domingo, 19 de fevereiro de 2023

A vida de Ramakrishna, por Romain Roland. O prefácio, traduzido e apresentado por Pedro Teixeira da Mota....

                                            Sri Ramakrishna — Vedanta Society

A apresentação da vida e obra do extraordinário yogi e místico bengali Sri Ramakrishna (1836-1886), foi muito bem realizada na obra La Vie de Ramakrishna, por Romain Rolland, dada à luz em Paris, 1929, um dos primeiros divulgadores no Ocidente, pouco depois de uma biografia do alemão Max Müller, pois Romain Rolland (1866-1944), que já biografara Gandhi, estava preparado para se aproximar com sensibilidade e conhecimento da espiritualidade indiana.  

Foi num exemplar da edição de 1947, que pertenceu ao meu irmão mais velho Carlos, e que o sublinhou, com nota de posse de Maio de 1963, que estabeleci um dos meus primeiros contactos com a Índia espiritual e os seus grandes espíritos, mahatmas.

Terminando a minha licenciatura parti para a Índia. E em 1995 regressei de novo por um ano, permanecendo seis meses em Calcutá no Instituto de Cultura, da missão Ramakrishna, dirigida por Swami Lokeswarananda, em estudos, meditações e traduções, estas com Sat Chitananda Dar, tendo sido mesmo iniciado nesta linha ou ordem pelo então vice-presidente Swami Ranganathananda. Presto assim homenagem tanto a Ramakrishna Paramahansa e à sua linhagem, tal como os Swami Ranganathananda e Lokeswarananda e ao pandit Sat Chitananda Dhar, bem como a Romain Rolland e  Carlos Teixeira da Mota, bons pensadores e escritores. Muita Luz e Amor neles e em nós! 

Vou transcrever (na quase totalidade) a justificação inicial de Romain Rolland, que escrita em 1928, há quase cem anos permanece, muito sábia e actual, já que, confessando quanto deve à companhia (satsanga, ou corpo místico da humanidade) invisível dos seres que ama, realça tanto a importância de sairmos das estreitezas das religiões exclusivistas ou então dos ateísmos anti-religiosos, e despertarmos para a unidade do Ocidente e do Oriente, ou da Eurásia, como manifesta uma boa compreensão das profundezas (não psicanalíticas) da alma humana, regional e universal,  apontando ainda  para o despertar da clarividência, do amor, da abnegação para uma Humanidade mais fraterna e mais ligada internamente com a Divindade, ou a Fonte, a partir do exemplo de um simples camponês bengali verdadeiramente "fabuloso". Oiçamo-lo:

«Consagrei a minha vida à reaproximação dos seres humanos. Tentei-o entre os povos da Europa e articularmente entre os dois grandes irmãos inimigos do Ocidente [França e Alemanha]. Esforço-me, desde há dez anos, de o realizar entre  Ocidente e o Oriente. E queria-a o tentar também entre as formas de mentalidade  que erradamente se consideram eles representarem: a razão e a fé - já que seria mais justo de dizer: entre formas diversas da razão e da fé, pois uma e outra estão repartidas quase igualmente nos dois lados. Mas as pessoas não duvidam [de que essa distinção ou fosso é irreal].

Fez-se nos nossos dias um divórcio absurdo entre estas duas metades da alma. As pessoas foram persuadidas que são incompatíveis. Não há de incompatível senão a estreiteza comum daqueles que abusivamente pretendem ser os seus representantes.

Por um lado, os que se dizem religiosos fecham-se todos nos muros da sua capela, e não só recusam sair (o que é o seu direito!) mas negariam, se pudessem, tudo o que está de fora desse direito de existir. E do outro lado, os  representantes do livre-arbítrio, que estão, na maioria, despidos de sentido religioso (é o seu direito) julgam-se frequentemente designados para combater e negar o direito a existir das almas religiosas, [Muito comum nessa época em França]. Vê-se que se encarniçam em vão em demolições sistemáticas da religião, sem se aperceberem que atacam o que não conhecem. Pois de que serve raciocinar sobre a religião, apenas segundo o revestimento dos textos históricos ou pseudo-históricos, que o tempo desagregou ou recobriu da sua patine?

