sábado, 23 de outubro de 2021

Bô Yin Râ. Orações para as aflições, e em cuidado por uma alma. Tradução do livro "Das Gebet", por Pedro Teixeira da Mota.

Na Necessidade e na Aflição (In Not und Bedrängnis)

«Ajudai-me!
Ajudai-me,
Se vós
Podeis ajudar!

Poderes auxiliadores! (Helfende Mächte)
Auxiliares prestáveis! (Hilfreiche Helfer)

Vós sabeis.
Que penosa provação
Me colhe, -
Como o receio
Cruel
Me pressiona!



Vós fareis
Chegar ajuda, -
Quando
Poderdes!

Mas: -
Se vos é
Negado
Retirarem de mim a carga
Que levo às costas, -
Então
Ajudai-me apenas
A carregá-la!


 Mesmo que eu vá curvado
Ainda assim não  
Tombarei!
Quererei com vontade 
Levar,
O que levar
Devo,-
E não
Murmurarei,
Não
Reclamarei!»



EM CUIDADO POR UMA ALMA ( In Sorge um eine Seele)

« Amor primordial perene!
Desprende-me
 Da necessidade,
E aprisionamento,
Da cegueira
E noite,
Do tormento
E feitiço,
Isso que o meu Amor
e a minha força
Não conseguem dissolver.


Derramai
Da vossa Força
Poder na vontade cansada,
Para o próprio sofrimento
Aquietar,
Na medida em que
Possa ser acalmado.


Enviai ajuda
Elevados auxiliares, -  
 Vigilantes guardiões!

Desapareça o mal! 
 Fuja a desgraça,
   Desvaneça-se a doença,
A adversidade
Inverta-se!


Que o mal
Finde!
O perigo
E a decepção,
Passem!

Que as trevas
Desvaneçam-se!
Que a Luz
Vença!


Para que esta Alma
Se liberte, -
E rapidamente
De todas os laços
Fique livre.»

 

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Jorge Álvares, o 1º das "Figuras de Silêncio", livro de Armando Martins Janeira. Breve resumo.


Nas Figuras de Silêncio, o último capítulo do livro com o mesmo título, lamentando que o xogunato Tokugawa (1603-1867, período denominado também Edo) tenha eliminado os frutos de quase 100 anos de interacções luso-nipónicas iniciados em 1543 e terminados em 1639, ou 1647, Armando Martins Janeira realça que depois da reabertura do Japão ao Ocidente, com a restauração do sistema imperial, em 1868, deu-se tanto uma modernização, ocidentalização e industrialização grandes. Foi a era Meiji que durou até 1912. Após as desventuras da II Grande Guerra e o recomeço do país ainda mais sob influências modernizantes ocidentais (que obrigaram mesmo o Imperador a deixar de considerar-se um descendente da Divindade Amaterasu omikami, representada na imagem ao alto) cresceu  a valorização do passado luso-nipónico, construindo-se muitos monumentos de homenagem aos intervenientes e frequentemente mártires de então, sobretudo a partir da década de 1960, nos quais Armando Martins Janeira teve uma intervenção ou presença activa. Quanto ao tipo de monumentos confessa preferir o método japonês dum penedo com uma poesia ou frase do que as tristes esculturas, pois assim «o espírito é uma presença viva que nos fala, sem se destacar, hirto sobre o pedestal altivo, uma companhia doce e amiga que nos convida à meditação e contemplação íntima». Desvendando a sua sensibilidade, Armando Martins Janeira, embora os mortos também se nos possam apresentar com as suas faces, intui que «a presença dos mortos não tem feições, é uma voz clara e límpida que nos fala, memória viva que nos acompanha depois da profunda contemplação de uma obra, inspiração que nos acalenta e exalta».

 São dedicadas as últimas cem páginas do livro às Figuras, e a 1ª é O capitão-mór Jorge Álvares, natural de Freixo de Espada à Cinta, que levou no seu barco Fernão Mendes Pinto ao Japão, e escreveu um Informação das coisas do Japão, que inspirou Francisco Xavier a lançar-se ao Oriente, vindo a ser acolhido mesmo por dois meses na ilha chinesa de Sanchoão por Jorge Álvares, que  providenciou  ainda os cuidados para o corpo de Francisco Xavier, morto de febres, poder regressar ao domínio português e estabilizar em Velha Goa.

Armando Martins Janeira refere as pequenas menções ao Japão anteriores à Informação de Álvares, tais as de Marco Polo, Tomé Pires na Suma Oriental, Escalante Alvarado, Diogo de Freitas e Pero Dias, mas reconhece o dito do historiador Minoru Izawa de que ela: «é a primeira geografia natural, social, cultural e política do Japão», embora contivesse sobretudo notícias da ilha de Kiushu, a maior e mais conhecida dos portugueses. As descrições desta pioneira Informação são bem sensíveis e argutas, com vamos observar seguindo as transcrições de Armando Martins Janeira:«Esta terra do Japão é alta e ao longo do mar, e dizem que pela terra a dentro há campina. Eu fui três léguas pela terra a dentro, não a vi, mas vi os montes aproveitados e semeados. É terra bem assombrada e graciosa.» Descreve depois as casas «sem maneira nenhuma de fechadura nem cadeados», a compleição física, os vestuários e os temperamentos: "É gente muito soberba e escandalosa, todos em geral trazem terçados [armas] grandes e pequenos, acostumam-se de idade de oito anos a trazerem-nos". "São todos em geral mui grande frecheiros". "É gente pouco cobiçosa e muito maviosa". 

Quanto à alimentação percebeu a sobriedade exemplar dos japonese: «"É gente que come três vezes ao dia, e comem pouco cada vez", e bebem vinho de arroz, e também "no Verão água de cevada, quente, e no Inverno água de umas ervas que ainda não alcancei saber que ervas eram". Eram chá, então desconhecido na Europa.»

