que trabalhava no campo: "eu seguia um caminho estreito, que separava os arrozais e levantei os olhos para o céu, enquanto mastigava  arroz em pipoca, e vi uma bela nuvem sombria de tempestade a estender-se com rapidez e a envolver o céu completamente. Subitamente, na orla dessa nuvem, mesmo em cima da minha cabeça, passou um voo de garças de uma brancura tal que parecia neve. O contraste era tão belo que o meu espírito elevou-se a regiões distantes. Perdi a consciência e caí: o arroz que levava espalhou-se. Alguém levantou-me e levou-me nos seu braços para casa. O excesso de prazer, a emoção, tinham-me abatido... Foi a primeira vez que fui transportado em êxtase".

Ramakrishna iria passar quase metade [ou bastante] da sua vida nele. E  este primeiro êxtase revela os caracteres próprios do controle divino sobre a alma desta criança. A emoção artística, o instinto apaixonado do belo, é o primeiro caminho que põe em contacto com Deus. Há, e vê-lo-emos, para a revelação divina, muitos outros caminhos: o amor do próximo,  o da ideia,  a mestria de si próprio, o labor probo e desinteressado,  a compaixão, ou a meditação... Ele conhece-los-á a todos. Mas o mais imediato, nele, o da sua própria natureza, é o arrebatamento diante da face bela de Deus, que ele vê 
[quase...] em tudo o que vê. Ele é o artista nato.
Ah! Quão difere ele dessa outra «grande alma»
- do Mahatma da Índia, de quem eu me fiz outrora o Evangelista europeu, - Gandhi, o homem sem arte, o homem sem visões, que não as quer ter, que quase desconfia delas, o homem que vive em Deus pela acção bem raciocinada! A sua rota é a mais segura e reconfortante; é a que convém ao condutor de povos. A rota de Ramakrishna será mais bem perigosa, mas leva mais longe: para além dos precipícios que ladeia, descobrirá horizontes ilimitados: é a do Amor.
Era a do seu povo de Bengala,
desta raça de artistas e de poetas amantes. Ela encontrara o seu guia inspirado no amoroso extático do deus Krishna, Chaintanya (1485-1533) e na sua bela música dos cantos (kirtans) deliciosos de Chandidas e de Vidyapati. Estes mestres seráficos - flores perfumadas da sua terra - impregnaram-no do seu hálito.
                                                 
Durante [três] séculos a Bengala acinzentou-se [mas sobrevivendo em bhaktas, yogis, místicos, nas jatras ou peças populares e nos poetas ambulantes, os bhauls]. A alma da pequena criança Ramakrishna foi feita da sua substância: ela é a sua carne, reconhece-se, ele é o ramo florido da árvore de Chaintanya [1486-1534, grande místico do amor divino, prema, considerado avatar da união de Krisha e Radha]
O amoroso da beleza divina, o genial art
ista [Ramakrishna] que se ignora, de novo se revela, no seu segundo êxtase. Na noite de uma festa de Shiva, esta criança de 8 anos, apaixonada pela música e a poesia, que modela imagens e dirige uma pequena trupe dramática de rapazinhos  da sua idade, toma parte numa peça sagrada onde desempenha o papel de Shiva; e, subitamente, o seu ser é bebido pelo  seu herói: sobre as suas bochechas pequenas rolam lágrimas de felicidade; perde-se na glória de Deus; é arrebatado tal como Ganimedes pela águia detentora do raio [de Júpiter]; pensam que ele 
morreu...
Desde esse momento, os êxtases multiplicam-se. Se fosse na E
uropa, a causa já estaria julgada: a criança seria logo posta numa casa de tratamento, sob o duche quotidiano da psicoterapia, e conscientemente, dia após dia, extingui-la-iam... Acabar-se-ia a lanterna mágica... A candeia está morta... Por vezes, a própria criança morre...
                                        
Na Índia, ond
e desde há séculos milhares de seres "processionam estas lanternas mágicas" [que imagem fabulosa], ainda assim inquietaram-se. Mesmo o pai e a mãe, habituados às visitas dos deuses, observaram com algum receio estes arrebatamentos da criança. Mas fora desses momentos que se podiam chamar crises, ele desfrutava de uma saúde perfeita e não era exaltado. Tinha grandes dons: os seus dedos faziam sair da argila deuses; os feitos dos deuses e heróis floresciam no seu pensamento; cantava de um modo arrebatador os cantos pastorais de Sri Krishna; e, por vezes, a sua precoce inteligência tomava parte em debates de doutos, que ele espantava, como Jesus os doutores da Lei. Mas, tal como Mozart, ele sabia permanecer criança e permaneceu-o até à sua idade madura; este jovem de cor clara, de belos cabelos flutuantes de sorriso atraente, de voz deliciosas, este pequeno independente que fugia a escola e permanecia livre como o ar, foi até ao seu décimo terceiro ano bem tratado e adorado  pelas mulheres e as jovens. Elas reconheciam-se nele; e ele tinha também assimilado tanto a natureza delas que um dos seus sonhos de criança, que se nutria da legenda de Krishna e das belas gopis ou pastoras, era de renascer como uma pequena viúva, amante de Krishna, que a vinha visitar a sua casa. Mas tal não era que uma das suas inumeráveis incarnações imaginárias; elas operavam-se instintivamente nesta alma Proteu ou metamófica [tão enaltecida por Pico della Mirandola, na sua Oratio] e tornavam-se instantaneamente cada um dos seres que ele via ou imaginava. Desta plasticidade mágica nenhum de nós está completamente despido: a forma inferior é a da mímica que copia as atitudes e os traços da fisionomia; a forma superior é, poder-se-ia dizer, o Ser Divino que se encena a Comédia do Universo. E é ainda a marca da arte e do amor. Nela se anunciava o maravilhoso poder, de que iria ser dotado Ramakrishna: o génio de se casar ou assumir todas as almas do mundo.»  

Sem necessidade de comentários, possamos nós, para melhor nos aproximar e ser amor e verdade, sabermos sentir e ser os que nos rodeiam ou envolvem e, nessa ampliação consciencial no Campo unificado de energia-consciência-informação, caminharmos para uma maior fraternidade e universalidade, que nos prepara para, diante da Divindade, sermos iluminados ou tingidos mais profunda e plenamente por Ela. 

                                                 

O discurso de Vladimir Putin a 21-II-2023 sobre o estado das nações e do mundo, e o que está em causa no conflito na Ucrânia. Via Press.tv.

