sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Armando Martins Janeira e Luís de Camões: o universalismo ecuménico e místico, nos "Lusíadas" e nos Descobrimentos, de outrora e de hoje.

                                          

Armando Martins Janeira, assim nomeado a partir da sua vivência nipónica, mas do seu natural transmontano Virgílio Armando Martins (Felgueiras,1914-1988), cedo se deliciou com a poesia, pois a sua mãe e avó foram professoras, da qual se veio a tornar um bom conhecedor não só da portuguesa como da universal, desenvolvendo ou escrevendo porém antes, a par do notável desempenho das suas importantes funções consulares e diplomáticas, peças de teatro e livros de ensaísmo e comparativismo, vindo a tornar-se depois um dos nossos melhores estudiosos e autores acerca do Japão e das relações históricas, culturais e religiosas luso-nipónicas.

                                        

Ora um dos seus primeiros mestres foi Luís de Camões, um ser orientalista e universalista, tal como ele próprio veio a ser, e se dezassete anos passou Camões na Índia e no Extremo Oriente, Armando Martins Janeira não ficou distante pois os onze anos passados em duas missões diplomáticas no Japão foram bastante intensos cultural e socialmente, como o próprio grande escritor Shusaku Endo reconheceu, ao referir-se à sua hospitalidade dialogante e ecuménica, no prefácio a uma das obras de Armando Martins Janeira.
O tributo ao pioneiro Luís Camões foi prestado cedo, pois em 1947, na sua primeira obra, sob o pseudónimo Mar Talegre, intitulada Camões, Bocage e Fernando Pessoa, mostra a sua estreita convivência com estes poetas, além de Antero de Quental por vezes referido.

Em 1971, voltará a Camões na Literatura Mundial, numa conferencia realizada em Tóquio, e trinta e dois anos depois, Camões foi de novo tema de uma conferência realizada em Londres, em 1979, e que se encontra online, - Meu Camões - Armando Martins Janeira, http://armandomartinsjaneira.net - onde confessa o seu amor e amizade: “Desde os meus tenros anos que Luís de Camões é meu camarada, meu mestre e meu amigo. Um Camões galante e indómito que me deslumbrou em rapaz; um Camões sereno e amargurado, cuja companhia na maturidade me conforta e ensina.”, e manifesta o seu conhecimento dos estudos biográficos camonianos e da sua multifacetada obra, destacando nela o Humanismo universalista, o equilíbrio entre o sentimento e a razão, a sua poderosa imaginação e força amorosa e mesmo erótica que perpassam nas Rimas, nos Lusíadas e na sua vida, destacando com pioneirismo, e em contraste com a maioria dos interpretes camonianos, este realçar do Eros carnal como fonte de exaltação heróica e de comunhão com o Cosmos Divino...

Este conhecimento é íntimo e foi adquirido prolongadamente, confessa: «Tive a sorte rara de ler Camões em vários países da Ásia. Li-o na gruta de Macau. Li-o no Japão de Mendes Pinto; recitei-mo baixinho perto do Eufrates e do Mecong; li-o na ilha de Moçambique, bela e serena, que para ele foi dura e falsa; li-o em vários lugares do mundo por onde ele deixou em pedaços a vida repartida. E li-o no mar, levantando de quando em vez os olhos pensativos sobre o mistério imenso das águas. E também o li no alto do Talegre transmontano, contemplando serranias de onde os maiores navegadores partiram, não podendo resistir ao apelo do mar, o que é mistério ainda maior.»
Ora no livro Camões, Bocage e Fernando Pessoa, um in-8º de
99 págs, impresso como dissemos em 1947,  na saudosa tipografia do Conde Barão, em Lisboa, Armando Martins Janeira tece considerações e apreciações bastante valiosas, por vezes bem originais, embora uma, mais  polémica, estimulou-me a questioná-la...