Diz-nos Martins Janeira: «As formas de cortesia nipónica, que tantas  páginas de autores ocidentais vão encher, são aqui versadas pela primeira vez. Descreve como se saúdam e se recebem, o gosto pelas artes, pelo teatro e pela arte de bem cavalgar, os hábitos de higiene e o à vontade, e o não atribuírem sentido de pecado ou vergonha à nudez choca muito Alvares: "São muito desonestos, não lhe dá nada que lhe vejam suas vergonhas"».

  Sabemos como as mulheres, ou as musumés, as jovens, sempre impressionaram ou encantaram os portugueses e eis a descrição de Jorge Álvares: «As mulheres são muito bem proporcionadas e muito alvas e tocam do arrabique  e do alvaide [instrumento de cordas]. São muito maviosas e meigas, e as honradas são muito castas e muito amigas da honra de seus maridos. E há ali outras más mulheres e celestinas e também me parece que há ali feiticeiros e feiticeiras. São mulheres muito limpas; elas fazem em casa todo o trabalho como tecer, fiar, coser. As boas mulheres são muito veneradas de seus maridos. Os maridos são mandados por elas. São mulheres que vão onde lhes vem a vontade sem o perguntarem a seus maridos».

Anote-se a utilização da expressão "celestinas", proveniente da peça teatral com o mesmo nome do Francisco Rojo, publicada pela 1ª vez em 1499 e que teve grande sucesso peninsular, e que passou a significar bruxa, alcoviteira, sendo muito usada por Jorge Ferreira de Vasconcelos (1515-1585), nas suas peças. E os vestígios de uma certa ginocracia primordial familiar e social nipónica, em que as sacerdotizas e shamans predominavam, pela sua sensibilidade subtil, na religiosidade e magia e com as mulheres tendo uma independência forte face aos homens, algo que se foi alterando com o tempo.

                                   

Na religiosidade conseguiu discernir bem as diferenças entre os shintoísmo e o budismo, e viu que eram muito religiosos:" é gente mui devota aos seus ídolos, todos pela manhã se alevantam com as contas na mão e rezam e, acabado de rezar, tomam as contas entre os dedos e dão lhe três esfregadelas».

Armando Martins Janeira resume-o assim: «Álvares refere-se aos templos, aos sacerdotes, monges e freiras budistas, às cerimónias budistas dos mortos e às festas xintoístas em que dançam as jovens vestais do templo, as elegantes miko, ao ritmo lento da orquestra [em geral apenas uma flauta e um shamizan] do templo, marcado pelo grande bombo sagrado, acompanhado da entoação dos sacerdotes, kanushi, tal como hoje se celebra ainda. Álvares repara na diferença dos sinos dos templos budistas e xintoístas e não lhe escapou que existem duas diferentes religiões no Japão, praticadas em geral por todo o japonês».

Armando Martins Janeira conclui o capítulo com uma citação do famoso historiador  Arnold Toynbee (1889-1875), um profundo conhecedor da história das civilizações, e um pacifista e firme opositor do armamento nuclear, que teve nos últimos anos de vida valiosos diálogos com o controverso pensador e pedagogo japonês Daisaku Ikeda, dos quais resultou o livro Escolha a Vida, optimista quanto à capacidade do ser humano encontrar soluções transformadoras para os problemas que a civilização vai encontrando ou gerando.

«Estes pioneiros ibéricos da Cristandade ocidental prestaram à civilização que eles representavam um serviço imcomparável. Ampliaram o horizonte e, deste modo, potencialmente, o domínio da nossa comunidade ocidental, partindo dum canto obscuro do Velho Mundo até chegarem a abranger todas as terras habitáveis e todos os mares navegáveis à superfície do planeta. Foi devido a esta energia e a este empreendimento ibérico que a Cristandade ocidental se expandiu atés e tornar a Grande Comunidade, árvore até à qual tem vindo, e a cuja sombra se têm abrigado todas as nações do mundo. O mundo ocidentalizado dos dias de hoje é a obra peculiar dos pioneiros ibéricos da Cristandade ocidental». 

Talvez tenhamos que corrigir esta visão algo eurocêntrica e cristianocêntrica, salientando o desvio sofrido pelo mundo ocidental devido ao crescente materialismo e imperialismo violentísimo norte-americano, que podemos até originar-se no seu tétrico lançamento de duas bombas atómicas sobre o Japão, conferindo-lhe a partir disso, quem sabe, uma hybris, uma arrogância de invencibilidade e impunidade, tão daninha ao encontro pacífico dos povos e civilizações. Certamente que o mundo dos dias de hoje é tanto ocidentalizado como crescentemente orientalizado e africanizado e há realmente que ultrapassar os racismos, nacionalismos, imperialismo e oligarquias que têm desfigurado tanto a civilização mundial, opressivamente até ameaçada por uma Nova Ordem Mundial que alguns governantes e milionários grupos de pressão vão alvitrando, e para isso certamente o exemplo humanista, dialogante e universalista dos melhores da época dos Descobrimentos e navegações é ainda hoje uma fonte de impulsos valiosos...

Mussumés amigas admirando pinturas do séc. XVII na sacristia da Igreja de S. Roque com cenas da vida de S. Francisco Xavier e provavelmente com Jorge Álvares.

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

Discernir, Ser, partilhar e co-criar resistentes subcampos unificados de energia consciência informação.

 Este texto, que seria para o livro em preparação Ensaios Espirituais, é dado à luz antes no blogue, pois talvez seja mais lido nele do que na forma de livro, uma realidade que temos contudo de avaliar constantemente. De qualquer modo poderá um dia, e até aprofundado, ter lugar nele ou num outro. Imagens recentes na serra da Estrela e Castelo Branco, onde estive com a Paula, a Alice e a Sandra, almas luminosas...

