O Aviso ao leitor do Oriente que antecede o livro a Vida de Ramakrishna, permite-nos de novo, tal como o inicial Aviso ao leitor do Ocidente, já apresentado no blogue, descortinarmos certas qualidades anímicas de Romain Rolland, nomeadamente a sua independência, a sua liberdade de pensamento e de adoração, não se deixando limitar ou deter em qualquer religião ou culto: era claramente um universalista, ainda que com profundas raízes bem sentidas na regionalidade ou localidade que o nutrira ou rodeava. Foi certamente por isso que foi personagem importante do movimento pacifista aquando da 1ª grande Guerra e depois um forte apoiante da Rússia e um opositor de Hitler e do nazismo, algo que infelizmente vemos ressurgir hoje em novas formas ultranacionalistas ou opressivas.
Se nascera em 1866 e em 1915 recebia o prémio Nobel da Literatura pela sua grande sensibilidade à fraternidade e unidade humana, quando já publicara o seu ciclo de romances, livros sobre músicos, e um sobre Tolstoi, por quem teve grande admiração (como afirmou no Aviso ao Leitor Ocidental), será só após a Déclaration de l'indépendance de l'Esprit, publicada em junho de 1919 no diário socialista l'Humanité, e as polémicas suscitadas por um pacifismo anti-nacionalista e sem se assumir forçosamente num partido, de esquerda ou de direita, que começa a trabalhar nos mestres indianos, dando à luz as biografias de Gandhi em 1924 e em 1929 e 1930, do mestre Sri Ramakrishna e de Vivekananda, seu principal discípulo e transmissor para o Ocidente. E conseguiu aproximar-se deles com bastante qualidade, embora aqui e acolá os seus comentários manifestem algumas incompreensões da espiritualidade mais profunda e vivencial indiana, aliás algo de que ele se desculpa de antemão, como leremos.
Anote-se que antes de começar a advertência ao leitor indiano, ele transcreve em epígrafe inicial uma citação de Sri Ramakrishna, de 28-XI-1882, bem valiosa, vasta, universalista, que de certo modo ainda mais o protegia, como moderno pesquisador da verdade:
«Saudações aos pés do Jnanin [ sábio pelo discernimento]! Saudação aos pés do Bhakta [devoto amoroso]!Saudações aos devotos que creem no Deus com forma [dvaitas]! Saudações aos devotos que creem no Deus sem forma [advaitas]! Saudações aos antigos conhecedores de Brahman! Saudação aos modernos conhecedores da Verdade!...»
«Peço aos meus amigos e leitores Indianos de serem indulgentes com os erros que eu possa cometer. Apesar de todo o fervor com que eu trabalhei, é fatal que um ocidental dê interpretações frequentemente erradas dos orientais e das suas experiências de um pensamento milenário. Tudo que eu posso dar em testemunho, é a minha sinceridade e os esforços piedosos que realizei para entrar em todas as formas de vida [indianas e de Ramakrishna].
Todavia, não escondo que nunca abdico do meu julgamento livre de homem do Ocidente. Respeito a fé de todos e, frequentemente, amo-a. Mas nunca me alisto. Se Ramakrishna me é próximo, é porque eu vejo nele um homem, e não, como os seus discípulos, uma incarnação [avatar, da Divindade].
De acordo com os Vedantistas [os que adoptam a visão Vedântica, baseada nos Vedas, Upanishads e no filósofo Shankara] para eu admitir que o divino está ou é na alma, e que a alma está ou é no todo - que Atman (espírito-alma individual) é Brahman (a Divindade ou espírito alma total) - eu não tenho necessidade de encerrar Deus dentro das fronteiras dum ser humano privilegiado: tal é ainda, aos meus olho, uma forma (que se ignora) de "nacionalismo" de espírito; e eu não o aceito de modo algum. Eu vejo "Deus" em tudo o que existe. Vejo-o todo inteiro no mais pequeno segmento, como no Todo Cósmico. Nenhuma diversidade de essência. E quanto à potência, ela é em toda a parte infinita: a que jaz num punhado de poeira poderia, se soubéssemos, fazer explodir um mundo. A única diferença é que ela está mais ou menos concentrada, no coração de uma consciência, dum eu, ou então dum núcleo de um átomo. O maior dos grandes seres não é senão um espelho mais claro do sol que brinca ou joga em cada gota de orvalho.
É por isso que eu nunca estabeleço esses fossos sagrados que agradam aos devotos, religiosos ou laicos, entre os heróis da alma e os milhões dos seus obscuros companheiros do passado e do presente. E tal como em relação ao Cristo e ao Buda, eu não isolo Ramakrishna e Vivekananda do grande exército em marcha do Espírito do seu tempo. Tento, no decurso deste livro, de fazer justiça às personalidades geniais que, desde há um século, têm surgido da Índia renovada, e despertado as antigas energias da sua terra, e feito reflorescer uma primavera de pensamento.
Cada uma delas criou a sua obra e cada uma tem os seus fiéis que a constituíram em igreja e tendem inconscientemente a considerá-la como a igreja do único ou do maior Deus.