Nas vinte e oito páginas da Introdução, escritas com bastante originalidade e elevação, divididas em quatro sub-capítulos: Poesia que “é a revelação do Desconhecido, do mundo nebuloso e mágico, oculto sob a superfície da realidade certa”, “a mais rica e mais completa expressão do Homem e do Mundo”; Essência da Poesia, onde valoriza a busca do Mistério por todas as forças racionais e irracionais, e considera linguagem poética a primeira em que se “procurou exprimir a beleza”, sendo “a verdadeira poesia a que apreende a essência das coisas e dos seres e a vibração da sua eternidade”, talvez aqui revelando algo de Teixeira de Pascoaes; Espírito da poesia portuguesa, onde valoriza bastante Antero de Quental e a sua profundidade de pensamento e visão, criticando o conde Keyserling que na Analyse Spectrale de l'Europe (também criticada por Fernando Pessoa que anonimamente o ouviu mesmo em alguma das suas duas conferências lisboetas) vira na nossa poesia apenas lirismo, herdado dos provençais; e Europeidade, onde investiga com originalidade os "princípios essenciais" ou as "linhas mestras" que lhe são fundamentais: «a sua natureza e validade ecuménica, que contém uma força insita para expandir-se universalmente; o predomínio do conhecimento e da exploração do mundo material sobre a do mundo interior (o que nos separa da Ásia) mas dando no entanto a este um rico quinhão (o que nos distingue da América), a combinação harmoniosa da razão com o sentimento; um fundo moral comum que se alimenta do cristianismo, inconciliável com o pensamento filosófico e político e a moral científica que a Europa se criou; a sua incapacidade para actualizar essa base moral, de cujo atraso resulta um desespero metafísico doloroso, mas fecundo, desconhecido de outros continentes», e pensamos que Martins Janeira pensaria não só em Antero de Quental, mas também em vias  negativas e existencialistas posteriores, e que desembocarão nos dias de hoje ainda em muito pseudo-esoterismo, fés cegas e ateísmos, mais ou menos cientistas...
Acrescentará porém outros traços marcantes, talvez algo
idealizados: "a consciência duma essencial missão espiritual, desapegada de interesses terrenos; a contemplação lírica e sensual da natureza, aliada à impossibilidade de integrar-se nela, que leva às conquistas e à recriação do mundo pela ciência; um idealismo prosélito, activo e missionário, terrenal e nunca ingénuo, que iluminou os seus maiores santos, guerreiros e político; uma exaltação épica atrevida e inconsiderada que conduz à aventura pelo sabor dela, ao arrrojo sobre o que se mostra impossível, que foi o fogo dinamizador dos seus grandes feitos históricos e a tessitura das suas lendas; um aferro pagão à vida e simultaneamente um desprezo dela por um ideal (...)», concluindo que tal convergência de correntes, ideias e movimentos criou "uma comunidade de substância espiritual", "que tem a consciência duma missão universal, isto é, a fé em si própria de ser capaz de realizar os seus próprios destinos e os destinos do universo
pela sua inextinguível reserva de forças espirituais».
Resta saber como Armando modificaria este optimismo
ocidental, face ao domínio que a civilização americana, criticada por ele, acabou por conseguir sobre a Europa, desfigurando-a muito, para além da existência de outros povos que têm também consciência das suas missões espirituais e sociais planetária, tal a China, a Rússia, o Irão e que estão a ressuscitar das opressões últimas a que tem sido sujeitos e a libertar vários povos da opressão do imperialismo norte-americano e de certo modo também ocidental e europeu. Veja-se ainda  como a União Europeia tem estado submetida a ditames externos à sua missão de lucidez, independência, diálogo e justiça....