Para atravessarmos a vida com qualidade, com poucos erros e sofrimentos, desenvolvendo até boas qualidades e criações, é indispensável sabermos as energias que estão em nós, do inconsciente ao supra-consciente, e os efeitos que possam ter em nós e à nossa volta, ou mesmo para os mundo subtis.
O desconhecimento de tal é geral, e perdem-se assim muitas possibilidades de realizações valiosas, havendo apenas um ou outro ser que consegue discernir tais forças ou potenciais e concretizá-los em realizações internas e externas na caminhada escarpada da vida. E como o corpo físico vai enfraquecendo com o tempo, há que ter bem treinado e controlado o corpo psíquico ou mente, se não o espiritual tem poucas possibilidades de se manifestar  e abrir até para o que do Ser Divino  não seja mera auto-sugestão, como em geral casos sucede a gente muito bem intencionada e até convencida. Esse conhecimento, treino e controle do corpo psíquico, das nossas forças anímicas é em grande parte o Caminho espiritual, que é vida e verdade.
Mesmo para quem tenha muitas limitações físicas, financeiras, psíquicas, ainda assim a vida tem em si mesma uma força de renascimento profunda que desafia todos os condicionamentos e sofrimentos e que se revela e se entrega facilmente na Natureza aos que sabem apreciá-la, procurá-la e senti-la, restabelecendo a relação criadora de efeitos benéficos para os humanos que é a da união consciente do ser humano com a natureza pura, o universo ou mesmo até os seres celestiais e a Divindade.

Infelizmente muitos seres já não conseguem ver o mundo com olhos seja de adoração e gratidão seja de receptividade e simpatia, antes se encontram em estado permanente de criticismo, conflituoso por vezes e que pode degenerar até no pseudo, ou não, cretinismo que criticam.
É preciso saber ver, ouvir, sentir o Universo e os outros com empatia, em uníssono, em compaixão antes de os podermos compreender, transformar, ou apenas criticar, e tal não é fácil, pois frequentemente superiorizamo-nos, e menosprezamos os outros, pelo que as nossas palavras e pensamentos para eles se tornam injustas ou pelo menos desapropriadas, inconvenientes, pouco benéficas...
Cada ser, momento ou situação tem a sua especificidade, harmonia e beleza únicas que devemos tentar acolher, sondar e aprofundar, em vez de estarmos sempre a querer criticar, mudar, partir, ou então a deixar-nos inundar seja por preconceitos seja por outras informações e situações que nos dispersam da relação presente e em causa, algo que a vida moderna e digital tanto intensifica, pouca gente estando plenamente no aqui e agora plenificador.

Na verdade, tal frequente atitude e estado psíquico do ser humano moderno, pouco empático e tão disperso, incapacita-o de viver com os seus níveis mais profundos pois estes são como as profundezas dum lago que só se deixam ver quando a agitação à superfície diminui o suficiente para que o fundo consiga reflectir para cima alguns raios de luz. Ora com o coração humano passa-se o mesmo....
Em geral tais aspectos e poderes interiores anímico espirituais só se manifestam quando não há conflitos constante de ritmos e vibrações entre a personalidade, o mundo exterior e o mundo interior anímico, espiritual. Ou seja, quando há coerência entre actos, sentimentos, pensamentos e ideais, e uma prática de recolhimento, oração, canto, peregrinação, meditação ou contemplação ocorre.

Consequências deste estado de coisas social é a raridade do encontro de seres que estejam bem incarnados em si mesmos, ou seja, em quem no corpo se expresse harmoniosamente a alma espiritual. Tais seres são hoje cada vez mais raros pois a maioria anda sempre a correr e preocupada dum lado para outro, e se com mais tempo, ou desempregada ou envelhecida deixa-se traumatizar ou alienar pelo que sobretudo a televisão lhe descarrega através das suas fossas orbiculares até aos abismos da sua alma e ser, desnorteando-a, desorientando-a e desligando-a do Cosmos, que significa em grego um todo belo e ordenado, e que nos é ainda acessível na natureza, na meditação, no amor...

Assim, pessoas de olhar vivo, magnético, impressivo, capazes quase de transmitirem pelo olhar as suas ideias e realizações, influenciando fortemente o seu ambiente em vez de serem abafadas ou comidas por ele, são raras.
E mais raras ainda são as que conseguem aprofundar o auto-conhecimento (já que há tanta informação que é causadora de anti-conhecimento) e fazer chegar até à sua visão interior, e até aos olhos corporais físicos, a força, o brilho, os raios do espírito.
Quanto à palavra, também é raro ouvirmos mais do que conteúdos meramente intelectuais ou repetitivos, avalanches de lugares comuns, partidarismos e asneiras em vez de palavras justas, precisas, fortes, adequadas, carregadas do que elas referem ou simbolizam, e que se tornam gérmens depositados (com mais ou menos amor e delicadeza) nas almas ouvintes e as harmonizam e as predispõem a compreender, meditar e a agir melhor. Talent de bien faire, como foi o lema do Infante Dom Henrique.

Poucos são os que conseguem gerar as imagens, ideias e realizações do que querem dizer, ou partilhar, seja forte emotivamente, seja nítidas dentro de si de modo a transmiti-las com efeitos valiosos nos outros, ao serem pronunciadas de forma clara e precisa, gerando compreensões, emoções e propósitos elevados.
Frequentemen
te, sem querer até, as pessoas preferem antes, ou são levadas tendencialmente a enveredar pela crítica, que pode ter valor esclarecedor mas que desce e pode até prender-se a quem ou ao que se critica. Outras entram e dissolvem-se na conversa superficial e repetitiva, ou mesmo na má-língua, em confidências negativas ou trocistas que fazem diminuir na alma as vibrações luminosas, em vez de se elevarem e elevarem os outros...

Sabe-se que em vários segmentos do nosso cérebro são registados os nossos pensamentos, palavras, actos e emoções, e há fortificações e trocas constantes entre essas zonas pela sinapses neuronais mas esse estado interior é pouco sentido bem como a irradiação que essas partes do cérebro tem sobre os que nos rodeiam. Em geral pensa-se que as pessoas e os seus cérebros são estanques mas não é bem assim, pois tudo está interligado subtilmente, tanto mais que a alma ou corpo psíquico existe numa forma subtil de milhões de partículas luminosas, em ondulação constante. Neste sentido há experiências laboratoriais já a comprovarem a acção a  distância remota, que antigamente se denominava telepatia, algo que Antero de Quental e Fernando Pessoa, dois elos importantes da Tradição espiritual Portuguesa, entre nós experimentaram e investigaram um pouco.