                                                 

No discurso sobre o estado das nações em Moscovo, terça-feira, 21 de Fevereiro de 2023, em sincronia com o aniversário de Sri Ramakrishna Paramahansa, o Presidente russo Vladimir Putin criticou  os países ocidentais  por alimentarem as chamas de uma guerra de um ano na Ucrânia, e que já matou dezenas de milhares de pessoas.
O discurso firme para a Assembleia Federal, ou Parlamento das Duas Câmaras russo, durou quase duas horas, durante as quais Putin justificou a operação militar de Moscovo na Ucrânia.
Putin criticou os Estados Unidos e os seus aliados da NATO, dizendo que procuravam "poder ilimitado", ao mesmo tempo que reiterou a responsabilidade da Rússia de "liquidar o regime neonazi em Kiev".
"Estou a fazer este discurso num momento que todos sabemos ser difícil e marcante para o nosso país, um momento de mudanças cardeais e irreversíveis em todo o mundo, um dos acontecimentos históricos mais importantes que irão moldar o futuro do nosso país e do nosso povo, quando e no qual cada um de nós tem uma responsabilidade colossal", comentou.
O presidente russo disse que Moscovo não estava a combater o povo da Ucrânia, sublinhando que a Ucrânia "tornou-se refém do regime de Kiev e dos seus senhores ocidentais, que efectivamente ocuparam o país".

Declarou ainda Vladimir Putin que a Rússia estava a suspender a participação num importante acordo de controlo de armas com os EUA.
"Sou obrigado a anunciar hoje que a Rússia está a suspender a sua participação no tratado estratégico de armamento ofensivo", disse ele.
Putin apressou-se a acrescentar que a Rússia precisa de estar pronta para testar armas nucleares se os EUA o fizerem primeiro, sugerindo que a Rússia não será a primeira a carregar no botão.
O New Start Treaty é o último acordo de armas nucleares que resta entre os arqui-adversários Moscovo e Washington, que foi prorrogado por cinco anos em 2021. Originalmente assinado em 2010, o tratado procurava limitar cada lado a 1.550 ogivas nucleares de longo alcance.

Putin disse ainda que era "impossível" derrotar a Rússia no campo de batalha, acrescentando que o Kremlin está a usar a força para parar a guerra enquanto o Ocidente procura transformar um "conflito local num conflito global".

                                                 
Chamou à intervenção ocidental ao longo dos anos uma "campanha de terror", responsabilizando os EUA e os seus aliados "pela guerra".
Putin disse ainda que as nações ocidentais estavam a tentar "distrair a atenção das pessoas" dos seus problemas domésticos [nomeadamente com balões e discos voadores, ou Milhazes e Rogeiros, PAN  e Ordem da Liberdade].
"Tentaram apenas usar estes princípios de democracia e liberdade para defender os seus valores totalitários e tentaram distrair a atenção das pessoas dos escândalos de corrupção e dos problemas económico-sociais", observou Putin.
Disse que a responsabilidade da crise latente na Ucrânia estava "no Ocidente e na elite ucraniana": "A responsabilidade é do Ocidente e da elite e governo ucranianos, que não servem o interesse nacional, mas antes o de países terceiros[que usam a Ucrânia como base militar para combater a Rússia".
O presidente russo foi particularmente mordaz nas suas críticas a Washington, dizendo que o país quer controlar [com a sua arrogância ou hubris] o mundo inteiro, acrescentando que as relações com os EUA se degradaram completamente.
Putin observou também que a


economia russa tinha diminuído apenas 2,2% em 2022, e ironizou os "tolos" do Ocidente, que tinham "previsto um colapso da economia russa".

O discurso de Putin foi interrompido por aplausos estrondosos da audiência, que incluía membros da Assembleia Federal, bem como cientistas, académicos, estudantes, líderes empresariais, militares, notando-se nas faces de muitas dessas valiosas almas grande emoção e firme determinação.
                                          
Vladimir Putin falou também dos seus planos e aspirações para o futuro, concentrando-se particularmente na melhoria das realizações sociais e científicas e nas ligações económicas.
Falou longamente sobre o plano do seu governo de alargar as auto-estradas de Moscovo a Kazan e com a Mongólia e a China, para aumentar as ligações da Rússia com a Ásia Oriental.
Falou também do desenvolvimento de um corredor internacional norte - sul, melhorando as ligações com a Índia, o Irão e a Ásia Ocidental em geral.
O presidente russo concluiu o seu discurso flamejante agradecendo "aos milhares de voluntários que compareceram nos postos de registo militar para lutar ao lado dos defensores dos Donbas", com a totalidade dos seus colegas e ouvintes aplaudindo-o de pé, notando-se ao centro da primeira fila o Patriarca Kyril, que no fim dialogou com algumas pessoas que o aproximaram.
                                       
Também prometeu "responder a quaisquer desafios" decorrentes da operação militar, e enunciou vários apoios e isenções pelo Estado às famílias dos combatentes, aos cooperantes nas regiões recém-libertadas e às famílias russas com dois ou mais filhos
"Somos todos o mesmo país, um povo uni
do". Estamos confiantes e seguros da nossa força", afirmou Putin. "A verdade está do nosso lado".
O longo discurso há muito aguardado precedeu o primeiro aniversário (dia 24) da operação militar da Rússia na Ucrânia e depois do Presidente dos EUA Joe Biden ter feito uma visita
à Ucrânia,[quase sem palavras devido ao seu estado já zombificado] sem aviso prévio [senão aos russos, talvez para que não o assustassem com o som das sirenes...]

Translated with DeepL e corrigido e melhorado por Pedro Teixeira da Mota

 Daria Dugin, uma mártir da causa euro-asiática. Muita luz e amor para a sua alma.   


segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

"Vida de Ramakrishna", por Romain Rolland. O aviso ao leitor Oriental, traduzido e brevemente comentado por Pedro Teixeira da Mota

 O Aviso ao leitor do Oriente que antecede o livro a Vida de Ramakrishna, permite-nos, tal como o seu inicial Aviso ao leitor do Ocidente, já  apresentado no blogue,  descortinarmos  certas qualidades anímicas de Romain Rolland, nomeadamente a independência e a liberdade de pensamento e de adoração, não se deixando limitar ou deter em qualquer religião ou culto, pois era claramente um universalista, ainda que com profundas raízes bem sentidas na regionalidade ou localidade francesa que o nutrira ou rodeava.  Foi certamente por isso que foi personagem importante do movimento pacifista aquando da 1ª grande Guerra e depois um forte apoiante da Rússia e um opositor de Hitler e do nazismo, algo que infelizmente vemos ressurgir hoje em novas formas ultranacionalistas ou opressivas, com a União Europeia a assumir posições fascizantes e ditatoriais anti-russas, com vários dirigentes da União Europeia procurando uma desforra da derrota sofrida na II grande Guerra 