No capítulo dedicado a Camões, de trinta páginas, destaca os três veios da obra camoniana: Em 1º, o Pensamento Europeu, afirmando mesmo «o homem que no Portugal da Renascença mais profundamente revela a sua consciência europeia, é Camões. Como Erasmo, desejava uma Europa unida, e é dos poucos espíritos que então tiveram clara consciência do perigo que a ameaçava e da missão que se lhe impunha de defender a cultura que trabalhosamente se criara», realçando ainda ser um continente cristão que se tinha que defender da ameaça islâmica e otomana. Ressalve-se que Erasmo no seu adágio a guerra só é doce aos inexperientes e noutros textos sobre a guerra e a paz, defendeu que antes de se irem guerrear ou converter islâmicos ou povos pagãos, deviam os cristãos converterem-se às vivências, valores e religações transmitidas por Jesus.

 Em 2º, a Concepção Heróica da grandeza Humana, o valor do da dignidade do ser humano (como defendera Pico della Mirandola, na imagem dum fresco florentinono meio de Ficino e Poliziano), muito bem desenvolvido, afirmando por exemplo que nos « Lusíadas o homem é exaltado até ao sumo da sua humanidade. O espírito, movido pelo ideal e por um ardente misticismo, que é, ainda, uma força do próprio espírito, desenvolve forças poderosas e ilimitadas, capazes de dominar toda a terra e de dominar mesmo a fraqueza da sua misérrima morada corporal», citando alguns dos melhores versos, tais: «Por feitos imortais e soberanos, … Divinos os fizeram, sendo humanos». Mas não esquecerá os mais pequenos na sua obra e muito lucidamente Armando Martins Janeira discerne já em Camões, e em sintonia com António Sérgio «um certo pensamento a que hoje poderia chamar-se democrático», na sua crítica aos mais poderosos, ricos e arrogantes.
Em 3º, o Universalismo, já que Camões soube unir os valores
medievais com os renascentistas, o que, graças à sua experiência e conhecimento da natureza humana, tornam-no “um homem universal, um desses seres extraordinário que se erguem à visão vasta dos problemas essenciais e dos caminhos que conduzem a evolução dum povo ou duma cultura», insistindo ainda que a gesta dos Descobrimentos «dá ao espírito europeu uma extensão ecuménica».
Todavia este universalismo, que Armando Martins Janeira reconhece naturalmente
nos Descobrimentos aos portugueses, tem contudo, nomeadamente na tal dimensão ecuménica, algumas limitações e máculas, sabidas e derivadas da mentalidade fanática ou inquisitorial e que Armando Martins Janeira não considerou necessário mencionar neste seu estudo literário.
Ora, perante o ódio ao Islão, ao ismaelita, que vemos expresso nos
Lusíadas, Armando Martins Janeira consegue compreender e aceitar tal ódio como real e justificado, se bem que eu considere isso em Camões, um fiel do Amor, até mais retórico e de sujeição à Igreja e à censura inquisitorial, e dá-nos as seguintes indicações nessa sua linha de raciocínio: «o amor e o ódio seriam os dois sentimentos mais fortes do ser humano, e é dessa oposição entre os dois polos contrários, o amor e ódio, em que a vibração do espírito camoniano é tão sincera e intensa, que se «alimenta o seu misticismo – porque todo o misticismo é a atingência do ponto máximo de amor, o qual mais sobressai e mais alto sobe quanto mais fundo for o ódio, quer seja o ódio do pecado, quer seja o ódio da fé inimiga.»