Há assim uma "interfluência", um panpsiquismo e, consequentemente, um contágio para o melhor ou o menos bom e por isso os antigos sempre tiveram os seus agrupamentos de afinidades electivas em que só alguns mais evoluídos eram convidados a participar e logo a poder comungar as vibrações de tais sodalidades ou irmandades manifestadas por seres mais realizados na sua integralidade, e em que a pureza e elevação de intenções criavam ambientes e correntes de alta tensão, ora específicas, quando em meditações ou ritos todos convergiam as  vontades para a realização de certas imagens e efeitos, ora gerais, pelo mero viver de quem tem realizações e aspirações elevadas, nobres e depois dialoga, interage, convive, inspira, ama.
Devería
mos evitar uma abertura excessiva ao exterior e à confusão e desinformação reinante, de que a oferta televisiva noticiarista é, à parte um ou outro canal, o pior paradigma alienativo, e recolher-nos mais, partilhando pessoalmente com uns poucos, em grupos ou não, a nossa experiência e vivências, esses que não a farão baixar mais sim apurar-se, intensificar-se, elevar-se em nós e eles, e no Universo e, seguindo a expressão de Antero de Quental, «alma infinita das coisas».

Saiba pois tanto libertar-se das televisões como usar sobriamente a internet e as redes sociais, leia e escreva mais, e fortifique-se nas comunhões com a natureza, nas orações e meditações, e em alguns diálogos com almas afins, de preferência pelo telefone ou ao vivo, co-criando eventualmente  pequenas redes ou subcampos unificados de energia consciência informação e saiba assim resistir às tendências e medidas de governantes  tão desrespeitadoras dos direitos e liberdade humanas, e tão ignorantes e atentórias da dignidade do ser humano e da integridade e pureza  das árvores, ambientes e Natureza.

Saibamos ser as sementes e os artesãos  de uma Humanidade mais ecológica, ética, fraterna, artística, amorosa, espiritual e universal...

domingo, 17 de outubro de 2021

Sendai, Kobe e Tokushima: '"As Cidades", do encontro luso-nipónico, no livro "Figuras de Silêncio", de Armando Martins Janeira. 4ª parte.

 Em "As Cidades", a II parte das Figuras de Silêncio,  a Tradição Cultural Portuguesa no Japão de Hoje, obra publicada em Lisboa, em 1981, Armando Martins Janeira  descreve as raízes históricas das interacções realizadas após a segunda grande Guerra em treze localidades marcadas pelo encontro luso-nipónico, narrando e ilustrando fotograficamente bem os acontecimentos e as personagens importantes do diálogo, partilhando ainda os seus sentimentos e intuições. Após os três artigos anteriores resta-nos resumir e destacar o que ele realçou,  vivenciou e escreveu em Sendai, Kobe e Tokushima.

Martírio Branco, «A cidade de Sendai fica ao norte de Honshu, a principal ilha do Japão, perto duma das mais lindas regiões do país, Matsushima (...) há quatro séculos era a sede do mais poderoso dáimio ao norte de Edo (Tokio), Date Masamune (1566-1636), senhor das terra então chamadas de Oshu, nome que ficou célebre na poesia e na lenda». Em 1613 enviou  uma embaixada à Europa, dirigida por Hasekura Rokuemon e o padre Luís Sotelo, que foi num barco japonês até ao México e depois seguiu num espanhol até Madrid, Genebra e Roma, voltando só ao Japão em 1620, quando as perseguições aos cristãos se acentuavam com o xógum Hidetada, e depois o seu filho Iemitsu. Dentro desta política de não aceitação de missionários, por ordem de Date Masamune  o P. Diogo de Carvalho, que desde 1616 evangelizava sem autorização ou clandestinamente, após um mês de prisão em que recusou apostatizar, foi submetido a três horas em água glacial em Sendai, em 22 de Fevereiro de 1624, resistindo com grande impassibilidade, e em prática de oração como a gravura da época mostra, tendo-lhe sido atribuídas como últimas palavras: Deus sit semper laus et gloria. E até mesmo o P. Luís de Soutelo, o da embaixada, seria queimado vivo em 25 de Agosto de 1624, embora já não sob a jurisdição de Date. 

 Armando Martins Janeira participou na inauguração do monumento ao jesuíta, natural de Coimbra,  Diogo de Carvalho (1578-1624) «num dia chuvoso de Setembro de 1971. O historiador padre Hubert Cieslik  traçou em japonês a biografia, e as autoridades da cidade e o Embaixador de Portugal renderam homenagem aos mártires e celebraram a amizade entre Portugal e o Japão, cimentada no ideal, no sangue e na esperança dum mundo justo e fraternal». Anote-se que Hubert Cieslik (1914-1988 e desde 1934 no Japão) foi um dos quatro jesuítas que sobreviveram à bomba atómica norte-americana lançada sobre Hiroshima e os seus martirizados milhares de habitantes! Que nunca mais um país se atreva a lançar outra, orarão eles....

                                       

No dia seguinte, já com o Sol radioso, visitará a enseada de Matsushima (matsu-pinheiro, shima-ilha) e as centenas de pequenas ilhas, num todo tão belo, considerado mesmo com Miyajima e Amanohashidate como os três mais belos locais do Japão, que o grande poeta Basho só conseguiu exprimir tal «num haikai celebérimo: Ya Matsushima/, Matsushima Ya/ Ya Matsushima» Ai Matsushima...

Kobe e o primeiro cônsul português no Japão. A este principal porto do Japão chegou em 1899 Wenceslau de Moraes.