Se nascera em 1866 e em 1915 recebia o prémio Nobel da Literatura pela sua grande sensibilidade à fraternidade e unidade humana, quando já publicara o seu ciclo de romances, livros sobre músicos, esobre Tolstoi, por quem teve grande admiração (como afirma no Aviso ao Leitor Ocidental), será só após a  Déclaration de l'indépendance de l'Esprit, publicada em junho de 1919 no diário socialista l'Humanité, e as polémicas suscitadas por um pacifismo anti-nacionalista e sem se assumir forçosamente num partido de esquerda ou de direita que, findo a I grande Guerra, começa a trabalhar  nos mestres indianos, dando à luz as biografias de Gandhi em 1924, e em 1929 e 1930, as do mestre Sri Ramakrishna e de swami Vivekananda, seu principal discípulo e transmissor para o Ocidente. E conseguiu aproximar-se deles com bastante qualidade, embora aqui e acolá os seus comentários manifestem algumas incompreensões da espiritualidade mais profunda e vivencial indiana, algo aliás de que ele se desculpa de antemão, como leremos.
                                   
Anote-se que antes de começar a advertência ao Leitor Oriental, ele transcreve em epígrafe inici
al uma citação de Sri Ramakrishna, de 28-XI-1882, bem valiosa, vasta, universalista, que de certo modo ainda mais o protegia, como moderno pesquisador da verdade: «Saudações aos pés do Jnanin [ sábio pelo discernimento]! Saudação aos pés do Bhakta [devoto amoroso]!Saudações aos devotos que creem no Deus com forma [dvaitas]! Saudações aos devotos que creem no Deus sem forma [advaitas]! Saudações aos antigos conhecedores de Brahman  [Brahman Jnanis]! Saudação aos modernos conhecedores da Verdade!...»
«Peço aos meus amigos e leitores Indianos de serem indulgentes com os erros que eu possa cometer. Apesar de todo o fervor com que eu trabalhei, é fatal que um ocidental dê interpretações frequentemente erradas dos orientais e das suas experiências de um pensamento milenário. Tudo que eu posso dar em testemunho, é a minha sinceridade e os esforços piedosos que realizei para entrar em todas as formas de vida [indianas e de Ramakrishna].
Todavia, não escondo que nunca abdico do meu julgamento livre de homem do Ocidente. Respeito a fé de todos e, frequentemente, amo-a. Mas nunca me alisto. Se Ramakrishna me é próximo, é porque eu vejo nele um homem, e não, como os seus discípulos, uma incarnação [avatar, da Divindade].
De acordo com os Vedantistas [os que adoptam a visão Vedântica, baseada nos Vedas, Upanishads e no filósofo Shankara] para eu admitir que o divino está ou é na alma, e que a alma está ou é no todo - que Atman (espírito-alma individual) é Brahman (a Divindade ou espírito alma total) - eu não tenho necessidade de encerrar Deus dentro das fronteiras dum ser humano privilegiado: tal é ainda, aos meus olho, uma forma (que se ignora) de "nacionalismo" de espírito; e eu não o aceito de modo algum. Eu vejo "Deus" em tudo o que existe. Vejo-o todo inteiro no mais pequeno segmento, como no Todo Cósmico. Nenhuma diversidade de essência. E quanto à potência, ela é em toda a parte infinita: a que jaz num punhado de poeira poderia, se soubéssemos, fazer explodir um mundo. A única diferença é que ela está mais ou menos concentrada, no coração de uma consciência, dum eu, ou então dum núcleo de um átomo. O maior dos grandes seres não é senão um espelho mais claro do sol que brinca ou joga em cada gota de orvalho.
É por isso que eu nunca estabeleço esses fossos sagrados que agradam aos devotos, religiosos ou laicos, entre os heróis da alma e os milhões dos seus obscuros companheiros do passado e do presente. E tal como em relação ao Cristo e ao Buda, eu não isolo Ramakrishna e Vivekananda do grande exército em marcha do Espírito do seu tempo. Tento, no decurso deste livro, de fazer justiça às personalidades geniais que, desde há um século, têm surgido da Índia renovada, e despertado as antigas energias da sua terra, e feito reflorescer uma primavera de pensamento.
Cada uma delas criou a sua obra e cada uma tem os seus fiéis que a constituíram em igreja e tendem inconscientemente a considerá-la como a igreja do único ou do maior Deus.
Afastado dos desses partidos, eu recuso-me a ver o que os opõe: à distância donde estou, as barreiras dos campos fundem-se numa extensão imensa. Vejo só um mesmo rio, um majestoso «caminho que marcha», como disse o nosso Pascal. E é porque nenhuma alma humana concebeu e realizou em si tão plenamente como Ramakrishna a Unidade total deste rio de Deus, aberto a todos os rios e regatos, que eu lhe voto o meu amor. E extraí dele um pouco da sua água sagrada, a fim de saciar a grande sede do mundo.
Mas eu não me detenho, debruçado sobre a borda do fluxo. Prossigo a minha marcha, com o fluxo até ao mar. Deixando, a cada desvio do rio aonde a morte disse: "Para", a um desses que nos guiam, ajoelhados os fiéis, e eu acompanho o rio. E presto-lhe homenagem, da fonte ao estuário. Santa é a fonte, santo é o seu curso, santo é o estuário. E nós abraçamos, com o rio, os afluentes, pequenos ou grandes, e o Oceano - toda a massa em movimento do Deus vivo.»
Natal de 1928, Romain Rolland.
                                         
Como breve comentário a este valioso prefácio ou aviso apenas diremos que a frase: "Se Ramakrishna me é próximo, é porque eu vejo nele um homem, e não, como os seus discípulos, uma incarnação [
avatar, da Divindade], não é muito feliz, pois mesmo os que viam um avatar em Sri Ramakrishna não anulavam nisso o homem, aliás tão visível no pequeno brâmane do campo e iletrado, simples e nada de grandezas e separativismos. Algo da pluridimensional concepção da avatarização escapou a Romain Rolland pois Ramakrishna era um homem, um yogi, um místico, um religioso em quem o espírito estava bastante mais desperto e activo que nos seres humanos normais pois manifestava tanto a Divindade que se podia senti-La nele mais e logo considerem-no um ser  manifestante da Divindade viva, ou em quem Ela de certo modo descia ou tinha descido, que é o que significa etimologicamente a palavra sânscrita avatar.

        
Sri Ramakrishna em intensificação espiritual, êxtase...