Parece-me contudo que o misticismo, enquanto sensibilidade, aspiração e amor a Deus, ao espírito, ao mundo espiritual, ao bem e ao Amor primordial, nutre-se bem mais de um desprendimento do mundo, de uma certa solidão, fome e desejo da Divindade, do que do ódio. O ódio conduz mais ao fanatismo do que ao misticismo, e embora haja misticismo fanático, e podemos observá-lo em alguns padres da igreja e até santos, ou que assim foram considerados, tal S. Domingos de Gusmão, ou ainda em membros da famigerada Inquisição, e nos extremismos islâmicos ou de certas seitas modernas, na verdade, a base do misticismo é a aspiração amorosa ao conhecimento ou à relação próxima e unitiva com Deus, ou com os seus intermediários, Jesus, Maria, e até Anjos e santos...
Pelo que a conclusão a que chega em seguida me parece menos curial: «Mas este ódio não estreita o seu humanismo, não diminui a sua larga simpatia humana, porque não é o ódio ao homem, é o ódio à fé alheia pela exaltação da irrompente força mística da própria fé.»
Ora parece-me que o ódio estreita o humanismo humano e diminui a sua larga simpatia humana, pois o ódio à fé alheia abrange os homens que a seguem, que a defendem ou que lutam mesmo por ela. Tanto mais que a «exaltação da irrompente força mística da própria fé» tanto acontece numa como noutra religião, e diga-se que essa força mística irrompente é algo primária e não matura ou elevada, já que misté, significa silencioso, ou seja os místicos eram os que conseguiam ver e sentir mais do espírito, do mundo espiritual e angélico e da Divindade, e calavam pela sua quase inefabilidade e para não deitarem pérolas aos que, não as compreendendo, as podiam menosprezar ou danificar.
Creio assim bem mais que Luís Camões não tinha ódio aos inimigos da fé, nem sequer teria ódio ao Islão em si, embora fosse obrigado a lutar feramente contra os inimigos de Portugal no Oriente, e desferisse alguns ataques, mais por palavras negativas, do que por argumentos, em relação ao Islâmicos, nos Lusíadas, já que eles eram os maiores inimigos dos portugueses, aos quais sucederam os Holandeses, protestantes.
                                        
O universalismo que Camões sentiu pelo seu contacto com povos e culturas e religiões diferentes só poderia nascer se o que o animava era curiosidade, abertura, simpatia, fraternidade e amor e, portanto, uma capacidade de diálogo em busca da verdade, tão patente por exemplo em Wenceslau de Moraes e em Armando Martins Janeira embaixador e amante do Japão, diálogo universalista que teve até na sua época quinhentista uma manifestação bem poderosa nos ditos inimigos islâmicos e exactamente na Índia: os encontros ecuménicos criados pelo clarividente imperador Akbar, em Fatehpur Sikri, na casa de Adoração, Ibadat khana, onde participaram desde 1575 padres católicos vindos de Goa (como vemos na miniatura), num ambiente ora fraterno ora acalorado, mas sem ódios, à parte um ou outro mais fanático, pois os verdadeiros místicos não deixam o sentimento de repulsão extrema e destrutiva, o ódio, instalar-se nas suas almas. Ou por exemplo, em 1893, no 1º Parlamento das Religiões, em Chicago, no qual tanto brilhou, no apelo da fraternidade e unidade da Religiões, Swami Vivekananda, o discípulo de Ramakrishna Parmahamsa...

                                    
Mas certamente cada um entenderá à sua maneira, o "santo ódio"  referido por escrituras, teólogos e santos e que o próprio Jesus teria dito, ou fizeram-no dizer, nomeadamente que "viera trazer a espada". Agora para de que modo a usarmos, e se ela é a do discernimento ou a de aço, fica a questão...
Concluamos com algo da bela e instrutiva interpretação de Armando Martins Janeira da nossa tão fundacional, arquétipa e imortalizadora realização amorosa e divina alcançada por Vasco Gama e os seus heroicos companheiro, na utópica Ilha do Amores, canto IX, dos Lusíadas: «A Ilha divina não é só a recompensa eterna dos navegadores, é a sua iniciação na nova categoria humana que alcançaram pelos trabalhos excessivos - é a sua heroificação.
Por isso a Ilha estará sempre neles, nunca mais perderão a atmosfera divina, o toque divino nem a companhia divina a que se ascenderam, porque ao deixarem a Ilha:

«Levam a companhia desejada
Das Ninfas, que hão-de ter eternamente
Por mais tempo que o Sol o mundo aquente.»