O mesmo se passa com o explicar o facto interior da consciência psicológica pela dissecação dos órgãos materiais, que são os instrumentos. Esta confusão feita pelos nossos racionalistas do sinal da expressão com a energia do pensamento, parece-me tão ilusória como aquela, comum às religiões de outrora, de identificar as potências mágicas com as palavras, as sílabas, ou as letras que as designam. [Embora uma magia da palavra seja eficaz nas almas e energeticamente no campo unificado ambiental]

A primeira condição para conhecer, julgar, e, se o desejamos, combater a ou as religiões, é de ter experimentado sobre si mesmo o facto da consciência religiosa. E mesmo os que entraram na profissão religiosa não estão qualificados para falar: pois se eles são sinceros, eles reconhecerão que o facto da consciência religiosa e a profissão religiosa são duas [realidades diferentes]. Muitos dos sacerdotes bem honestos são crentes por obediência, ou por raciocínio prudente e preguiçoso, e nunca sentiram a necessidade de experiência religiosa, ou, não tendo a força, evitaram de a tentar. E numerosos seres que se creem livres de toda a religião, vivem banhados num estado de consciência supra-racional [ou infra-racional] a que colam a etiqueta: Socialismo, Comunismo, Humanitarismo, Nacionalismo - veja-se mesmo Racionalismo.

Não é o objecto do pensamento que determina a sua proveniência e permite decidir se ela pertence à religião ou não: é a qualidade desse pensamento. Se ele se orienta intrepidamente para a procura da verdade custe o que custar, numa sinceridade pena e disposta a todos os sacrifícios, eu chamo-lhe religiosa: pois ela pressupõe a fé num fim do esforço humano, superior à vida do indivíduo, por vezes da comunidade presente, e mesmo da totalidade da humanidade. Até mesmo o cepticismo, quando ele é a expressão da força e não da impotência, participa do Grande Exército da Alma Religiosa.

E não tem nenhum direito, ao contrário, de levar as cores, os milhares desses crentes das igrejas cobardes -clérigos ou laicos - que não creem por eles mesmos, mas que restam afundados no estábulo, ou onde eles bezerros, diante de uma manjedoura cheia de feno das crenças cómodas, que só tem o trabalho de ruminar.

Sabe-se a palavra trágica sobre o Cristo, que «ele será em agonia até ao fim do mundo».... Eu não creio, pela minha parte, a um só Deus pessoal, nem sobretudo a um Deus só da Dor. Mas eu acredito que (a dor e a alegria misturadas, e com elas todas as formas da vida) que só é de Deus o que no homem e nos seres humanos e no universo, é um perpétuo nascimento. A criação renova-se a cada instante. A religião não é uma obra jamais realizada. Ela é acto e vontade de agir sem repouso. Ela é o brotar da força. Nunca o tanque parado.

Sou dum país de rios. Amo-os como seres vivos. E compreendo os meus antepassados que lhes ofereciam libações de vinho e leite. Ora de todos o rio, o mais sagrado é aquele que brota, a todo o momento, do fundo da alma, dos seus basaltos, das suas areias, dos seus glaciares. É lá que está a Força primeira que eu denomino religiosa. Ela é comum à arte e à acção, às ciências e às religiões, a todo esse rio da Alma, que de insondável e sombrio reservatório, leva à irresistível subida para o oceano do Ser, consciente, realizado, dominado. E tal como a água sobe de novo em vapores, do mar às nuvens do céu, que realimentam o reservatório dos rios, os ciclos da criação se encadeiam sem interrupção. E da fonte ao mar, e do mar à fonte, tudo é a mesma energia, o Ser, sem começo nem fim, que me é indiferente que se chame Deus (e que Deus?) ou Força (e qual Força? Seja ela chamada Matéria, que matéria, será que tal designa igualmente as energias do Espírito?...) Palavra, palavras!... A essência é Unidade, não abstracta mas viva. E ela que eu adoro, tal como os grandes crentes e os grandes ignorantes, que a trazem consigo, conscientes ou inconscientes.