Erra também um pouco, fruto talvez da sua forte afirmação de livre arbítrio e liberdade, quando pensa que tinha que encerrar a Divindade num limitado ser humano, quando Ela certamente em muitíssimo o transbordava ou transcendia, como ele tantas vezes o afirmou, face à Deusa, ou à forma feminina divina, que ele adorava.
Creio que se engana-se também quando tende a ver a Divindade apenas como a energia ou força tanto presente na gota de água, ou na areia como no ser humano. Escapou-lhe a realização mais plena do espírito individual, do atman, da centelha espiritual divina no ser humano, e que não está individualizada na gota de água ou no grão de areia.
Também exagerou quando diz que os seus discípulos criaram fossos sagrados, ou o consideravam como o único ou o melhor Deus, quando de facto a maioria dos discípulos, mesmo os que o consideravam um avatar, ou uma semi-avatarização, não o consideravam o único Deus, ou o melhor Deus, ou mesmo Deus.
A sua visão da Divindade é mais a de um poeta, intelectual e panteísta, em que
 Ela é um Deus vivo como a massa total da manifestação em marcha, mais do que a Divindade seja imanente, seja transcendente.
Seria importante sa
bermos que experiências espirituais Romain Rolland obteve ao longo da vida, para além da grande absorção da espiritualidade indiana  realizada para escrever esta biografia e os dois volumes do Vivekananda e o Evangelho Eterno em acção. É natural que haja já alguns bons estudos sobre a espiritualidade indiana de Romain Roland e das suas claridades e  limitações. Para já ficamos com estes dois valiosos avisos ou advertências, e certamente ainda publicarei mais algum texto, para além de dois vídeos que  partilhei no Vk. com e no Youtube, sobre a vida e ensinamentos de Ramakrishna, um em ligação com  a obra de Romain Roland, outro a partir da minha experiência na Índia e com sri Ramakrishna e sua linhagem de discípulos.
Talvez ha
ja ainda uma pequena contradição entre os seus dois avisos e que poderemos apontar pois toca num aspecto importante: aponta ele no 1º que Shakespeare, Beethoven, Tolstoi e [a civilização de] Roma foram os mestres que mais o nutriram; e no 2º põe em causa a admiração ou devoção que os devotos projectam sobre os seus mestres,  endeusando-os demais e esquecendo-se dos milhões de contemporâneos também importantes. Ora tal não é correcto, pois nem Sri Ramakrisha menosprezava as pessoas humildes ou pobres e antes testemunhou frequentemente a sua profunda sensibilidade fraterna, nem os discípulos e depois a Ordem de Ramakrishna deixou de fazer um trabalho social ou karma yoga (união pela acção desinteressada) ou seva (serviço) tão grande que chegou a ser mesmo criticado por estarem a ser demasiado socialistas no bom sentido. Mas tal críticprocede ou aplica-se a muitos grupos, seitas, igrejas...
A companhia ou sa
tsanga do corpo místico da Humanidade e das diferentes religiões, linhas iniciáticas e tradicionais e até famílias em que estamos inseridos é bem importante de ser consciencializada e trabalhada e assim  ao longo dos séculos muitos têm recebido sinais inspiradores e animadores provando continuação da vida nossa espiritual para alem da morte do corpo físico, neles se destacando certamente os mestres, aqueles que mais despertos e activos estão no mundo espiritual, tal Sri Ramakrishna Paramahansa. Que eles nos inspirem...

domingo, 19 de fevereiro de 2023

A vida de Ramakrishna, por Romain Roland. O prefácio, traduzido e apresentado por Pedro Teixeira da Mota....

                                            Sri Ramakrishna — Vedanta Society

A apresentação da vida e obra do extraordinário yogi e místico bengali Sri Ramakrishna (1836-1886), foi muito bem realizada na obra La Vie de Ramakrishna, por Romain Rolland, dada à luz em Paris, 1929, um dos primeiros divulgadores no Ocidente, pouco depois de uma biografia do alemão Max Müller, pois Romain Rolland (1866-1944), que já biografara Gandhi, estava preparado para se aproximar com sensibilidade e conhecimento da espiritualidade indiana.  

Foi num exemplar da edição de 1947, que pertenceu ao meu irmão mais velho Carlos, e que o sublinhou, com nota de posse de Maio de 1963, que estabeleci um dos meus primeiros contactos com a Índia espiritual e os seus grandes espíritos, mahatmas.

Terminando a minha licenciatura parti para a Índia. E em 1995 regressei de novo por um ano, permanecendo seis meses em Calcutá no Instituto de Cultura, da missão Ramakrishna, dirigida por Swami Lokeswarananda, em estudos, meditações e traduções, estas com Sat Chitananda Dar, tendo sido mesmo iniciado nesta linha ou ordem pelo então vice-presidente Swami Ranganathananda. Presto assim homenagem tanto a Ramakrishna Paramahansa e à sua linhagem, tal como os Swami Ranganathananda e Lokeswarananda e ao pandit Sat Chitananda Dhar, bem como a Romain Rolland e  Carlos Teixeira da Mota, bons pensadores e escritores. Muita Luz e Amor neles e em nós! 

Vou transcrever (na quase totalidade) a justificação inicial de Romain Rolland, que escrita em 1928, há quase cem anos permanece, muito sábia e actual, já que, confessando quanto deve à companhia (satsanga, ou corpo místico da humanidade) invisível dos seres que ama, realça tanto a importância de sairmos das estreitezas das religiões exclusivistas ou então dos ateísmos anti-religiosos, e despertarmos para a unidade do Ocidente e do Oriente, ou da Eurásia, como manifesta uma boa compreensão das profundezas (não psicanalíticas) da alma humana, regional e universal,  apontando ainda  para o despertar da clarividência, do amor, da abnegação para uma Humanidade mais fraterna e mais ligada internamente com a Divindade, ou a Fonte, a partir do exemplo de um simples camponês bengali verdadeiramente "fabuloso". Oiçamo-lo:

«Consagrei a minha vida à reaproximação dos seres humanos. Tentei-o entre os povos da Europa e articularmente entre os dois grandes irmãos inimigos do Ocidente [França e Alemanha]. Esforço-me, desde há dez anos, de o realizar entre  Ocidente e o Oriente. E queria-a o tentar também entre as formas de mentalidade  que erradamente se consideram eles representarem: a razão e a fé - já que seria mais justo de dizer: entre formas diversas da razão e da fé, pois uma e outra estão repartidas quase igualmente nos dois lados. Mas as pessoas não duvidam [de que essa distinção ou fosso é irreal].

Fez-se nos nossos dias um divórcio absurdo entre estas duas metades da alma. As pessoas foram persuadidas que são incompatíveis. Não há de incompatível senão a estreiteza comum daqueles que abusivamente pretendem ser os seus representantes.

