Na sua Vida de Ramakrishna, Romain Rolland (29.I.1866 - 30.XII.1944), após os dois avisos preliminares aos leitores do Ocidente e do Oriente, escalona a obra em doze capítulos e realiza-os com grande sensibilidade e sabedoria, inata e adquirida, até por que uns anos antes biografar Gandhi (e antes de Tolstoi, mestre deste), como refere no 1º capítulo, intitulado o Evangelho da Infância, onde depois de narrar o seu nascimento a 18 de Fevereiro de 1836, e que em termos do calendário lunar corresponde neste ano de 2023 a 21 de Fevereiro, o dia de hoje, transcreve a narração de sri Ramakrishna da sua primeira iluminação ou êxtase, e tece um bom comentário a estes estados unitivos, fundamentais no caminhar espiritual e que de algum modo ou outro todos devemos sentir, tal como o mestre Bô Yin Râ também ensinava, nomeadamente nos sentimentos de unidade com o ser complementar e com a Natureza, e que Romain Rolland vai denominar como "manter a lanterna mágica acessa", tal como no Tarot, no arcano IX do Eremita podemos ainda contemplar, simbólica que já desenvolvi neste blogue.
Ramakrishna iria passar quase metade [ou bastante] da sua vida nele. E este primeiro êxtase revela já os caracteres próprios do controle divino sobre a alma desta criança. A emoção artística, o instinto apaixonado do belo, é o primeiro caminho que põe em contacto com Deus. Há, e vê-lo-emos, para a revelação divina, muitos outros caminhos: o amor do próximo, o da ideia, a mestria de si próprio, o labor probo e desinteressado, a compaixão, ou a meditação... Ele conhece-los-á a todos. Mas o mais imediato, nele, o da sua própria natureza, é o arrebatamento diante da face bela de Deus, que ele vê
[quase...] em tudo o que vê. Ele é o artista nato.
Ah! Quão difere ele dessa outra «grande alma» - do Mahatma da Índia, de quem eu me fiz outrora o Evangelista europeu, - Gandhi, o homem sem arte, o homem sem visões, que não as quer ter, que quase desconfia delas, o homem que vive em Deus pela acção bem raciocinada! A sua rota é a mais segura e reconfortante; é a que convém ao condutor de povos. A rota de Ramakrishna será mais bem perigosa, mas leva mais longe: para além dos precipícios que ladeia, descobrirá horizontes ilimitados: é a do Amor.
Era a do seu povo de Bengala, desta raça de artistas e de poetas amantes. Ela encontrara o seu guia inspirado no amoroso extático do deus Krishna, Chaintanya (1485-1533) e na sua bela música dos cantos (kirtans) deliciosos de Chandidas e de Vidyapati. Estes mestres seráficos - flores perfumadas da sua terra - impregnaram-no do seu hálito.
Durante [três] séculos a Bengala acinzentou-se [mas sobrevivendo em bhaktas, yogis, místicos, nas jatras ou peças populares e nos poetas ambulantes, os bhauls]. A alma da pequena criança Ramakrishna foi feita da sua substância: ela é a sua carne, reconhece-se, ele é o ramo florido da árvore de Chaintanya [1486-1534, grande místico do amor divino, prema, considerado avatar da união de Krisha e Radha]
O amoroso da beleza divina, o genial artista [Ramakrishna] que se ignora, de novo se revela, no seu segundo êxtase. Na noite de uma festa de Shiva, esta criança de 8 anos, apaixonada pela música e a poesia, que modela imagens e dirige uma pequena trupe dramática de rapazinhos da sua idade, toma parte numa peça sagrada onde desempenha o papel de Shiva; e, subitamente, o seu ser é bebido pelo seu herói: sobre as suas bochechas pequenas rolam lágrimas de felicidade; perde-se na glória de Deus; é arrebatado tal como Ganimedes pela águia detentora do raio [de Júpiter]; pensam que ele
morreu...
Desde esse momento, os êxtases multiplicam-se. Se fosse na Europa, a causa já estaria julgada: a criança seria logo posta numa casa de tratamento, sob o duche quotidiano da psicoterapia, e conscientemente, dia após dia, extingui-la-iam... Acabar-se-ia a lanterna mágica... A candeia está morta... Por vezes, a própria criança morre...
Sem necessidade de comentários, possamos nós, para melhor nos aproximarmos e sermos amor e verdade, sabermos sentir e ser os que nos rodeiam ou envolvem e, nessa ampliação consciencial no campo unificado de energia-consciência-informação, caminharmos para uma maior fraternidade e universalidade, que nos prepara para, diante da Divindade, sermos iluminados ou tingidos mais profunda e plenamente por Ela.
Sem comentários:
Enviar um comentário