A ela eu dedico a obra nova que eu apresento: - à Grande Deusa, invisível, imanente, que liga com os seus braços de ouro a grinalda  da polifonia discontinuada - a Unidade. 

Ela é, depois um século, na Índia nova, o fim para o qual está lançada a flecha de todos os arqueiros. Desta terra sagrada, Ganges dos povos e dos pensamentos, surgiram, neste século, personalidades torrenciais. Quaisquer que sejam as  diferenças entre uma e outra, a direcção é a mesma: a Unidade humana, pelo canal de Deus. Mas através de cada substituição de equipas, a Unidade alargou-se, cada vez mais se tornou clara.

Do começo o fim deste grande movimento, tratar-se-á sempre da cooperação, sobre um pé de igualdade, do Ocidente e do Oriente, e das forças da razão com as - não da fé, no sentido de aceitação cega, que ela apanhou de épocas servis e de raças esgotadas mas da intuição viva e vidente: o olho na fronte do Ciclope, que não anula, mas completa os outros.

Nesta magnífica vinda de heróis do espírito, que nós percorremos mais longe [no capítulo VI, os Construtores do Espírito, Ram Mohun Roy, Devendranath Tagore, Dayananda, Keshab Chundra Sen], fiz a escolha de dois homens que me conquistaram, porque realizaram com uma encanto e um poder incomparáveis esta esplêndida sinfonia da Alma Universal. 

O assunto do meu livro [que seria em dois volumes] é triplo e um. Compreende a narrativa destas duas vidas extraordinárias - uma quase fabulosa, a outra verdadeiramente épica - que se desenrolaram no nosso tempo, às nossas portas - e a exposição dum elevado pensamento, religioso, filosófico, moral e social que, saído do fundo dos séculos da Índia, dirige-se à Humanidade de hoje.

Se bem que (vereis no livro) o interesse patético, a poesia fascinante, a graça e a grandeza homérica das duas vidas chegam para explicar que eu passei dois anos da minha vida a investigar os seus caminhos e explorar os seus rio, a fim de que os vossos olhos possam passear agora sobre eles, - e não foi a curiosidade da viagem que me invitou a tentá-lo.

Eu não sou diletante. E não trago aos leitores fatigados razões de se fugir, mas de se encontrar. Encontrar o eu profundo, nu, sem máscara, sem mentira. Eu criei-me uma companhia daqueles que eu procurei, quer estejam vivos ou mortos, e não me inquieto acerca do limites dos século ou das nações. Não há, para alma nu, Ocidente nem Oriente: são vestidos. O mundo é a casa deles. E a sua casa, sendo de todos, é de todos.

Desculpem-me se eu devo, para fazer compreender o pensamento íntimo donde saiu esta obra, por-me uns momentos em cena. Mas é apenas a título exemplo, de modo algum excepcional. Eu sou alguém do povo da França. Eu sei que represento milhares de pessoas de Ocidente, que eles, não tem os meios de se exprimir. Cada vez que um de nós fala, do fundo do coração, afim de se libertar, logo ao mesmo tempo libertar milhares de silêncios. Portanto, escutem não a minha voz, mas o eco.

Eu nasci e passei os meus primeiros quatorze primeiros anos numa região do centro da França, onde a minha família estava estabelecida desde há séculos. A minha fonte familiar ou racial é francesa ou católica sem qualquer liga estrangeira. E o meio ambiente onde estive selado até `minha chegada a Paris, perto de 1880, era o de uma velha província de Nivernais, que não deixava filtrar qualquer elemento de fora.