Por um lado, os que se dizem religiosos fecham-se todos nos muros da sua capela, e não só recusam sair (o que é o seu direito!) mas negariam, se pudessem, tudo o que está de fora desse direito de existir. E do outro lado, os  representantes do livre-arbítrio, que estão, na maioria, despidos de sentido religioso (é o seu direito) julgam-se frequentemente designados para combater e negar o direito a existir das almas religiosas, [Muito comum nessa época em França]. Vê-se que se encarniçam em vão em demolições sistemáticas da religião, sem se aperceberem que atacam o que não conhecem. Pois de que serve raciocinar sobre a religião, apenas segundo o revestimento dos textos históricos ou pseudo-históricos, que o tempo desagregou ou recobriu da sua patine?

O mesmo se passa com o explicar o facto interior da consciência psicológica pela dissecação dos órgãos materiais, que são os instrumentos. Esta confusão feita pelos nossos racionalistas do sinal da expressão com a energia do pensamento, parece-me tão ilusória como aquela, comum às religiões de outrora, de identificar as potências mágicas com as palavras, as sílabas, ou as letras que as designam. [Embora uma magia da palavra seja eficaz nas almas e energeticamente no campo unificado ambiental]

A primeira condição para conhecer, julgar, e, se o desejamos, combater a ou as religiões, é de ter experimentado sobre si mesmo o facto da consciência religiosa. E mesmo os que entraram na profissão religiosa não estão qualificados para falar: pois se eles são sinceros, eles reconhecerão que o facto da consciência religiosa e a profissão religiosa são duas [realidades diferentes]. Muitos dos sacerdotes bem honestos são crentes por obediência, ou por raciocínio prudente e preguiçoso, e nunca sentiram a necessidade de experiência religiosa, ou, não tendo a força, evitaram de a tentar. E numerosos seres que se creem livres de toda a religião, vivem banhados num estado de consciência supra-racional [ou infra-racional] a que colam a etiqueta: Socialismo, Comunismo, Humanitarismo, Nacionalismo - veja-se mesmo Racionalismo.

Não é o objecto do pensamento que determina a sua proveniência e permite decidir se ela pertence à religião ou não: é a qualidade desse pensamento. Se ele se orienta intrepidamente para a procura da verdade custe o que custar, numa sinceridade pena e disposta a todos os sacrifícios, eu chamo-lhe religiosa: pois ela pressupõe a fé num fim do esforço humano, superior à vida do indivíduo, por vezes da comunidade presente, e mesmo da totalidade da humanidade. Até mesmo o cepticismo, quando ele é a expressão da força e não da impotência, participa do Grande Exército da Alma Religiosa.

E não tem nenhum direito, ao contrário, de levar as cores, os milhares desses crentes das igrejas cobardes -clérigos ou laicos - que não creem por eles mesmos, mas que restam afundados no estábulo, ou onde eles bezerros, diante de uma manjedoura cheia de feno das crenças cómodas, que só tem o trabalho de ruminar.

Sabe-se a palavra trágica sobre o Cristo, que «ele será em agonia até ao fim do mundo».... Eu não creio, pela minha parte, a um só Deus pessoal, nem sobretudo a um Deus só da Dor. Mas eu acredito que (a dor e a alegria misturadas, e com elas todas as formas da vida) que só é de Deus o que no homem e nos seres humanos e no universo, é um perpétuo nascimento. A criação renova-se a cada instante. A religião não é uma obra jamais realizada. Ela é acto e vontade de agir sem repouso. Ela é o brotar da força. Nunca o tanque parado.

Sou dum país de rios. Amo-os como seres vivos. E compreendo os meus antepassados que lhes ofereciam libações de vinho e leite. Ora de todos o rio, o mais sagrado é aquele que brota, a todo o momento, do fundo da alma, dos seus basaltos, das suas areias, dos seus glaciares. É lá que está a Força primeira que eu denomino religiosa. Ela é comum à arte e à acção, às ciências e às religiões, a todo esse rio da Alma, que de insondável e sombrio reservatório, leva à irresistível subida para o oceano do Ser, consciente, realizado, dominado. E tal como a água sobe de novo em vapores, do mar às nuvens do céu, que realimentam o reservatório dos rios, os ciclos da criação se encadeiam sem interrupção. E da fonte ao mar, e do mar à fonte, tudo é a mesma energia, o Ser, sem começo nem fim, que me é indiferente que se chame Deus (e que Deus?) ou Força (e qual Força? Seja ela chamada Matéria, que matéria, será que tal designa igualmente as energias do Espírito?...) Palavra, palavras!... A essência é Unidade, não abstracta mas viva. E ela que eu adoro, tal como os grandes crentes e os grandes ignorantes, que a trazem consigo, conscientes ou inconscientes.

A ela eu dedico a obra nova que eu apresento: - à Grande Deusa, invisível, imanente, que liga com os seus braços de ouro a grinalda  da polifonia discontinuada - a Unidade. 

Ela é, depois um século, na Índia nova, o fim para o qual está lançada a flecha de todos os arqueiros. Desta terra sagrada, Ganges dos povos e dos pensamentos, surgiram, neste século, personalidades torrenciais. Quaisquer que sejam as  diferenças entre uma e outra, a direcção é a mesma: a Unidade humana, pelo canal de Deus. Mas através de cada substituição de equipas, a Unidade alargou-se, cada vez mais se tornou clara.

Do começo o fim deste grande movimento, tratar-se-á sempre da cooperação, sobre um pé de igualdade, do Ocidente e do Oriente, e das forças da razão com as - não da fé, no sentido de aceitação cega, que ela apanhou de épocas servis e de raças esgotadas mas da intuição viva e vidente: o olho na fronte do Ciclope, que não anula, mas completa os outros.

Nesta magnífica vinda de heróis do espírito, que nós percorremos mais longe [no capítulo VI, os Construtores do Espírito, Ram Mohun Roy, Devendranath Tagore, Dayananda, Keshab Chundra Sen], fiz a escolha de dois homens que me conquistaram, porque realizaram com uma encanto e um poder incomparáveis esta esplêndida sinfonia da Alma Universal. 

O assunto do meu livro [que seria em dois volumes] é triplo e um. Compreende a narrativa destas duas vidas extraordinárias - uma quase fabulosa, a outra verdadeiramente épica - que se desenrolaram no nosso tempo, às nossas portas - e a exposição dum elevado pensamento, religioso, filosófico, moral e social que, saído do fundo dos séculos da Índia, dirige-se à Humanidade de hoje.

