Nas Figuras de Silêncio, o último capítulo do livro com o mesmo título, lamentando que o xogunato Tokugawa (1603-1867, período denominado também Edo) tenha eliminado os frutos de quase 100 anos de interacções luso-nipónicas iniciados em 1543 e terminados em 1639, ou 1647, Armando Martins Janeira realça que depois da reabertura do Japão ao Ocidente, com a restauração do sistema imperial, em 1868, deu-se tanto uma modernização, ocidentalização e industrialização grandes. Foi a era Meiji que durou até 1912. Após as desventuras da II Grande Guerra e o recomeço do país ainda mais sob influências modernizantes ocidentais (que obrigaram mesmo o Imperador a deixar de considerar-se um descendente da Divindade Amaterasu omikami, representada na imagem ao alto) cresceu a valorização do passado luso-nipónico, construindo-se muitos monumentos de homenagem aos intervenientes e frequentemente mártires de então, sobretudo a partir da década de 1960, nos quais Armando Martins Janeira teve uma intervenção ou presença activa. Quanto ao tipo de monumentos confessa preferir o método japonês dum penedo com uma poesia ou frase do que as tristes esculturas, pois assim «o espírito é uma presença viva que nos fala, sem se destacar, hirto sobre o pedestal altivo, uma companhia doce e amiga que nos convida à meditação e contemplação íntima». Desvendando a sua sensibilidade, Armando Martins Janeira, embora os mortos também se nos possam apresentar com as suas faces, intui que «a presença dos mortos não tem feições, é uma voz clara e límpida que nos fala, memória viva que nos acompanha depois da profunda contemplação de uma obra, inspiração que nos acalenta e exalta».
Armando Martins Janeira refere as pequenas menções ao Japão anteriores à Informação de Álvares, tais as de Marco Polo, Tomé Pires na Suma Oriental, Escalante Alvarado, Diogo de Freitas e Pero Dias, mas reconhece o dito do historiador Minoru Izawa de que ela: «é a primeira geografia natural, social, cultural e política do Japão», embora contivesse sobretudo notícias da ilha de Kiushu, a maior e mais conhecida dos portugueses. As descrições desta pioneira Informação são bem sensíveis e argutas, com vamos observar seguindo as transcrições de Armando Martins Janeira:«Esta terra do Japão é alta e ao longo do mar, e dizem que pela terra a dentro há campina. Eu fui três léguas pela terra a dentro, não a vi, mas vi os montes aproveitados e semeados. É terra bem assombrada e graciosa.» Descreve depois as casas «sem maneira nenhuma de fechadura nem cadeados», a compleição física, os vestuários e os temperamentos: "É gente muito soberba e escandalosa, todos em geral trazem terçados [armas] grandes e pequenos, acostumam-se de idade de oito anos a trazerem-nos". "São todos em geral mui grande frecheiros". "É gente pouco cobiçosa e muito maviosa".
Quanto à alimentação percebeu a sobriedade exemplar dos japonese: «"É gente que come três vezes ao dia, e comem pouco cada vez", e bebem vinho de arroz, e também "no Verão água de cevada, quente, e no Inverno água de umas ervas que ainda não alcancei saber que ervas eram". Eram chá, então desconhecido na Europa.»
Diz-nos Martins Janeira: «As formas de cortesia nipónica, que tantas páginas de autores ocidentais vão encher, são aqui versadas pela primeira vez. Descreve como se saúdam e se recebem, o gosto pelas artes, pelo teatro e pela arte de bem cavalgar, os hábitos de higiene e o à vontade, e o não atribuírem sentido de pecado ou vergonha à nudez choca muito Alvares: "São muito desonestos, não lhe dá nada que lhe vejam suas vergonhas"».
Sabemos como as mulheres, ou as musumés, as jovens, sempre impressionaram ou encantaram os portugueses e eis a descrição de Jorge Álvares: «As mulheres são muito bem proporcionadas e muito alvas e tocam do arrabique e do alvaide [instrumento de cordas]. São muito maviosas e meigas, e as honradas são muito castas e muito amigas da honra de seus maridos. E há ali outras más mulheres e celestinas e também me parece que há ali feiticeiros e feiticeiras. São mulheres muito limpas; elas fazem em casa todo o trabalho como tecer, fiar, coser. As boas mulheres são muito veneradas de seus maridos. Os maridos são mandados por elas. São mulheres que vão onde lhes vem a vontade sem o perguntarem a seus maridos».
