Em "As Cidades", a II parte das Figuras de Silêncio. A Tradição Cultural Portuguesa no Japão de Hoje, obra publicada em Lisboa, em 1981, e que já abordámos a I parte, "O Passado e o Presente", Armando Martins Janeira descreve as raízes históricas das interacções realizadas após a segunda grande Guerra em treze localidades marcadas pelo encontro luso-nipónico: Tanegashima, Kagoshima, Hirado, Sakai, Kyoto, Yamaguchi, Oita, Yokoseura, ilhas de Amasuka, Nagasaki, Sendai, Kobe e Tokushima, narrando e ilustrando fotograficamente bem os acontecimentos e as personagens importantes do diálogo, partilhando ainda os seus sentimentos e intuições. Após dois artigos anteriores resta-nos resumir e destacar o que ele realçou, vivenciou e escreveu, em Nagasaki, Sendai, Kobe e Tokushima, ficando para este texto Nagasaki.
Contudo o crescimento do Cristianismo, e que chegou a imprimir mais de vinte livros, alguns dos quais em Nagasaki, fez evidenciar as incompatibilidades com a ordem social, política e religiosa japonesa o que, com os conflitos com os monges budistas, foi criar as sucessivas vagas de expulsões e perseguições no Japão, algumas das quais tiveram o seu epicentro em Nagasaki, pois após a súbita decisão de Hideyoshi expulsar os missionários, e de passar a controlar o porto de Nagasaki directamente, em 1597 foram queimados vivos 26 mártires, dos quais sete ocidentais, no local onde hoje se encontra o Museu dos Mártires.
Armando Martins Janeira assinala ainda que «em 1600 apareceu no Bungo o barco holandês Liefde. Este facto iria também influir decisivamente na sorte do Cristianismo e do comércio português no Japão. As intrigas entre jesuítas e franciscanos, chegados em 1592, vieram somar-se às intrigas e guerra surda entre católicos e protestantes, portugueses e holandeses». E seriam os holandeses a ficarem com o comércio naval, vindo mesmo a bombardear os cristãos e japoneses na insurreição de Shimabara.
À morte de Hideyohi sucedeu um regente Tokugawa Ieyasu que era mais budista e acabou por ir expulsando os missionários e destruindo as igrejas com excepção de alguns poucos lugares. Em 27 de Janeiro de 1614 dá-se o decreto de expulsão do Cristianismo. Com Hidetada o filho de Ieyasu, morto em 1616, agravam-se as perseguições aos cristãos ocorrendo de novo uma forte em Setembro de 1622, em que 45 missionários e cristãos foram queimados vivos ou decapitados, como a gravura seguinte de um livro de 1675 reproduz.
Quando Hidetada morre em Janeiro de 1623, o seu filho Iemitsu «mostrou-se ainda mais cruel que o seu pai. Em 4 de Dezembro desse ano Iemitsu presenciou a morte na fogueira de cinquenta cristãos. Nesse mesmo mês foram sacrificados mais vinte e quatro». Após a insurreição popular e campesina de Shimabara, iniciada em Dezembro de 1637 e terminada em Abril com o massacre de 35 mil, o cristianismo acabava no Japão. E até o comércio português finda em 1639, havendo a registar-se ainda a tragédia em 1640 do último barco vindo de Macau, a solicitar já apenas a continuação do comércio, como antes os dáimios queriam, sofrer a morte de todos os portugueses, menos 14 moços de tripulação poupados para levarem a rejeição e o barco a Macau.
O Museu provincial de Nagasaki é dos que mais peças Namban alberga, além das ligados ao culto cristão e à repressão dura que se lhe fez, e tem diante de si um monumento de Martins Correia de homenagem aos portugueses ilustres de então. E, participando no descerramento de uma lápide evocadora de Luís de Almeida, que teria sido o 1º português a chegar a Nagasaki, Armando Martins Janeira após a conclusão da cerimónia num templo budista com um padre Diego Pacheco a falar em bom japonês, conclui este capítulo do seu valioso livro Figuras do Silêncio, com um questionamento pioneiro, corajoso e estimulante sobre os condicionamentos limitadores do presente no passado, ou seja, visto no futuro (dada a pouca clarividência humana), e sobre as mudanças de mentalidades requeridas constantemente pela humanidade: «Ao reflectir no paradoxo de ver uma consagração a um missionário cristão num templo pagão, que fora já antiga igreja e antes desta templo pagão [budista] ainda, senti-me confundido pelos acasos [no desconhecimento natural dos subtis encadeamentos causais] que movem a História e lhe velam o sentido sob um mistério insondável. E fiquei perturbado ao pensar que o novo acto de agora - gesto de amor e harmonia entre homens de várias nações - torna gratuito [ e escreveu bem, gratuito, de graça e não inútil] o esforço e dor e sangue derramado no apostolado e martírio desses homens que há quatro séculos aqui vieram pregar uma fé nova, na crença de que salvavam almas para Deus. De que serviu o seu martírio? Tê-lo-iam aceite se soubessem que viríamos hoje a consagrá-los no próprio templo pagão que eles destruíram com ódio [talvez nem sempre...] e para glória do seu Deus? [Excelente pergunta, e provavelmente teriam compreendido e procurado outras formas de aprofundamento e transmissão da verdade] Até que ponto a Igreja, que hoje prega a harmonia universal dos homens de todas as raças e religiões, é a mesma que pregava o martírio pela defesa [do que eles pensavam ser] da verdade absoluta, em face da qual todos os outros deuses eram considerados demónios e todos os infiéis irremediavelmente proscritos e condenados? Em verdade, Deus há-de estar bem acima de todas as igrejas e de todas as religiões; se assim não fosse, os homens sentir-se iam condenados a penas bem maiores do que a fogueira e Inferno - a perder toda a esperança da própria salvação.»
Esta conclusão final, muito certa e apontando para Religião ou Filosofia Perene que está tanto acima como subjacente a todas as manifestações históricas religiosas, por vezes tão condicionadas e anacrónicas, mesmo nos nossos dias continua ainda pouco reconhecida seja pelos fiéis mais fanáticos de algumas religião, seja pela corrosão das crenças em salvações por vários factores da modernidade, nomeadamente o agnosticismo científico. Resta-nos demandar o espírito Divino íntimo, que os místicos e filósofos espirituais das várias religião tocaram, e manifestarmos a Sua presença nestes tempos, encontros e diálogos, tal como Armando Martins Janeira tanto viveu com tão pioneira e grande sensibilidade e qualidade. Luz e Amor na sua alma!
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