Se bem que (vereis no livro) o interesse patético, a poesia fascinante, a graça e a grandeza homérica das duas vidas chegam para explicar que eu passei dois anos da minha vida a investigar os seus caminhos e explorar os seus rio, a fim de que os vossos olhos possam passear agora sobre eles, - e não foi a curiosidade da viagem que me invitou a tentá-lo.

Eu não sou diletante. E não trago aos leitores fatigados razões de se fugir, mas de se encontrar. Encontrar o eu profundo, nu, sem máscara, sem mentira. Eu criei-me uma companhia daqueles que eu procurei, quer estejam vivos ou mortos, e não me inquieto acerca do limites dos século ou das nações. Não há, para alma nu, Ocidente nem Oriente: são vestidos. O mundo é a casa deles. E a sua casa, sendo de todos, é de todos.

Desculpem-me se eu devo, para fazer compreender o pensamento íntimo donde saiu esta obra, por-me uns momentos em cena. Mas é apenas a título exemplo, de modo algum excepcional. Eu sou alguém do povo da França. Eu sei que represento milhares de pessoas de Ocidente, que eles, não tem os meios de se exprimir. Cada vez que um de nós fala, do fundo do coração, afim de se libertar, logo ao mesmo tempo libertar milhares de silêncios. Portanto, escutem não a minha voz, mas o eco.

Eu nasci e passei os meus primeiros quatorze primeiros anos numa região do centro da França, onde a minha família estava estabelecida desde há séculos. A minha fonte familiar ou racial é francesa ou católica sem qualquer liga estrangeira. E o meio ambiente onde estive selado até `minha chegada a Paris, perto de 1880, era o de uma velha província de Nivernais, que não deixava filtrar qualquer elemento de fora.

Ora neste vaso fechado, modelado na argila dos Gauleses, com o seu céu de linho e a água dos rios, eu encontrei, desde a infância, todas as marcas do universo. Quando mais à tarde, bastão na mão, percorri as rotas do pensamento, eu não encontrei em qualquer país nada de estrangeiro. Todas essas formas de almas, desde a origem, eram pressentidas ou conhecidas por mim, eram minhas. A experiência do exterior trazia-me somente a realização de estados interiores, que eu registara, sem poder encontrar sempre a chave. Nem Shakespeare nem Beethoven nem Tolstoi nem Roma, os meus mestres nutritivos, não me revelaram que o «Abre-te, Sésamo!» da minha cidade subterrânea, do meu Herculano, que dormia sob a lava. E eu convenci-me que ele dormia no fundo de muitos dos que me rodeiam. Mas eles ignoravam as suas profundezas, tal como eu as ignorava. E muito poucos se aventuravam acima do primeiro andar de cave, que a sua própria sabedoria prática lhes preparara, para o seu uso quotidiano, limitando as suas necessidades com economia, e a vontade de ordem dos mestres que cimentaram  torre a torre a unidade de França real e jacobina. Admiro esta construção. Historiador de profissão, vejo nisso uma das grandes obras da energia humana, iluminada pela mente ou espírito [em francês: esprit]. Aere  perennius...  [mais perene que o bronze, do romano Horácio]

[... Falta uma página, que provavelmente virei a traduzir...]

«Pode-se, se quisermos, demonstrar-se, como nisso trabalha hoje a exegese livre pensadora moderna, que toda a doutrina de Cristo está difundida antes dela, na alma oriental, semeada pelos pensadores da Caldeia, do Egipto, de Atenas e da Iónia. Nunca se se conseguirá que a pessoa do Cristo, real ou lendária (são duas ordens da mesma realidade), não esteja acima, com justiça, da pessoa dum Platão. Ela é a criação monumental e necessária da Alma da humanidade. Ela é o seu fruto mais belo, num dos seus Outonos. E a mesma árvore produziu, por uma mesma lei da natureza, e vida e a lenda. Elas são as duas a mesma carne vivificante e aureola do seu olhar, do seu sopro e da sua humidade.

Eu trago à Europa, que o ignora, o fruto de um novo outono, uma mensagem nova da Alma, a sinfonia da Índia que tem por nome Ramakrishna. Pode-se demonstrar (e nós não deixaremos de o assinalar) que esta sinfonia, como a dos nossos mestres clássicos, está argamassada de um cento de elementos musicais do passado. Mas a personalidade soberana na qual se concentra a diversidade dos elementos e que os organiza numa harmonia real, é sempre aquela que dá o eu nome a uma obra, na qual trabalharam as gerações sucessivas. E do seu signo vitorioso, é ela que marca a era.

O homem de que eu evoco aqui a imagem foi o coroamento de dois mil anos de vida interior dum povo de 300 milhões. Morto  há quarenta anos, ele é um animador  da  Índia do nosso tempo:Ele não foi um herói de acção, como Gandhi, nem um génio da arte ou do pensamento, como Goethe ou Rabindranath Tagore. Foi um pequeno camponês brâmane da Bengala, e cuja vida exterior se desenrolou num quadro limitado, sem incidentes marcantes, fora da acção política e social do seu tempo. Mas a sua vida interior abraçou a multiplicidade do homens e dos Deuses. Ela participava na própria fonte da Energia, a Shakti divina, que canta o velho poeta de Mithila, Vidyapati.

Muito pouco retornam à fonte. O pequeno camponês de Bengala, escutando os eu coração, e reencontrou os caminhos do Mar interior. E ele uniu-e a ele, realizando o versículo dos Upanishads: - «Eu sou mais antigo que os Deuses irradiantes. Eu sou o primogénito do Ser. Eu sou a artéria da Imortalidade». (Taitirya Upanishad).

Eu queria fazer ouvir o batimento da artéria, às orelhas da Europa febril, que matou o sono. Eu quero esfregar os seus lábios, do sangue da Imortalidade.»

Romain Rolland, Natal de 1928.

                          

A unidade da essência das religiões, diferentes aproximações e concepções de uma Fonte Divina única, vivenciada interiormente e ensinada por Ramakrishna Paramahansa...

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2023

Sri Ramakrishna, por Nicholai Roerich. Nas comemorações do seu 187º aniversário. Tradução e apresentação por Pedro Teixeira da Mota.

Nicholai Roerich junto à sua casa e à estátua de Guga Choan (aonde peregrinei), em Kulu Valey, numa pintura do seu filho Svetoslav.