Anote-se a utilização da expressão "celestinas", proveniente da peça teatral com o mesmo nome do Francisco Rojo, publicada pela 1ª vez em 1499 e que teve grande sucesso peninsular, e que passou a significar bruxa, alcoviteira, sendo muito usada por Jorge Ferreira de Vasconcelos (1515-1585), nas suas peças. E os vestígios de uma certa ginocracia primordial familiar e social nipónica, em que as sacerdotizas e shamans predominavam, pela sua sensibilidade subtil, na religiosidade e magia e com as mulheres tendo uma independência forte face aos homens, algo que se foi alterando com o tempo.
Na religiosidade conseguiu discernir bem as diferenças entre os shintoísmo e o budismo, e viu que eram muito religiosos:" é gente mui devota aos seus ídolos, todos pela manhã se alevantam com as contas na mão e rezam e, acabado de rezar, tomam as contas entre os dedos e dão lhe três esfregadelas».
Armando Martins Janeira resume-o assim: «Álvares refere-se aos templos, aos sacerdotes, monges e freiras budistas, às cerimónias budistas dos mortos e às festas xintoístas em que dançam as jovens vestais do templo, as elegantes miko, ao ritmo lento da orquestra [em geral apenas uma flauta e um shamizan] do templo, marcado pelo grande bombo sagrado, acompanhado da entoação dos sacerdotes, kanushi, tal como hoje se celebra ainda. Álvares repara na diferença dos sinos dos templos budistas e xintoístas e não lhe escapou que existem duas diferentes religiões no Japão, praticadas em geral por todo o japonês».
Armando Martins Janeira conclui o capítulo com uma citação do famoso historiador Arnold Toynbee (1889-1875), um profundo conhecedor da história das civilizações, e um pacifista e firme opositor do armamento nuclear, que teve nos últimos anos de vida valiosos diálogos com o controverso pensador e pedagogo japonês Daisaku Ikeda, dos quais resultou o livro Escolha a Vida, optimista quanto à capacidade do ser humano encontrar soluções transformadoras para os problemas que a civilização vai encontrando ou gerando.
«Estes pioneiros ibéricos da Cristandade ocidental prestaram à civilização que eles representavam um serviço imcomparável. Ampliaram o horizonte e, deste modo, potencialmente, o domínio da nossa comunidade ocidental, partindo dum canto obscuro do Velho Mundo até chegarem a abranger todas as terras habitáveis e todos os mares navegáveis à superfície do planeta. Foi devido a esta energia e a este empreendimento ibérico que a Cristandade ocidental se expandiu atés e tornar a Grande Comunidade, árvore até à qual tem vindo, e a cuja sombra se têm abrigado todas as nações do mundo. O mundo ocidentalizado dos dias de hoje é a obra peculiar dos pioneiros ibéricos da Cristandade ocidental».
Talvez tenhamos que corrigir esta visão algo eurocêntrica e cristianocêntrica, salientando o desvio sofrido pelo mundo ocidental devido ao crescente materialismo e imperialismo violentísimo norte-americano, que podemos até originar-se no seu tétrico lançamento de duas bombas atómicas sobre o Japão, conferindo-lhe a partir disso, quem sabe, uma hybris, uma arrogância de invencibilidade e impunidade, tão daninha ao encontro pacífico dos povos e civilizações. Certamente que o mundo dos dias de hoje é tanto ocidentalizado como crescentemente orientalizado e africanizado e há realmente que ultrapassar os racismos, nacionalismos, imperialismo e oligarquias que têm desfigurado tanto a civilização mundial, opressivamente até ameaçada por uma Nova Ordem Mundial que alguns governantes e milionários grupos de pressão vão alvitrando, e para isso certamente o exemplo humanista, dialogante e universalista dos melhores da época dos Descobrimentos e navegações é ainda hoje uma fonte de impulsos valiosos...
Mussumés amigas admirando pinturas do séc. XVII na sacristia da Igreja de S. Roque com cenas da vida de S. Francisco Xavier e provavelmente com Jorge Álvares.
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