 E aqui se apaixonou tanto pelo Japão como pela «doce O-Yone-san, a Nobre Senhora Bago de Arroz, com quem os biógrafos japoneses asseguram se casou um ano depois pelo rito xintoísta», vivendo feliz até ela morrer em 1913, e escrevendo os artigos que se tornarão os livros Cartas do Japão e Serões do Japão, além de publicar as Paisagens da China e do Japão. E,  ao estilo japonês, o seu belo livro O Culto do Chá, que tantas vezes terá recebido tão harmonizadoramente das suas duas sucessivas mulheres...

                                         

Armando peregrinará pelos locais descritos ou frequentados por Wenceslau, nomeadamente as cascatas de Nunobiki (em cima num postal igual ao que Wenceslau enviou em 1904 ao seu amigo Francisco P. Chedas), as chayas (casas de chá), e participa na inauguração de «um busto de bronze sobre um alto pedestal de granito», descrevendo bem pormenorizadamente a longa cerimónia shintoísta em sete parágrafos, dos quais transcrevemos o primeiro:«A cerimónia foi iniciada pelos sacerdotes xintoístas, todos de branco imaculado, com uma espécie de gorro de laca preta, kammuri, e enormes e finos tamancos também de laca preta, asagutsu. Havia uns sete sacerdotes, que se revezavam no canto monótono, nas reverências aos vários grupos de pessoas postadas em semi-círculo ao monumento, às quais de quando em quando benziam com um pequeno ramo de sakaki, a árvore sagrada do xintoísmo.»  

                                       

As linhas e reflexões finais, humanistas e universalistas, deste capítulo consagrado a Kobe e a Wenceslau de Moraes são de destacar, quando no decorrer da cerimónia, após Ingrid Martins Janeira ter deposto um ramo de cravos vermelhos, «o sacerdote xintoísta, repetindo os gestos rituais, fez uma vénia profunda a Moraes   e depôs sobre o altar um pequeno ramo de sakaki, adornado de papel branco recortado em quadradinhos, gohei, em conformidade com as regras da liturgia  [e esoterismo] xintoísta. O sacerdote ofereceu um ramo semelhante ao governador de Hyogo, que igualmente foi colocá-lo no altar. Depois veio a minha vez; peguei no raminho das mãos do sacerdote, com uma vénia, e fui depô-lo sobre o altar; bati duas vezes as palmas, fiz nova vénia e fitei o busto, nos olhos, concentrando-me por momentos, o pensamento em Wenceslau de Moraes e nesse estranho acto de celebrar um português, por tão estranhos modos, tão longe dos pátrios lares. A esta ideia outra se associou, a de que os Portugueses, há séculos, se espalharam por todas as terras do Oriente e aí conheceram maneiras e gentes as mais estranhas, e a elas se adaptaram e muitas vezes se entregaram, fazendo a fama e a grandeza de Portugal. E pensei que neste descobrimento, nesta expansão e alargamento da alma, está a raiz do nosso universalismo; neste poder dar-se, sem se alienar, abrir-se ao mundo sem trair as raízes, esteve a força dos marinheiros e viajantes, os mais genuínos filhos de Portugal», ou pelo menos os portugueses mais aventureiros... 

                                        

        A cidade onde alegremente se canta e dança aos mortos. Tokushima, a cidade natal de O-Yone, para onde Wenceslau de Moraes se refugiou após a sua morte, e onde encontrou uma nova companheira, Ko-Haru, sobrinha de O-Yone, ainda mais nova e que  tinha pouco das qualidades da tia, foi visitada anos a fio por Armando Martins Janeira, que pode assim conhecer as transformações de industrialização e crescimento operacional que se operavam e o que restava dos tempos de Wenceslau, que descreve com emoção: «Mas permanece ainda o passado, os templos, incluindo o pequeno templo de O-Mutsu, no centro da cidade; existe a mesma devoção a Inari, deus das colheitas, simbolizado por uma raposa, e a Jizô, deus dos viajantes e das crianças, bem como aos deuses familiares, hotoke-sama, aos quais todas as manhãs, no altar familiar, butsudan, se oferece o arroz, o saké e as flores votivas; há ainda no Verão, pelos caminhos - vi-os anos seguidos passar  todos vestidos de branco em frente da minha casita de férias numa aldeia - os peregrinos, os o-hendo-san, que vão rezar aos 88 templos da ilha de Shikoku; e fazem-se ainda, com a alegria e a algazarra de sempre, os matsuris, as festas religiosas em que a gente nova se diverte e namora, e a gente velha ri, canta e ora aos deuses. As canções das gueixas sobem ainda melancólicas das gelosias das gueishayas rimando as mesmas histórias de amor triste». 

  Descreve depois como em Junho de 1954, como secretário de Embaixada, foi à capital de Awa para assistir à inauguração do monumento a Wenceslau de Moraes,  lendo por isso toda a sua obra de tal modo que quando lá chegou  «conhecia de cor toda a cidade que com tanto carinho, Moraes descreveu  em O Bon-Odori em Tokushima, sabia o lugar dos templos que ele frequentou, dos caminhos que ele percorreu, reconheci as velhas árvores da sua rua Igacho. Quando contemplei a pequena pedra que abriga as suas cinzas, sob uma inscrição japonesa, comovi-me até às lágrimas.» 

Dez anos depois «regressava maduro, com ideias claras, planos precisos, e com mais honras, em vez de secretário da Embaixada vinha agora feito Embaixador. Nos meus planos estava arrancar Moraes ao anonimato japonês, conseguir publicar a sua obra completa, dar-lhe glória e projecção na cultura nipónica em que ele era desconhecido. Para isso tinha antes de mais de conquistar o afecto duma cidade.

Confiei sempre na bondade e na perspicácia incomparáveis dos deuses. Foram eles que me levaram a encontrar uma casa de Verão perto de Tokushima, onde passei a gozar todos os anos as férias (...) Passei em Shodoshima os dias mais felizes e pacíficos da minha existência. O mar ali é tão belo e de águas tão luminosas como mar grego de que nasceu Afrodite. Havia praias sob pinhais e palmeiras, onde eu e a minha tribo podíamos nadar e correr sós sob o sol dourado (...) Na festa das colheitas, por altura do solstício do Verão, também nós íamos associar-nos às celebrações xintoístas, levando oferendas às capelinhas rústicas no meio dos campos, onde as velhas camponesas atendiam os fiéis sob a imagem do galo sagrado, símbolo da fraternidade (...).

