Em "As Cidades", a II parte das Figuras de Silêncio, a Tradição Cultural Portuguesa no Japão de Hoje, obra publicada em Lisboa, em 1981, Armando Martins Janeira descreve as raízes históricas das interacções realizadas após a segunda grande Guerra em treze localidades marcadas pelo encontro luso-nipónico, narrando e ilustrando fotograficamente bem os acontecimentos e as personagens importantes do diálogo, partilhando ainda os seus sentimentos e intuições. Após os três artigos anteriores resta-nos resumir e destacar o que ele realçou, vivenciou e escreveu em Sendai, Kobe e Tokushima.
Armando Martins Janeira participou na inauguração do monumento ao jesuíta, natural de Coimbra, Diogo de Carvalho (1578-1624) «num dia chuvoso de Setembro de 1971. O historiador padre Hubert Cieslik traçou em japonês a biografia, e as autoridades da cidade e o Embaixador de Portugal renderam homenagem aos mártires e celebraram a amizade entre Portugal e o Japão, cimentada no ideal, no sangue e na esperança dum mundo justo e fraternal». Anote-se que Hubert Cieslik (1914-1988 e desde 1934 no Japão) foi um dos quatro jesuítas que sobreviveram à bomba atómica norte-americana lançada sobre Hiroshima e os seus martirizados milhares de habitantes! Que nunca mais um país se atreva a lançar outra, orarão eles....
No dia seguinte, já com o Sol radioso, visitará a enseada de Matsushima (matsu-pinheiro, shima-ilha) e as centenas de pequenas ilhas, num todo tão belo, considerado mesmo com Miyajima e Amanohashidate como os três mais belos locais do Japão, que o grande poeta Basho só conseguiu exprimir tal «num haikai celebérimo: Ya Matsushima/, Matsushima Ya/ Ya Matsushima» Ai Matsushima...
Kobe e o primeiro cônsul português no Japão. A este principal porto do Japão chegou em 1899 Wenceslau de Moraes.
E aqui se apaixonou tanto pelo Japão como pela «doce O-Yone-san, a Nobre Senhora Bago de Arroz, com quem os biógrafos japoneses asseguram se casou um ano depois pelo rito xintoísta», vivendo feliz até ela morrer em 1913, e escrevendo os artigos que se tornarão os livros Cartas do Japão e Serões do Japão, além de publicar as Paisagens da China e do Japão. E, ao estilo japonês, o seu belo livro O Culto do Chá, que tantas vezes terá recebido tão harmonizadoramente das suas duas sucessivas mulheres...
Armando peregrinará pelos locais descritos ou frequentados por Wenceslau, nomeadamente as cascatas de Nunobiki (em cima num postal igual ao que Wenceslau enviou em 1904 ao seu amigo Francisco P. Chedas), as chayas (casas de chá), e participa na inauguração de «um busto de bronze sobre um alto pedestal de granito», descrevendo bem pormenorizadamente a longa cerimónia shintoísta em sete parágrafos, dos quais transcrevemos o primeiro:«A cerimónia foi iniciada pelos sacerdotes xintoístas, todos de branco imaculado, com uma espécie de gorro de laca preta, kammuri, e enormes e finos tamancos também de laca preta, asagutsu. Havia uns sete sacerdotes, que se revezavam no canto monótono, nas reverências aos vários grupos de pessoas postadas em semi-círculo ao monumento, às quais de quando em quando benziam com um pequeno ramo de sakaki, a árvore sagrada do xintoísmo.»
As linhas e reflexões finais, humanistas e universalistas, deste capítulo consagrado a Kobe e a Wenceslau de Moraes são de destacar, quando no decorrer da cerimónia, após Ingrid Martins Janeira ter deposto um ramo de cravos vermelhos, «o sacerdote xintoísta, repetindo os gestos rituais, fez uma vénia profunda a Moraes e depôs sobre o altar um pequeno ramo de sakaki, adornado de papel branco recortado em quadradinhos, gohei, em conformidade com as regras da liturgia [e esoterismo] xintoísta. O sacerdote ofereceu um ramo semelhante ao governador de Hyogo, que igualmente foi colocá-lo no altar. Depois veio a minha vez; peguei no raminho das mãos do sacerdote, com uma vénia, e fui depô-lo sobre o altar; bati duas vezes as palmas, fiz nova vénia e fitei o busto, nos olhos, concentrando-me por momentos, o pensamento em Wenceslau de Moraes e nesse estranho acto de celebrar um português, por tão estranhos modos, tão longe dos pátrios lares. A esta ideia outra se associou, a de que os Portugueses, há séculos, se espalharam por todas as terras do Oriente e aí conheceram maneiras e gentes as mais estranhas, e a elas se adaptaram e muitas vezes se entregaram, fazendo a fama e a grandeza de Portugal. E pensei que neste descobrimento, nesta expansão e alargamento da alma, está a raiz do nosso universalismo; neste poder dar-se, sem se alienar, abrir-se ao mundo sem trair as raízes, esteve a força dos marinheiros e viajantes, os mais genuínos filhos de Portugal», ou pelo menos os portugueses mais aventureiros...