Saibamos "percorrer o caminho da virtude alto e fragoso", até no cimo do alto monte contemplarmos, com a Deusa, Vasco da Gama, Camões, Armando Martins Janeira e outros seres luminosos, a ordem do Universo, o campo unificado de energia consciência, a música das esferas, o Sol Divino, e intensifiquemo-nos ecumenicamente, espiritualmente, universalmente, cosmicamente...
                                              

quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Tolstoi, "O meu Testamento". Do livro "Últimas Palavras". E com vídeo. Comentado com ligações a Antero de Quental, nos seus 193 anos. Com o Imagine, de John Lennon.

                       

                  O  meu Testamento, de Lev Tolstoi.

«Não há tempo a perder. Quem andou, não tem mais para andar. Inútil é hesitar e reflectir mais tempo sobre o que tenho a dizer. A morte não espera. A minha existência vai já no declínio, e a cada instante se pode extinguir. Se ainda posso prestar algum serviço à humanidade, se posso fazer perdoar os meus pecados e a minha vida ociosa e sensual, é dizendo aos homens, meus irmãos, o que me foi dado compreender mais nitidamente que eles: - o que me tortura e oprime o coração há muitos anos.
Todos os homens sabem, como eu, que a nossa vida não é o que deveria ser, e que nós nos tornamos mutuamente desventurados.
Sabemos que para sermos felizes e fazer felizes os outros, é preciso amarmos o próximo como a nós mesmos; e se nos é impossível fazer-lhe o que quereríamos que ele nos fizesse, pelo menos é possível não lhe fazer o que não quereríamos que nos fizessem...
É isto o que ensinam as religiões de todos os povos, e a razão e a consciência ordenam.  
 
[Comentário: Lev ou Leão Tolstoi (1828-1910), tal como Antero de Quental (1842-1891), foram seres muitos abertos à voz da Consciência, ou da Razão universal, ou ainda do Espírito, que sentiam dentro de si com mais força até que os preceitos de religião, embora estes fossem fortes em Tolstoi, ou os ensinamentos morais. Foram pensadores da verdade e que sentiram que ela se deixava indiciar por uma pequena voz subtil e silenciosa da consciência, ou de uma Razão universal, absoluta, divina. No caso, esta até apenas a materialização do Amor, expresso lapidarmente, no seu estado potencial, o da não-violência: - “não faças aos outros o que não gostarias que te fizessem”, embora saibamos como temos também o dever de criticar ou de nos opor ao mal, à violência, ao ódio. Este testamento que lemos foi escrito como um testemunho sincero já no fim da sua vida do que ele desejava e pensava, acreditava e sabia...]]
 
