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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2023

"Vida de Ramakrishna", por Romain Rolland. O aviso ao leitor Oriental, traduzido e brevemente comentado por Pedro Teixeira da Mota

 O Aviso ao leitor do Oriente que antecede o livro a Vida de Ramakrishna, permite-nos, tal como o seu inicial Aviso ao leitor do Ocidente, já  apresentado no blogue,  descortinarmos  certas qualidades anímicas de Romain Rolland, nomeadamente a independência e a liberdade de pensamento e de adoração, não se deixando limitar ou deter em qualquer religião ou culto, pois era claramente um universalista, ainda que com profundas raízes bem sentidas na regionalidade ou localidade francesa que o nutrira ou rodeava.  Foi certamente por isso que foi personagem importante do movimento pacifista aquando da 1ª grande Guerra e depois um forte apoiante da Rússia e um opositor de Hitler e do nazismo, algo que infelizmente vemos ressurgir hoje em novas formas ultranacionalistas ou opressivas, com a União Europeia a assumir posições fascizantes e ditatoriais anti-russas, com vários dirigentes da União Europeia procurando uma desforra da derrota sofrida na II grande Guerra 

Se nascera em 1866 e em 1915 recebia o prémio Nobel da Literatura pela sua grande sensibilidade à fraternidade e unidade humana, quando já publicara o seu ciclo de romances, livros sobre músicos, esobre Tolstoi, por quem teve grande admiração (como afirma no Aviso ao Leitor Ocidental), será só após a  Déclaration de l'indépendance de l'Esprit, publicada em junho de 1919 no diário socialista l'Humanité, e as polémicas suscitadas por um pacifismo anti-nacionalista e sem se assumir forçosamente num partido de esquerda ou de direita que, findo a I grande Guerra, começa a trabalhar  nos mestres indianos, dando à luz as biografias de Gandhi em 1924, e em 1929 e 1930, as do mestre Sri Ramakrishna e de swami Vivekananda, seu principal discípulo e transmissor para o Ocidente. E conseguiu aproximar-se deles com bastante qualidade, embora aqui e acolá os seus comentários manifestem algumas incompreensões da espiritualidade mais profunda e vivencial indiana, algo aliás de que ele se desculpa de antemão, como leremos.
                                   
Anote-se que antes de começar a advertência ao Leitor Oriental, ele transcreve em epígrafe inici
al uma citação de Sri Ramakrishna, de 28-XI-1882, bem valiosa, vasta, universalista, que de certo modo ainda mais o protegia, como moderno pesquisador da verdade: «Saudações aos pés do Jnanin [ sábio pelo discernimento]! Saudação aos pés do Bhakta [devoto amoroso]!Saudações aos devotos que creem no Deus com forma [dvaitas]! Saudações aos devotos que creem no Deus sem forma [advaitas]! Saudações aos antigos conhecedores de Brahman  [Brahman Jnanis]! Saudação aos modernos conhecedores da Verdade!...»
«Peço aos meus amigos e leitores Indianos de serem indulgentes com os erros que eu possa cometer. Apesar de todo o fervor com que eu trabalhei, é fatal que um ocidental dê interpretações frequentemente erradas dos orientais e das suas experiências de um pensamento milenário. Tudo que eu posso dar em testemunho, é a minha sinceridade e os esforços piedosos que realizei para entrar em todas as formas de vida [indianas e de Ramakrishna].
Todavia, não escondo que nunca abdico do meu julgamento livre de homem do Ocidente. Respeito a fé de todos e, frequentemente, amo-a. Mas nunca me alisto. Se Ramakrishna me é próximo, é porque eu vejo nele um homem, e não, como os seus discípulos, uma incarnação [avatar, da Divindade].
De acordo com os Vedantistas [os que adoptam a visão Vedântica, baseada nos Vedas, Upanishads e no filósofo Shankara] para eu admitir que o divino está ou é na alma, e que a alma está ou é no todo - que Atman (espírito-alma individual) é Brahman (a Divindade ou espírito alma total) - eu não tenho necessidade de encerrar Deus dentro das fronteiras dum ser humano privilegiado: tal é ainda, aos meus olho, uma forma (que se ignora) de "nacionalismo" de espírito; e eu não o aceito de modo algum. Eu vejo "Deus" em tudo o que existe. Vejo-o todo inteiro no mais pequeno segmento, como no Todo Cósmico. Nenhuma diversidade de essência. E quanto à potência, ela é em toda a parte infinita: a que jaz num punhado de poeira poderia, se soubéssemos, fazer explodir um mundo. A única diferença é que ela está mais ou menos concentrada, no coração de uma consciência, dum eu, ou então dum núcleo de um átomo. O maior dos grandes seres não é senão um espelho mais claro do sol que brinca ou joga em cada gota de orvalho.
É por isso que eu nunca estabeleço esses fossos sagrados que agradam aos devotos, religiosos ou laicos, entre os heróis da alma e os milhões dos seus obscuros companheiros do passado e do presente. E tal como em relação ao Cristo e ao Buda, eu não isolo Ramakrishna e Vivekananda do grande exército em marcha do Espírito do seu tempo. Tento, no decurso deste livro, de fazer justiça às personalidades geniais que, desde há um século, têm surgido da Índia renovada, e despertado as antigas energias da sua terra, e feito reflorescer uma primavera de pensamento.
Cada uma delas criou a sua obra e cada uma tem os seus fiéis que a constituíram em igreja e tendem inconscientemente a considerá-la como a igreja do único ou do maior Deus.
Afastado dos desses partidos, eu recuso-me a ver o que os opõe: à distância donde estou, as barreiras dos campos fundem-se numa extensão imensa. Vejo só um mesmo rio, um majestoso «caminho que marcha», como disse o nosso Pascal. E é porque nenhuma alma humana concebeu e realizou em si tão plenamente como Ramakrishna a Unidade total deste rio de Deus, aberto a todos os rios e regatos, que eu lhe voto o meu amor. E extraí dele um pouco da sua água sagrada, a fim de saciar a grande sede do mundo.
Mas eu não me detenho, debruçado sobre a borda do fluxo. Prossigo a minha marcha, com o fluxo até ao mar. Deixando, a cada desvio do rio aonde a morte disse: "Para", a um desses que nos guiam, ajoelhados os fiéis, e eu acompanho o rio. E presto-lhe homenagem, da fonte ao estuário. Santa é a fonte, santo é o seu curso, santo é o estuário. E nós abraçamos, com o rio, os afluentes, pequenos ou grandes, e o Oceano - toda a massa em movimento do Deus vivo.»
Natal de 1928, Romain Rolland.
                                         