Ora neste vaso fechado, modelado na argila dos Gauleses, com o seu céu de linho e a água dos rios, eu encontrei, desde a infância, todas as marcas do universo. Quando mais à tarde, bastão na mão, percorri as rotas do pensamento, eu não encontrei em qualquer país nada de estrangeiro. Todas essas formas de almas, desde a origem, eram pressentidas ou conhecidas por mim, eram minhas. A experiência do exterior trazia-me somente a realização de estados interiores, que eu registara, sem poder encontrar sempre a chave. Nem Shakespeare nem Beethoven nem Tolstoi nem Roma, os meus mestres nutritivos, não me revelaram que o «Abre-te, Sésamo!» da minha cidade subterrânea, do meu Herculano, que dormia sob a lava. E eu convenci-me que ele dormia no fundo de muitos dos que me rodeiam. Mas eles ignoravam as suas profundezas, tal como eu as ignorava. E muito poucos se aventuravam acima do primeiro andar de cave, que a sua própria sabedoria prática lhes preparara, para o seu uso quotidiano, limitando as suas necessidades com economia, e a vontade de ordem dos mestres que cimentaram  torre a torre a unidade de França real e jacobina. Admiro esta construção. Historiador de profissão, vejo nisso uma das grandes obras da energia humana, iluminada pela mente ou espírito [em francês: esprit]. Aere  perennius...  [mais perene que o bronze, do romano Horácio]

[... Falta uma página, que provavelmente virei a traduzir...]

«Pode-se, se quisermos, demonstrar-se, como nisso trabalha hoje a exegese livre pensadora moderna, que toda a doutrina de Cristo está difundida antes dela, na alma oriental, semeada pelos pensadores da Caldeia, do Egipto, de Atenas e da Iónia. Nunca se se conseguirá que a pessoa do Cristo, real ou lendária (são duas ordens da mesma realidade), não esteja acima, com justiça, da pessoa dum Platão. Ela é a criação monumental e necessária da Alma da humanidade. Ela é o seu fruto mais belo, num dos seus Outonos. E a mesma árvore produziu, por uma mesma lei da natureza, e vida e a lenda. Elas são as duas a mesma carne vivificante e aureola do seu olhar, do seu sopro e da sua humidade.

Eu trago à Europa, que o ignora, o fruto de um novo outono, uma mensagem nova da Alma, a sinfonia da Índia que tem por nome Ramakrishna. Pode-se demonstrar (e nós não deixaremos de o assinalar) que esta sinfonia, como a dos nossos mestres clássicos, está argamassada de um cento de elementos musicais do passado. Mas a personalidade soberana na qual se concentra a diversidade dos elementos e que os organiza numa harmonia real, é sempre aquela que dá o eu nome a uma obra, na qual trabalharam as gerações sucessivas. E do seu signo vitorioso, é ela que marca a era.

O homem de que eu evoco aqui a imagem foi o coroamento de dois mil anos de vida interior dum povo de 300 milhões. Morto  há quarenta anos, ele é um animador  da  Índia do nosso tempo:Ele não foi um herói de acção, como Gandhi, nem um génio da arte ou do pensamento, como Goethe ou Rabindranath Tagore. Foi um pequeno camponês brâmane da Bengala, e cuja vida exterior se desenrolou num quadro limitado, sem incidentes marcantes, fora da acção política e social do seu tempo. Mas a sua vida interior abraçou a multiplicidade do homens e dos Deuses. Ela participava na própria fonte da Energia, a Shakti divina, que canta o velho poeta de Mithila, Vidyapati.

Muito pouco retornam à fonte. O pequeno camponês de Bengala, escutando os eu coração, e reencontrou os caminhos do Mar interior. E ele uniu-e a ele, realizando o versículo dos Upanishads: - «Eu sou mais antigo que os Deuses irradiantes. Eu sou o primogénito do Ser. Eu sou a artéria da Imortalidade». (Taitirya Upanishad).

Eu queria fazer ouvir o batimento da artéria, às orelhas da Europa febril, que matou o sono. Eu quero esfregar os seus lábios, do sangue da Imortalidade.»

Romain Rolland, Natal de 1928.

                          

A unidade da essência das religiões, diferentes aproximações e concepções de uma Fonte Divina única, vivenciada interiormente e ensinada por Ramakrishna Paramahansa...

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