  Nicholai Roerich (1874-1947), o notável pintor e escritor espiritual russo, não conheceu directamente Sri Ramakrishna (1836-1886), mas leu a sua biografia e ensinamento e nas suas viagens e estadias prolongadas na Índia contactou certamente com alguns monges da Ordem Ramakrishna, formado pouco depois da sua morte e terá escutado muitas histórias e parábolas desse grande yogi e místico da Bengala. E portanto resolveu homenageá-lo não só pintando-o mas também referindo-o em alguns livros e dedicando-lhe num dos seus dias de aniversário um texto no seu diário e que acabou por ser recolhido numa antologia publicada por Nanda Mooerjee, em Calcutta, em 1976: Sri Ramarishna in the eyes of Brahma(s) and Christian admirers., onde se coligem aliás os testemunhos de Rabindranath Tagore, Keshab Chandra Sen, Max Müller, Romain Rolland, Helmuth von Glasenapp, Conde de Keyserling (que esteve a conferenciar em Portugal e a quem Fernando Pessoa dirigiu uma carta), Albert Schweizer, Arnold Toynbee, etc.

Resolvi traduz-lo e transcrevê-lo, por ocasião dos 187 anos do nascimento de Ramakrishna Paramahansa (grande cisne), que embora tenha sido a 17 de Fevereiro de 1836, como os indianos se regem por uma cronologia lunar, a data neste ano recai apenas a 21 de Fevereiro.

O que encontramos de mais valioso neste testemunho, escrito no meio das expedições da família Roerich (e ainda me cheguei a corresponder com o seu filho Svetoslav) aos desertos e montanhas do Gobi e da Mongólia? Antes de mais a imagem de que as pessoas que se avantajam em algo, como as grandes árvores, devem ser fonte de benefícios para os outros. Ramakrishna foi um desses seres, que derramou a sua realização espiritual, amor e vitalidade pelos que o vinham visitar ou consultar. E em seguida que esses seres que seguem o Bem e o vivem tornam-se exemplos e líderes, gerando nos outros a conversão da limitada visão egoísta ou malévola numa de generosa e vasta inclusão, da qual dá o exemplo não só de Swami Vivekananda e os sucessivos monges  e discípulos, e eu conheci bem e iniciaticamente alguns ao estar seis meses num centro da Missão Ramakrishna em Calcuta, em 1995, mas também dos jovens que confiam no seu professor ou mestre e que graças a tal ligação de mestre a discípulo intensificam muito as suas capacidades e mantém viva a tradição. Um terceiro ensinamento brota ainda deste invulgar e quase desconhecido testemunho: as pessoas que peregrinam para a Verdade ou para um mestre como Sri Ramarishna vencem todas as dificuldades pois mesmo as labutas e as crises que as envolvem ou agarram, são por elas suplantadas pela determinação interior e quando se juntam, pois a união faz a força, não só no número mas sobretudo na qualidade dos pensamentos, motivações e consciências. Saibamos então unir-nos luminosa e poderosamente para sermos faróis do Bem e invoquemos as inspirações dos grandes seres, como Sri Ramakrishna e Nicholai Roerich.

Sri Ramakrishna, por Nicholai Roerich, numa recriação livre nos Himalaias

                                         SRI RAMAKRISHNA

               Extraído das folhas do diário, de Nicholai Roerich.

«Estamos nos desertos da Mongólia. Ontem estava quente e poeirento.  A trovoada aproximava-se vinda de longe. Alguns dos nossos amigos ficaram cansados de subir os montes pedregosos de Shiret Obo. Quando retornávamos ao acampamento, avistamos à distância um enorme  olmo karagatch, sozinho, avantajando-se como uma torre no meio do deserto infindável que o rodeava. O tamanho da árvore, os seus contornos de algum modo familiares, atraíram-nos para a sua sombra. A nossa experiência botânica assegurava-nos que na sombra vasta daquele gigante deveria haver ervas interessantes para nós. Em breve, todos os co-trabalhadores estavam reunidos à volta de dois poderosos troncos do olmo karagatch. A sombra profunda, profunda mesmo da árvore cobria mais de quinze metros em redor. Os troncos poderosos  estavam cobertos com crescimentos de protusões fantásticas. Na folhagem abundante ouvia-se o canto dos pássaros e os  ramos belos estendiam-se para todas as direcções, como  que desejando dar abrigo a todos os peregrinos.

Na areia à volta das raízes são visíveis numerosos trilhos causados pelos animais. Ao pé das pegadas largas de um lobo estavam as pequenas marcas do dzeren, o antílope local. Um cavalo passara também e a seguir a ele estava a pegada pesada de um búfalo. Todo o tipo de pássaros se encontrava ali e parecia que a população inteira local estava de visita à sombra acolhedora da árvore. O olmo-karagatch lembrava-me especialmente das gigantescas árvores banyam da Índia. Tais árvores  foram desde sempre o local de encontro de abençoados ajuntamentos. Muitos viajantes encontraram neles descanso físico e espiritual. Muitas narrativas sagradas foram cantadas debaixo dos ramos convidativos das banyan. E assim o gigante solitário no deserto mongólico encaminhara  a nossa memória vividamente para a sombra do banyan. Os ramos poderosos do karagatch lembraram-nos também de outras grandes realizações da Índia. Que alegria pensar na Índia!

 Os pensamentos voltaram-se para Sri Ramakrishna, o grande efulgente da Índia. A volta deste nome glorioso há muitas definições respeitosas. Sri, Bhagavan, Paramahansa  - todas óptimas oferendas pelas quais as pessoas desejam exprimir a sua estima e reverência. A consciência de uma nação sabe como presentear as palavras de honra. E no fim de contas, acima de todos os títulos mais venerados, permanece sobre todo o mundo o grande nome único - Ramakrishna. O nome pessoal tornou-se já um grande nome de todas as nações, um conceito universal. Quem não ouviu tal Nome Abençoado. A concepção de bondade e benevolência verdadeiramente correspondem-lhe. Excepto os de coração petrificado, ninguém se oporá ao Bem!

Sri Ramakrisna a cantar em intensa comunhão espiritual e divina. Fotografia real da época.

 Lembramo-nos como em vários países cresceu a compreensão do efulgente ensinamento de Ramakrishna. Para além de vergonhosas palavras de ódio,  para além da malévola destruição mútua, - a palavra Felicidade (ananda), que está próxima de cada coração humano, espalha-se largamente tal como os poderosos ramos da árvore sagrada  banyan. Nos caminhos humanos de procura, estes chamamentos de boa vontade brilharam como faróis. Nós  testemunhamos e ouvimos frequentemente falar acerca dos modos inesperados como pessoas sinceras na sua demanda  encontraram  livros do ensinamento de Ramakrishna. Nós próprios chegamos ao livro [o Evangelho de Ramakrishna] de um modo muito invulgar. 