A morte do invólucro corporal, que a todo o instante nos ameaça, recorda-nos o carácter efémero de todos os nossos actos; de modo que a única coisa que podemos fazer e que pode conquistar-nos a felicidade e a serenidade é obedecer continuamente, eternamente, ao que nos determinam a razão e a consciência, se não cremos na revelação; ou no ensino de Cristo, se nele cremos.
Por outras palavras: se não podemos fazer ao próximo o que quereríamos que nos fizessem, pelo menos não façamos o que não desejamos para nós.
Posto que todos nós há muito tempo conhecemos esta verdade, os homens matam, roubam e violentam; de tal modo que em vez de viverem alegres, em tranquilidade e amor, sofrem, afligem-se e não vivenciam senão medo ou ódio uns pelos outros. Por toda a parte, na Terra, as pessoas procuram dissimular a sua vida insensata, e esquecer e abafar o seu sofrimento, sem poderem atingir tal resultado. Assim o número de pessoas que perdem a razão, e se suicidam, aumenta de ano para ano, porque está acima das suas forças suportar uma vida contrária à verdadeira vida humana...
Mas, dir-se-ia, talvez seja necessário a vida ser assim: - necessária a existência dos imperadores, dos reis ou presidentes, dos governos, dos parlamentos ou assembleias, que comandam milhões de soldados providos de espingardas e canhões, a todo o momento prontos para se atirarem um aos outros; - necessárias as fábricas e oficinas, que produzem objectos inúteis e perigosos, em que milhões de homens, mulheres e crianças são transformadas em máquinas, penando dez, doze ou quinze horas por dia; – necessária a despovoação crescente das aldeias e a acumulação progressiva das cidades com as suas tabernas, seus albergues nocturnos, seus asilos para crianças e seus hospitais; - necessária a prisão de centenas de milhares de homens. Talvez seja necessária que os casamentos diminuam cada vez mais, que a prostituição e os abortos aumentem de dia para dia, e que os homens se deem cada vez mais ao deboche.
Talvez seja necessário que a doutrina de Cristo, ensinando a concórdia, o perdão das ofensas, o amor do próximo e dos inimigos, seja inculcada aos homens por sacerdotes de seitas inumeráveis em lutas contínuas, e isto sob a forma de fábulas estúpidas e imorais, a respeito da criação do mundo e do homem, do seu castigo e da sua redenção por Cristo, e sobre tal ou tal rito, tal ou tal sacramento.
Talvez este estado de coisas seja natural ao homem, como próprio é as formigas e às abelhas viverem nos seus formigueiros e nos seus cortiços em lutas contínuas e sem outro ideal.
Talvez esta seja a lei dos homens, enquanto que o chamamento da razão e da consciência para uma outra vida afectiva e feliz não passará dum sonho, e que se não possa, enfim, imaginar e realizar tal como esta de hoje...
É assim, que falam certos opinativos...
Mas o coração humano não quer crer em tal: está sempre em revolta contra a mentira, e tem sempre, sempre, convidado os seres humanos a deixarem-se guiar pela razão e pela consciência. E em nossos dias
faz esse apelo com mais intensidade que nunca.
Não existimos durante séculos, durante milhares de anos, uma eternidade; mas, depois, eis-nos na Terra vivendo, pensando, amando e desfrutando da vida.
Ora nós podemos viver até aos setenta anos, - se, aliás, chegamos a essa idade, porque podemos não viver mais que alguns dias, algumas horas – em pesares e ódios, ou em alegrias e amor; podemos viver com a consciência de mal-fazer, ou de cumprir, imperfeitamente que seja, o que podemos julgar ser o nosso dever.
-«Tende mão em vós!... Fugi à tentação! » - bradava aos homens João Baptista,
-«Fugi à tentação! » - dizia a voz de Deus pela voz da consciência e da razão.
Antes de mais, detenhamo-nos a meio de cada uma das nossas ocupações, de cada um de nossos prazeres, e perguntemo-nos:- «Fazemos o que devemos, ou desbaratamos inutilmente a nossa vida, - esta vida que nos foi dado passar entre duas eternidade do nada?»
 
[Comentário: Esta afirmação de Tolstoi é algo dramática pois vemo-lo sem uma certeza de uma vida espiritual antes e depois da vida no corpo físico terrestre. Apesar de algumas vezes a ter admitido, ou mesmo a reencarnação, e ter-se dedicado à compilação de frases de sabedoria de muitos povos e tradições já no fim da sua vida, eis uma dramática confissão, que contudo ainda mais valoriza a sua luta constante por seguir a voz da consciência e da razão, sem outro motivo que o dever ser, embora a chegue a designar por Voz de Deus. Mas na sua luta contra os aspectos negativos da religião católica e ortodoxa acabou por não conseguir manter uma relação mística íntima com a Divindade. Antero de Quental, teve bastantes semelhanças com Lev Tolstoi, e assentou bastante a sua linha de conduta e de ética neste princípio do dever, do bem impessoal, embora algumas vezes tivesse afirmado a sua crença na imortalidade da alma e da vitória do amor sobre a morte, como alguns poemas finais retratam excelentemente, poucos para o que ele desejaria, como mais de uma vez afirmou, embora na sua adolescência tal fé e amor brilhasse mais pura e não diminuída. 