Desta ilha de Shodoshima, onde evangelizara em 1586 o padre Gaspar Coelho e  cristãos perseguidos se refugiaram, partia  em meados de Agosto de barco para participar nas festas do Bon-dori  em Tokushima (as duas noites em que se acredita que os espíritos dos mortos descem à terra e são festejados), e onde levava muitos escritores, diplomatas e amigos, que dançavam em kimono com a multidão e, por fim à roda do monumento a Wenceslau, algo corajosamente.  Também eu, mas já em 2011, fiz o mesmo embora junto ao túmulo de Wenceslau e O-Yone apenas orasse e meditasse.   

Como sempre, no seu estilo sentido, livre e amplo, Armando Martins Janeira terminará o capítulo com chave de ouro, ou sol universalizante nas almas: «Foi por esta alegria, pela assistência devotada de sete anos consecutivos, que consegui ganhar a amizade de Tokushima. Tenho lá amigos que estremeço, e a recordação dos seus templos, da sua gente alegre, das mais formosas raparigas do Japão, da sua dança que enlouquece, dá-me calor humano para os anos que hei-de viver. Sinto-me um pouco de Tokushima - concederam-me a honra de me fazer seu honorário cidadão -, como senti sempre que Tokushima, na sua afabilidade, no seu afecto a Moraes, no seu sol e na sua alegria, representa, lá longe, um pouco de Portugal».

sexta-feira, 15 de outubro de 2021

Nagasaki, '"As Cidades", do encontro luso-nipónico, no livro "Figuras de Silêncio", de Armando Martins Janeira. 3ªparte.

 Em "As Cidades", a II parte das Figuras de Silêncio.  A Tradição Cultural Portuguesa no Japão de Hoje, obra publicada em Lisboa, em 1981, e que já abordámos a I parte, "O Passado e o Presente",  Armando Martins Janeira  descreve as raízes históricas das interacções realizadas após a segunda grande Guerra em treze localidades marcadas pelo encontro luso-nipónico: Tanegashima, Kagoshima, Hirado, Sakai, Kyoto, Yamaguchi, Oita, Yokoseura, ilhas de Amasuka, Nagasaki, Sendai, Kobe e Tokushima, narrando e ilustrando fotograficamente bem os acontecimentos e as personagens importantes do diálogo, partilhando ainda os seus sentimentos e intuições. Após dois artigos anteriores resta-nos resumir e destacar o que ele realçou,  vivenciou e escreveu, em Nagasaki, Sendai, Kobe e Tokushima, ficando para este texto Nagasaki.

O capítulo Quando os Portugueses fundaram a cidade de Nagasaki, por volta de 1560, narra as vicissitudes desta cidade que teve a sua origem quando Dom Bartolomeu de Omura, o dáimio Omura Sumitada (1533-1587, na imagem em cima)  que se convertera, deu esse lugar inculto ao missionário jesuíta Cosme de Torres, «para sempre», procurando também alguma protecção dos portugueses contra os dáimios vizinhos. O porto, sendo excelente, permitiu um crescimento rápido populacional e comercial e em oito anos já havia quatrocentas casas. A Igreja de Todos os Santos, foi erguida em 1568 pelo P. Gaspar Vilela, e o porto tornou-se rapidamente o maior ou mais importante do Japão. Com o decorrer do tempo Nagasaki tornou-se uma enorme cidade, bem traçada e com bastantes sinais ocidentais, embora após os portugueses saírem os holandeses tivessem ficado fechados numa ilha feitoria. Já no século XX, A bomba atómica desnecessária norte-americana, em Agosto de 1945, arrasou com quase tudo, matando milhares de pessoas... Uma tragédia imensa....

Contudo o crescimento do Cristianismo, e que chegou a imprimir mais de vinte livros, alguns dos quais em Nagasaki, fez evidenciar as incompatibilidades com a ordem social, política e religiosa japonesa o que, com os conflitos com os monges budistas, foi criar as sucessivas vagas de expulsões e perseguições no Japão, algumas das quais tiveram o seu epicentro em Nagasaki, pois após a súbita decisão de Hideyoshi expulsar os missionários, e de passar a controlar o porto de Nagasaki directamente, em 1597 foram queimados vivos 26 mártires, dos quais sete ocidentais, no local onde hoje se encontra o Museu dos Mártires. 

Armando Martins Janeira assinala ainda que «em 1600 apareceu no Bungo o barco holandês Liefde. Este facto iria também influir decisivamente na sorte do Cristianismo e do comércio português no Japão. As intrigas entre jesuítas e franciscanos, chegados em 1592, vieram somar-se às intrigas e guerra surda entre católicos e protestantes, portugueses e holandeses». E seriam os holandeses a ficarem com o comércio naval, vindo mesmo a bombardear os cristãos e japoneses na insurreição de Shimabara.

À morte de Hideyohi sucedeu um regente Tokugawa Ieyasu que era mais budista e acabou por ir expulsando os missionários e destruindo as igrejas com excepção de alguns poucos lugares. Em 27 de Janeiro de 1614 dá-se o decreto de expulsão do Cristianismo. Com Hidetada  o filho de Ieyasu, morto em 1616, agravam-se as perseguições aos cristãos ocorrendo de novo uma forte em Setembro de 1622, em que 45 missionários e cristãos foram queimados vivos ou decapitados, como a gravura seguinte de um livro de 1675 reproduz.