Centenas de milhares, talvez mesmo um milhão de peregrinos reúnem-se no dia memorável, no nome do Abençoado Bhagavan ou Amado. Eles reúnem-se, chamados por um impulso interno do coração, de boa vontade e  rejuvenescem por lembranças e esforços jubilosos. Não será isto uma notabilíssima expressão da vox populi? Este é o julgamento da nação, a reverência do povo, que não pode ser compelido nem dirigido à força. Como luzes inesgotáveis elas espalham-se de umas para as outras formando uma chama inextinguível, pelo que tal reverência nacional não é obscurecida, mas irradia mesmo através das comoções destes tempos do mundo contemporâneo.

Presentemente muitas crises agarram as pessoas. Pode acontecer que  o espírito das pessoas se torne confuso e distraído do que é fundamental espiritualmente. Nos nossos dias ouve-se frequentemente o lamento pelo desmoronar das fundações. Mas  este milhão de peregrinos, reunidos por sua livre vontade  é a melhor prova viva de que acima das confusões de hoje vive no corações um  inesgotável espiritualidade e esforço em direcção ao Divino. Estamos optimistas e conquistamos todos os obstáculos através da boa vontade. 

Contemplemos os peregrinos  apressando-se para venerarem a memória de Ramakrishna num dia de calor intensíssimo, sem se assustarem com as distâncias. Não é isto um acontecimento notável, já que não é um dever obrigatório o que aproxima e junta todos os diferentes viajantes? Um coração puro e um esforço sincero conduzem-nos imperativamente aos lugares consagrados pelo nome [e vibração] de Ramakrishna. Tal ajuntamento ou reunião espiritual é a mais preciosa evidência nos nossos dias. É maravilhoso que no meio do trabalho  pesado, por entre dúvidas e depressão, as pessoas possam ser iluminadas pela chama da gratidão e veneração. Os seus corações chamam-nos sincronicamente. Não estão a reunir-se para a destruição, nem para discussões ou insultos, mas com o fim de unirem os seus pensamentos sobre e para o Bem.

Um grande poder  está contido num pensamento benévolo unido [de muitas pessoas]. A Humanidade deve valorizar tais sublimes manifestações, que são a causa de todos estes pensamentos unitivos e construtivos. O pensamento do Bem é criativo! O Bem nunca destrói, incansavelmente constrói e eleva. Por injunções do bem são afirmadas essas fundações eternas, que foram transmitidas à humanidade pelos melhores registos de leis sagradas. O pensamento do abençoado Bhagavan [Bem amado] para o criativo Bem permanecerá para sempre como a maior herança espiritual da humanidade.

A luz é especialmente poderosa durante as horas de trevas. Possa a Luz ser eternamente preservada! Nas suas parábolas acerca do Bem, Ramakrishna nunca diminuiu ninguém. E não só no Ensinamento, em parábolas, mas nos seus próprios actos ele nunca tolerou maldade. Lembremo-nos das suas atitudes reverentes para com todas as religiões. Tal abrangente modo de ser e de ver tocará mesmo um coração de pedra. Na sua vasta visão, o abençoado Bhagavan possuía certamente um conhecimento directo [ou intuitivo, clarividente] real. O seu poder de cura, transmitia-o livremente. Nunca fazia nada que não fosse útil. Esgotou a sua força [vital] em incontáveis dádivas abençoadoras. E mesmo a sua doença foi devida certamente a esse esforço constante de derramar a sua energia espiritual para a cura dos outros. . E neste dar-se generosamente Ramakrihsna manifestou a sua grandeza. 

Em todas as partes do mundo o nome de Ramkrishna venerado é. Também se reverencia Swami Vivekakanda, que simboliza o verdadeiro discipulado. Os nomes de Ramakrishna, Vivekananda e da gloriosa hoste dos seus seguidores permanece como uma das mais notáveis páginas da história da cultura espiritual da India. A espantosa profundidade de pensamento, que é característica da Índia, a bela manifestação do Guru e do Chela (discípulo)  - relembra ao mundo inteiro os ideais básicos. Passam as eras, modificam-se por completo as civilizações, mas a mesma relação sábia entre o Guru e o discípulo mantem-se, tal como se estabelecera desde a antiguidade mais remota. Desde há muitos milénios as palavras que já se registam as palavras de Sabedoria.E há muitos mais milénios antes disso eram preservados, por transmissão oral.  E nesta transmissão sagrada de boca a ouvido talvez eles fossem mais preservados mais seguros do que por registos escritos. A habilidade de manter o significado correcto depende do desenvolvimento de uma consciência sábia e nisto está contida a aplicação de pedras preciosas do passado para um futuro brilhante.

Não só o valor duradouro do Ensinamento do Bem afirmado por Ramakrishna, mas precisamente a necessidade de tais palavras em especial para os nossos tempos é inquestionável. Quando a espiritualidade, como tal, é tão frequentemente refutada através de fórmulas interpretadas incorrectamente, então  a afirmação construtiva irradiante como um farol torna-se especialmente preciosa. Basta uma pessoa saber  o número colossal de edições da missão Ramakrishna, ou lembra-se do vasto número de cidades na qual a Missão Ramakrishna tem os seus ramos. Estes números não requerem exageração. Não há uma nervosidade artificial nem premeditação neste  ajuntamentos tão criador de pensamento. Tudo é realizado profundamente nem em tumulto nem correria, mas cresce na mais elevada comensurabilidade.

Os pensamentos acerca de Deus, que Ramakrishna tão generosamente ensinou, devem despertar os melhores lados dos corações humanos. Ramakrishna sempre pregou contra os negadores e destruidores. Ele era em todos os aspectos um construtor para o Bem, e os seus admiradores, baseados nos exemplos do seu Ensinamento devem desenvolver os melhores tesouros escondidos dos seus corações. Tal criatividade benéfica é muito activa. E isso transmuta-se naturalmente também nas melhores realizações em todos os caminhos da vida.

Reunindo-se no memorável dia do aniversário de Ramakrihna, os peregrinos não temem a poeira das estradas, não se assustam com o calor fatigante, mas são preenchidos por uma aspiração ao serviço do bem, para o grande serviço da Humanidade. Serviço à Humanidade - grande é esta orientação ou injunção de Ramakrishna!

Reverência ao Professor ou Mestre!

"Eu lembro-me de um pequeno hindu que encontrou o seu Mestre. Nós perguntamos-lhe: É possível que o sol brilhe para ti, se o visses sem o Mestre?

O rapaz sorriu. O Sol permaneceria como o sol, mas na presença do Mestre doze sois brilhariam para mim

O Sol da sabedoria da Índia brilhará porque nas margens de um rio está sentado um jovem que conhece o Mestre».

Símbolo da Ordem Ramakrishna, com o cisne ou hamsa que discerne e ama a verdade e o bem.