Tolstoi está assim a tentar chamar as pessoas a uma conversão mas talvez sem as fundações necessárias, que seriam: há uma vida depois da morte, o que semeias colhes, viverás num corpo psico-espiritual e num plano que estará de acordo com o que foste, sentiste, fizeste, pensaste, acreditaste.]
 
Eu sei muito bem que, devido a incitamentos ou estímulos da sociedade, nos parece impossível parar para reflectir ou meditar alguns momentos.
Uns dizem-nos: - «Basta de reflexões! Actos é que se querem!
Outros afirmam: - «A gente não deve pensar em si, nos seus desejos, quando a obra ou missão ao serviço da qual nos achamos é a da nossa família, da arte, da ciência, do comércio, da sociedade, - tudo pelo interesse geral.»
Outros sustentam: - «Tudo foi pensado e ponderado há muito tempo. Ninguém achou melhor. Tratemos de nós, e acabou-se».
Outros, enfim, pretendem: - «Reflectir ou não reflectir, tudo é um. Vive-se, depois morre-se. O melhor é portanto viver gozando. Quando uma pessoa se põe a reflectir, chega à conclusão de que a vida é pior que a morte, e mata-se. Por conseguinte, tréguas às reflexões! Viva cada um como poder!»
 
[Comentário: Sabemos como houve e há pessoas que pensaram tal em relação Antero de Quental: de tanto matutar, de pouco rir e desfrutar, melancolizara-se e fragilizara-se, e de facto a falta de maior fogo do amor em si, e um progressivo isolamento e desilusão precipitaram-no no abandonar da missão terrestre.]
 
Não escutei estas vozes: a todo este arrazoado, respondei simplesmente:
«Atrás de mim vejo a a eternidade durante a qual eu não existia; adiante, sinto a mesma noite infinita em que morte a todo o instante me pode tragar. Actualmente vivo e posso, - sei que posso! - fechando voluntariamente os olhos, cair numa existência cheia de miséria, mas sei que abrindo-os para olhar à volta de mim, posso escolher a melhor e mais feliz existência. De modo que, digam o que disserem as vozes, quaisquer que sejam as seduções que nos atraiam, por muito tomado que eu esteja pela obra que tenho em mão, e agitado pela vida que me cerca, paro, examino e reflicto.»
Eis o que eu tinha a dizer aos meus semelhantes antes de regressar ao infinito.»

                                                  
[Comentário: Assim escreveu Tolstoi no final da sua vida, quando deixava num testamento legal os direitos de muitas das suas obras ao povo russo, ou seja, dava-os à universalidade dos seres na gratuitidade do amor e da sabedoria. Não são contudo palavras de tão grande sabedoria face à morte, e constituem sobretudo um apelo a que, por preceitos religiosos, nomeadamente os de Jesus Cristo, ou por uma intuição da Razão cósmica, ou uma audição da voz da Consciência, saibamos agir em amor e vencermos a instintividade (as "tentações", para ele tão forte e culpabilizante no seu aspecto sexual), a superficialidade de vida, a possessividade, a violência, os hábitos e costumes sociais negativos que tanto controlam ainda a humanidade, em muitos casos explorados pelos governos, os grupos económico-ideológicos e os meios de informação e desinformação tão vendidos e manipulantes....
Prestes a deixar a Terra, Tolstoi não se afirma como um mestre espiritual conhecedor vivencialmente de que é um espírito imortal, ou que existe a vida depois da morte, ou uma justiça cósmica, antes simplesmente pede para que saibamos parar e meditar de quando em quando, a fim de discernirmos se estamos a caminhar na direcção certa e nos melhores modos, aqueles que tornam a existência dos seres e a nossa melhor, mais sábia, amorosa e feliz, mais em 
harmonia com o querer Divindade...