 Quando Hidetada morre em Janeiro de 1623, o seu filho Iemitsu «mostrou-se ainda mais cruel que o seu pai. Em 4 de Dezembro desse ano Iemitsu presenciou a morte na fogueira de cinquenta cristãos. Nesse mesmo mês foram sacrificados mais vinte e quatro». Após a insurreição popular e campesina de Shimabara, iniciada em Dezembro de 1637 e terminada em Abril com o massacre de 35 mil, o cristianismo acabava no Japão. E até o comércio português finda em 1639, havendo a registar-se ainda a tragédia em 1640 do último barco  vindo de Macau, a solicitar já apenas a continuação do comércio, como antes os dáimios queriam, sofrer a morte de todos os portugueses, menos 14 moços de tripulação poupados para levarem a rejeição e o barco a Macau. 

O Museu provincial de Nagasaki é dos que mais peças Namban alberga, além das ligados ao culto cristão e à repressão dura que se lhe fez, e tem diante de si um monumento de Martins Correia de homenagem aos portugueses ilustres de então. E, participando no descerramento de uma lápide evocadora de Luís de Almeida, que teria sido o 1º português a chegar a Nagasaki, Armando Martins Janeira após a conclusão da cerimónia num templo budista com um padre Diego Pacheco a falar em bom japonês, conclui este capítulo do seu valioso livro Figuras do Silêncio, com um questionamento pioneiro, corajoso e estimulante sobre os condicionamentos limitadores do presente no passado, ou seja, visto no futuro (dada a pouca clarividência humana), e sobre as mudanças de mentalidades requeridas constantemente pela humanidade: «Ao reflectir no paradoxo de ver uma consagração a um missionário cristão num templo pagão, que fora já antiga igreja e antes desta templo pagão [budista] ainda, senti-me confundido pelos acasos [no desconhecimento natural dos subtis encadeamentos causais] que movem a História e lhe velam o sentido sob um mistério insondável. E fiquei perturbado ao pensar que o novo acto de agora - gesto de amor e harmonia entre homens de várias nações - torna gratuito [ e escreveu bem, gratuito, de graça e não inútil] o esforço e dor e sangue derramado no apostolado e martírio desses homens que há quatro séculos aqui vieram pregar uma fé nova, na crença de que salvavam almas para Deus. De que serviu o seu martírio? Tê-lo-iam aceite se soubessem que viríamos hoje a consagrá-los no próprio templo pagão que eles destruíram com ódio [talvez nem sempre...] e para glória do seu Deus? [Excelente pergunta, e provavelmente teriam compreendido e procurado outras formas de aprofundamento e transmissão da verdade] Até que ponto a Igreja, que hoje prega a harmonia universal dos homens de todas as raças e religiões, é a mesma que pregava o martírio pela defesa [do que eles pensavam ser] da verdade absoluta, em face da qual todos os outros deuses eram considerados demónios e todos os infiéis irremediavelmente proscritos e condenados? Em verdade, Deus há-de estar bem acima de todas as igrejas e de todas as religiões; se assim não fosse, os homens sentir-se iam condenados a penas bem maiores do que a fogueira e Inferno - a perder toda a esperança da própria salvação.»

Esta conclusão final, muito certa e apontando para Religião ou Filosofia Perene que está tanto acima como subjacente a todas as manifestações históricas religiosas, por vezes tão condicionadas e anacrónicas, mesmo nos nossos dias continua ainda pouco reconhecida seja pelos fiéis mais fanáticos de algumas religião, seja pela corrosão das crenças em salvações por vários factores da modernidade, nomeadamente o agnosticismo científico. Resta-nos demandar o espírito Divino íntimo, que os místicos e filósofos espirituais das várias religião tocaram, e manifestarmos a Sua presença nestes tempos, encontros e diálogos, tal como Armando Martins Janeira tanto viveu com tão pioneira e grande sensibilidade e qualidade. Luz e Amor na sua alma!

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

"As Cidades", do encontro luso-nipónico, no livro "Figuras de Silêncio, de Armando Martins Janeira. Breve resumo, 2ªparte....

Em "As Cidades", a II parte das Figuras de Silêncio.  A Tradição Cultural Portuguesa no Japão de Hoje, obra publicada em Lisboa, em 1981, e que já abordámos a I parte, "O Passado e o Presente",  Armando Martins Janeira  descreve as raízes históricas das interacções realizadas após a segunda grande Guerra em treze localidades marcadas pelo encontro luso-nipónico: Tanegashima, Kagoshima, Hirado, Sakai, Kyoto, Yamaguchi, Oita, Yokoseura, ilhas de Amasuka, Nagasaki, Sendai, Kobe e Tokushima, narrando e ilustrando fotograficamente bem os acontecimentos e as personagens importantes do diálogo, partilhando ainda os seus sentimentos e intuições. Após, no artigo anterior, um resumo das seis primeiras, seguindo os títulos e as informações de Armando Martins Janeira, passamos agora a mais três, os títulos em ítálico, com pequenos acrescentos contextualizantes: 

 Oita, a cidade onde existem mais evocações portuguesas, no sudoeste de Kiushu, era no século XVI, Funai, capital da província do Bungo, regida pelo clan Otomo, do qual Yoshishige, filho do dáimio de então protegeu os portugueses, desde  o início da chegada destes em 1546 mas exerceu tal sobretudo já como dáimio (1550),  com Francisco Xavier a permanecer entre Setembro e Novembro de 1555, seguindo-se outros missionários que receberam várias benesses de modo que se concretizaram os melhores aspectos da acção portuguesa no Japão: o 1º orfanato (sobretudo pela sensibilidade de Luís de Almeida) e o 1º hospital no Japão, ampliado em 1559,  com uma secção para leprosos e doenças contagiosas e outra para os feridos e doentes, e onde Luís de Almeida (1525-1583) brilhou (teria "o dom da cura", no dizer do P. Cosme de Torres),  formando mesmo médicos japoneses. E funda-se um colégio, no «qual se liam duas lições, uma de humanidade e  outra de língua do Japão», que vieram frutificar num vocabulário e dicionário e na gramática de João Rodrigues. Em 1578, Otomo Yoshishige (1530-1587, na imagem em baixo) divorciou-se da mulher que se opunha e fez-se baptizar, passando a ser D. Francisco de Bungo, e pensou mesmo em fundar uma cidade só de cristãos, com a sua 2ª mulher, já convertida, e foi um dos apoiantes da 1ª embaixada do Japão ao Ocidente, em 1582, através do seu sobrinho Mancio Ito. Hoje a cidade está geminada com Aveiro e o hospital chama-se Luís de Almeida, mas este exerceu os seus dons de cura, de evangelização, de mestre de obras e arquitecto e de diálogo por muitas partes do Japão...