Afastado dos desse partidos, eu recuso-me a ver o que os opõe: à distância donde estou, as barreiras dos campos fundem-se numa extensão imensa. Vejo só um mesmo rio, um majestoso «caminho que marcha», como disse o nosso Pascal. E é porque nenhuma alma humana concebeu e realizou em si tão plenamente como Ramakrishna a Unidade total deste rio de Deus, aberto a todos os rios e regatos, que eu lhe voto o meu amor. E extraí dele um pouco da sua água sagrada, a fim de saciar a grande sede do mundo.
Mas eu não me detenho, debruçado sobre a borda do fluxo. Prossigo a minha marcha, com o fluxo até ao mar. Deixando, a cada desvio do rio aonde a morte disse: "Para", a um desses que nos guiam, ajoelhados os fiéis, e eu acompanho o rio. E presto-lhe homenagem, da fonte ao estuário. Santa é a fonte, santo é o seu curso, santo é o estuário. E nós abraçamos, com o rio, os afluentes, pequenos ou grandes, e o Oceano - toda a massa em movimento do Deus vivo.»
Natal de 1928, Romain Rolland.
Como breve comentário a este valioso prefácio ou aviso apenas diremos que a frase: "Se Ramakrishna me é próximo, é porque eu vejo nele um homem, e não, como os seus discípulos, uma incarnação [avatar, da Divindade], não é muito feliz, pois mesmo os que viam um avatar em Sri Ramakrishna não anulavam nisso o homem, aliás tão visível no pequeno brâmane do campo e iletrado, simples e nada de grandezas e separativismos. Algo da pluridimensional concepção da avatarização escapou a Romain Rolland pois Ramakrishna era um homem, um yogi, um místico, um religioso em quem o espírito estava bastante mais desperto e activo que nos seres humanos normais pois manifestava tanto a Divindade que se podia senti-La nele mais e logo considerem-no um ser manifestante da Divindade viva, ou em quem Ela de certo modo descia ou tinha descido, que é o que significa etimologicamente a palavra sânscrita avatar.
Sri Ramakrishna em intensificação espiritual, extasis, avatarizando... |
Erra também um pouco, fruto talvez da sua forte afirmação de livre arbítrio e liberdade, quando pensa que tinha que encerrar a Divindade num limitado ser humano, quando Ela certamente em muitíssimo o transbordava ou transcendia, como ele tantas vezes o afirmou, face à Deusa que ele adorava.
Engana-se também de certo modo quando tende a ver a Divindade apenas como a energia ou força tanto presente na gota de água, ou na areia como no ser humano. Escapou-lhe a realização mais plena do espírito individual, do atman, da centelha espiritual nele, e que não está individualizada na gota de água ou no grão de areia.
Também exagerou quando diz que os seus discípulos criaram fossos sagrados ou o consideravam como o único ou o melhor Deus, quando de facto a maioria dos discípulos, mesmo os que o consideravam um avatar, ou uma semi-avatarização, não o consideravam o único Deus, ou o melhor Deus, ou mesmo Deus.
A sua visão da Divindade é mais a de um poeta, intelectual e panteísta, em que Ela é um Deus vivo como a massa total da manifestação em marcha, mais do que uma divindade seja imanente, seja transcendente, seja cósmica.
Seria importante sabermos que experiências espirituais Romain teve ao longo da vida, para além da grande absorção da espiritualidade indiana realizada seja para escrever esta obra seja para a seguinte, em dois volumes, sobre Vivekananda e o Evangelho Eterno em acção. É possível que haja já alguns bons estudos sobre a espiritualidade indiana de Romain Roland, das suas claridades e das limitações. Para já ficamos com estes dois valiosos avisos ou advertências que rduzie, e certamente ainda publicarei mais algum texto, para além de dois vídeos que já gravei e partilhei no Vk. com e no Youtube, sobre a vida e ensinamento de Ramakrishna, um em ligação com a obra de Romaim Roland, outro a partir da minha experiência na Índia e com Ramakrishna e sua linhagem.
Talvez haja ainda uma pequena contradição entre os seus dois avisos e que poderemos apontar já que toca num aspecto importante: fala ele no 1º em Shakespeare, Beethoven, Tolstoi e Roma como os mestres que o nutriram; e no 2º põe em causa a admiração ou devoção que os devotos projectam sobre os seus mestres, endeusando-os demais e esquecendo-se dos milhões de contemporâneos também importantes. Ora tal não é correcto, pois nem Ramakrisha menozprezava as pessoas humildes ou pobres e antes testemunhou frequentemente a sua profunda sensibilidade fraterna, nem os discípulos e depois a Ordem de Ramakrishna deixou de fazer um trabalho social ou karma yoga (união pela acção desinteressada) ou seva (serviço) tão grande que chegou a ser mesmo criticado por estarem a ser demasiado socialistas no bom sentido.
A companhia ou satsanga do corpo místico da Humanidade e das diferentes religiões, linhas iniciáticas e tradicionais e até famílias em que estamos inseridos é bem importante de ser consciencializada e trabalhada e assim ao longo dos séculos muitos têm recebido sinais inspiradores e animadores provando continuação da vida nossa espiritual para alem da morte do corpo físico, neles se destacando certamente os mestres, aqueles que mais despertos e activos estão no mundo espiritual, tal Sri Ramakrishna Paramahansa. Que eles nos inspirem...
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