A cidade onde alegremente se canta e dança aos mortos. Tokushima, a cidade natal de O-Yone, para onde Wenceslau de Moraes se refugiou após a sua morte, e onde encontrou uma nova companheira, Ko-Haru, sobrinha de O-Yone, ainda mais nova e que tinha pouco das qualidades da tia, foi visitada anos a fio por Armando Martins Janeira, que pode assim conhecer as transformações de industrialização e crescimento operacional que se operavam e o que restava dos tempos de Wenceslau, que descreve com emoção: «Mas permanece ainda o passado, os templos, incluindo o pequeno templo de O-Mutsu, no centro da cidade; existe a mesma devoção a Inari, deus das colheitas, simbolizado por uma raposa, e a Jizô, deus dos viajantes e das crianças, bem como aos deuses familiares, hotoke-sama, aos quais todas as manhãs, no altar familiar, butsudan, se oferece o arroz, o saké e as flores votivas; há ainda no Verão, pelos caminhos - vi-os anos seguidos passar todos vestidos de branco em frente da minha casita de férias numa aldeia - os peregrinos, os o-hendo-san, que vão rezar aos 88 templos da ilha de Shikoku; e fazem-se ainda, com a alegria e a algazarra de sempre, os matsuris, as festas religiosas em que a gente nova se diverte e namora, e a gente velha ri, canta e ora aos deuses. As canções das gueixas sobem ainda melancólicas das gelosias das gueishayas rimando as mesmas histórias de amor triste».
Dez anos depois «regressava maduro, com ideias claras, planos precisos, e com mais honras, em vez de secretário da Embaixada vinha agora feito Embaixador. Nos meus planos estava arrancar Moraes ao anonimato japonês, conseguir publicar a sua obra completa, dar-lhe glória e projecção na cultura nipónica em que ele era desconhecido. Para isso tinha antes de mais de conquistar o afecto duma cidade.
Confiei sempre na bondade e na perspicácia incomparáveis dos deuses. Foram eles que me levaram a encontrar uma casa de Verão perto de Tokushima, onde passei a gozar todos os anos as férias (...) Passei em Shodoshima os dias mais felizes e pacíficos da minha existência. O mar ali é tão belo e de águas tão luminosas como mar grego de que nasceu Afrodite. Havia praias sob pinhais e palmeiras, onde eu e a minha tribo podíamos nadar e correr sós sob o sol dourado (...) Na festa das colheitas, por altura do solstício do Verão, também nós íamos associar-nos às celebrações xintoístas, levando oferendas às capelinhas rústicas no meio dos campos, onde as velhas camponesas atendiam os fiéis sob a imagem do galo sagrado, símbolo da fraternidade (...).
Desta ilha de Shodoshima, onde evangelizara em 1586 o padre Gaspar Coelho e cristãos perseguidos se refugiaram, partia em meados de Agosto de barco para participar nas festas do Bon-dori em Tokushima (as duas noites em que se acredita que os espíritos dos mortos descem à terra e são festejados), e onde levava muitos escritores, diplomatas e amigos, que dançavam em kimono com a multidão e, por fim à roda do monumento a Wenceslau, algo corajosamente. Também eu, mas já em 2011, fiz o mesmo embora junto ao túmulo de Wenceslau e O-Yone apenas orasse e meditasse.
Como sempre, no seu estilo sentido, livre e amplo, Armando Martins Janeira terminará o capítulo com chave de ouro, ou sol universalizante nas almas: «Foi por esta alegria, pela assistência devotada de sete anos consecutivos, que consegui ganhar a amizade de Tokushima. Tenho lá amigos que estremeço, e a recordação dos seus templos, da sua gente alegre, das mais formosas raparigas do Japão, da sua dança que enlouquece, dá-me calor humano para os anos que hei-de viver. Sinto-me um pouco de Tokushima - concederam-me a honra de me fazer seu honorário cidadão -, como senti sempre que Tokushima, na sua afabilidade, no seu afecto a Moraes, no seu sol e na sua alegria, representa, lá longe, um pouco de Portugal».
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