Como breve comentário a este valioso prefácio ou aviso apenas diremos que a frase: "Se Ramakrishna me é próximo, é porque eu vejo nele um homem, e não, como os seus discípulos, uma incarnação [
avatar, da Divindade], não é muito feliz, pois mesmo os que viam um avatar em Sri Ramakrishna não anulavam nisso o homem, aliás tão visível no pequeno brâmane do campo e iletrado, simples e nada de grandezas e separativismos. Algo da pluridimensional concepção da avatarização escapou a Romain Rolland pois Ramakrishna era um homem, um yogi, um místico, um religioso em quem o espírito estava bastante mais desperto e activo que nos seres humanos normais pois manifestava tanto a Divindade que se podia senti-La nele mais e logo considerem-no um ser  manifestante da Divindade viva, ou em quem Ela de certo modo descia ou tinha descido, que é o que significa etimologicamente a palavra sânscrita avatar.

        
Sri Ramakrishna em intensificação espiritual, êxtase...

Erra também um pouco, fruto talvez da sua forte afirmação de livre arbítrio e liberdade, quando pensa que tinha que encerrar a Divindade num limitado ser humano, quando Ela certamente em muitíssimo o transbordava ou transcendia, como ele tantas vezes o afirmou, face à Deusa, ou à forma feminina divina, que ele adorava.
Creio que se engana-se também quando tende a ver a Divindade apenas como a energia ou força tanto presente na gota de água, ou na areia como no ser humano. Escapou-lhe a realização mais plena do espírito individual, do atman, da centelha espiritual divina no ser humano, e que não está individualizada na gota de água ou no grão de areia.
Também exagerou quando diz que os seus discípulos criaram fossos sagrados, ou o consideravam como o único ou o melhor Deus, quando de facto a maioria dos discípulos, mesmo os que o consideravam um avatar, ou uma semi-avatarização, não o consideravam o único Deus, ou o melhor Deus, ou mesmo Deus.
A sua visão da Divindade é mais a de um poeta, intelectual e panteísta, em que
 Ela é um Deus vivo como a massa total da manifestação em marcha, mais do que a Divindade seja imanente, seja transcendente.
Seria importante sa
bermos que experiências espirituais Romain Rolland obteve ao longo da vida, para além da grande absorção da espiritualidade indiana  realizada para escrever esta biografia e os dois volumes do Vivekananda e o Evangelho Eterno em acção. É natural que haja já alguns bons estudos sobre a espiritualidade indiana de Romain Roland e das suas claridades e  limitações. Para já ficamos com estes dois valiosos avisos ou advertências, e certamente ainda publicarei mais algum texto, para além de dois vídeos que  partilhei no Vk. com e no Youtube, sobre a vida e ensinamentos de Ramakrishna, um em ligação com  a obra de Romain Roland, outro a partir da minha experiência na Índia e com sri Ramakrishna e sua linhagem de discípulos.
Talvez ha
ja ainda uma pequena contradição entre os seus dois avisos e que poderemos apontar pois toca num aspecto importante: aponta ele no 1º que Shakespeare, Beethoven, Tolstoi e [a civilização de] Roma foram os mestres que mais o nutriram; e no 2º põe em causa a admiração ou devoção que os devotos projectam sobre os seus mestres,  endeusando-os demais e esquecendo-se dos milhões de contemporâneos também importantes. Ora tal não é correcto, pois nem Sri Ramakrisha menosprezava as pessoas humildes ou pobres e antes testemunhou frequentemente a sua profunda sensibilidade fraterna, nem os discípulos e depois a Ordem de Ramakrishna deixou de fazer um trabalho social ou karma yoga (união pela acção desinteressada) ou seva (serviço) tão grande que chegou a ser mesmo criticado por estarem a ser demasiado socialistas no bom sentido. Mas tal críticprocede ou aplica-se a muitos grupos, seitas, igrejas...
A companhia ou sa
tsanga do corpo místico da Humanidade e das diferentes religiões, linhas iniciáticas e tradicionais e até famílias em que estamos inseridos é bem importante de ser consciencializada e trabalhada e assim  ao longo dos séculos muitos têm recebido sinais inspiradores e animadores provando continuação da vida nossa espiritual para alem da morte do corpo físico, neles se destacando certamente os mestres, aqueles que mais despertos e activos estão no mundo espiritual, tal Sri Ramakrishna Paramahansa. Que eles nos inspirem...