8 - Uma cidade assassinada, Yokoseura, já que hoje é apenas uma «aldeia de duas dúzias de casas» e na altura, tendo uma boa baía,  os missionários, em acordo com o dáimio Sumitada e assinando o padre Luís de Almeida, fundaram o porto de Nossa Senhora da Ajuda  e uma cidade, com residências religiosas e igrejas, intensificando-se as chegadas das naus portugueses e o comércio. Em 1563 o dáimio Omura Sumitada (1533-1587) fez-se baptizar e recebeu o nome de Bartolomeu, conforme a imagem em baixo. Todavia, a fatalidade do fanatismo exclusivista aliciou o dáimio ou Dom Bartolomeu e «começou imprudentemente a destruir os templos budistas e  a perseguir os seus fiéis». Tal causou a revolta de um filho e a destruição total da cidade e do porto, fugindo os missionários e nunca mais aportando os barcos comerciantes e evangelizantes. 

Em 1962 foi erguido um monumento, um cruz de oito metros de altura,  sem cerimónias oficiais, mas  Armando Martins Janeira estando presente e sendo olhado com curiosidade e espanto por uns poucos de habitantes não resistiu ao impulso de comunicação da palavra ou verbo, e que tão bem narra: «Pareceu-me descortinar no olhar daquela gente um fundo de simpatia, de afinidades invisíveis, que quatro séculos de ausência não haviam conseguido apagar.  Um impulso irresistível, que me vinha do fundo da alma, levou-me a aproximar-me. Dei uns passos para o grupo. E falei-lhes. Recordei-lhes como há quatro séculos homens do meu longe país ali tinham vindo visitar os seus maiores para lhes trazer a palavra e o amor do Ocidente. E que eu agora ali voltava para lhe reafirmar a mesma amizade. Em Cristo e em Buda, todos somos irmãos, e o mesmo Sol ilumina todos os homens e fecunda a terra inteira. Em nome de Portugal vinha saudá-los e exortá-los a que nos guardassem a antiga amizade. E jurei-lhes a nossa amizade, em nome deste mar sagrado que nos aproximou.» E vieram um a um sorridentes apertar-lhe as mãos...

Depois tem uma nova surpresa comovente, crianças e adultos de casas espalhadas pela estrada emergiam gritando e sorrindo "Yokoso (bem vindo), Yokoso! Porutogaru san (senhor Portugal)", quando se encaminhava para a pequena aldeia no alto da montanha onde se plantou a «típica cerejeira japonesa, que não dá fruto, e cujas folhas de pétalas duplas, zazakura, são duma alvura leve e luminosa.    

E recolhe-se  pensando o futuro em que, tal como a sakura crescerá, também o mesmo aconteceria à liberdade em Portugal. E em seguida, à chegada de barco a Hirado, ao pôr do sol, tem uma elevada experiência interior:«senti um estranho alvoroço. Não era a gente que eu ia lá ver, nem era a novidade de uma pequena cidade moderna que me alvoraçava - era uma voz clara e imensa, feita das vozes de todos os homens que em barcos lavraram o oceano e que, como eu, foram demandar ao desconhecido, na terra e no mar, o mistério que as vidas passadas dos homens, com todas as suas glórias e sofrimentos, não revela; que está algures em nós, e que urge descobrir antes que a morte nos visite....». Muito valioso este apelo de auto-consciencialização espiritual, salvífica, ou seja, iluminadora para agora e para a vida depois da morte... 

9 - Pérolas verdes do mar Japonês, as ilhas de Amasuka, a sul da península de Shimabara, tiveram em vários locais interacções com os missionários portugueses, destacando-se  o P. Luís de Almeida , em Kawachinoura,em 1569 baptizando o senhor feudal de Amasuka; o P. Francisco Cabral em Hondo, em 1571;  e o P. Luís Fróis assinalando «a piedade e devoção dos senhores de Amakusa, D. Miguel (Amakusa Hisatane) e seu filho e herdeiro D. João (Akusa Tanemoto) na sua História do Japão, onde menciona terem havido 30 igrejas, em 1582.

Todavia o mais valioso do encontro foi a introdução da tipografia através de caracteres móveis, saindo dos prelos em Kazusa, em 1591 Sanctos no Gosayu, uma vida de santos, baseada no Flos Sanctorum. Com a perseguição de Hideyoshi a imprensa foi levada em 1592 para Amakusa onde um resumo da obra de Frei Luís da Granada foi impresso em 1592, Fides no Doxi (em cima), o Dictionarium Latino Lusitanium ac Japonicum, em 1595, e uma versão da Imitação de Cristo, em 1596. Em 1597 foi levada para Nagasaki onde laborou até 1611. No total sobreviveram até aos nossos dias vinte nove livros, entre eles destacaremos ainda as Fábulas, de Esopo, Esopu no Fabulas, da qual vemos o frontispício: 

Armando Martins Janeira afirmará reconhecido o trabalho linguístico:  «o trabalho realizado foi notável. Pela primeira vez a língua japonesa foi transvertida em caracteres latinos, com uma perícia que ainda hoje é louvada», mas será em Hondo, numa colina que se erguerá um museu com objectos da época, e se ajuntarão algumas pedras tumulares num cemitério, onde pontifica uma imagem branca de Maria e um baixo relevo em bronze de Luís de Almeida. E conclui com bela  sensibilidade reminiscente:«cada porto evoca perfis de caravelas balouçando na brisa; cada enseada ecoa ainda de vozes lusitanas alvoraçadas pela vista da terra, em busca de um gesto amigo.»