Possam a Luz e o Amor divinos e a comunhão com os grande seres alimentarem a sua alma, possa o seu ser estar agora bem mais consciente e a vivenciar as luminosas dimensões espirituais e reais em que o amor e a não-violência que ele tanto quis, e em parte conseguiu, viver e transmitir, brilhem e possam reflectindo-se nele chegar até nós...

                        

 Imagens finais do túmulo verdejante de Tolstoi, na Iasnaia Poliana (Clareira dos Freixos), aonde o tolstoiano Jaime de Magalhães Lima, "discípulo" dilecto de Antero, foi em peregrinação dialogante, narrada no seu belo livrinho, Cidades e Paisagens, 1889, cf:. (teixeiradamota.blogspot.com/2015/01/jaime-de-magalhaes-lima-as-doutrinas-do.html), seguida de uma pintura dos mundos espirituais pelo mestre alemão Bô Yin Râ (1876-1943). Utilizamos para o texto a tradução de Francisco Barros Lobo, circa 1906, com pequenas correcções. O texto foi também gravado e comentado e pode ouvi-lo em:  https://www.youtube.com/watch?v=MxAVZYVV9dQ&t=1s

Segue-se um vídeo do Imagine, de John Lenon, um mártir precoce, tal  como Sócrates, Jesus, Ali, Sohrawardi, Dara Shikok, S. João de Brito, Mahatma Gandhi,  Martin Luther King, Qassem Soleimani, Daria Dugina e tantos outros... Aum! Amor!

                        

segunda-feira, 20 de setembro de 2021

Tolstoi, "Apelo à Juventude". Do livro "Últimas Palavras". Os textos finais e mais revolucionários de Tolstoi. Com um vídeo. Comemorações dos seus 193 anos.

Na  colecção Os Bons Autores, da livraria Bertrand, era publicada, sem data mas na 1ª década do séc. XX uma das últimas obras de Leão Tolstoi, intitulada Últimas Palavras,  que Francisco Barros Lobo (irmão do malogrado Beldemónio) traduziu, certamente da edição francesa Paroles d'un homme libre (dernières études philosophiques), a qual fora traduzida do russo e editada em 1901, em Paris. 

Na revista Occidente, nº 1016, 20-III-1907, a propósito do seu romance Crónica d'Aldeia.


 
A obra contém alguns dos últimos escritos de Tolstoi e dos mais poderosos de afirmação de uma ética viva,  como que o seu canto de cisne de uma vida  de uma criatividade e indagação corajosa da verdade e da justiça social. Vejamos no índice os títulos, onde após o prefácio se seguem alguns textos que na época tiveram grande impacto e que ainda hoje nos fazem sentir, talvez por uma corrente tolstoiana perene, a sua força e actualidade: Não posso calar-me. Persegui-me! Não matarás! A pena de morte e o Cristianismo. A anexação da Bósnia, Amai-vos uns aos outros. Apelo à Juventude. A religião e as religiões. As duas morais. O meu testamento.

 Aquando das comemorações dos 186 anos de Tolstoi, lemos e comentámos em vídeo o Apelo à Juventude, e agora, passados sete anos. resolvemos transcrever o texto. sublinhá-lo e anotá-lo brevemente.

                                             Apelo à Juventude.

«Crede! Crede em vós, rapazes e raparigas, quando, ao saírdes da infância,  esvoaçarem na vossa alma perguntas como:«Quem sou eu? Para que vivo eu? Para que vivem todas as pessoas que me cercam?» E, sobretudo, a mais importante e perturbadora pergunta: «Acaso eu e as pessoas que me cercam vivemos exactamente como devemos viver?»

Crede em vós, quando as respostas que de vós saírem não estiverem de acordo com as que vos foram inculcadas na infância, nem com o género de vida vivido por vós e todos os que vos cercam. Não receais o desacordo: pelo contrário, aceitai-o como a expressão de tudo o que em vós há-de melhor, - o princípio Divino, que é não só a  mais importante, mas a única razão da vossa existência na Terra. Não acrediteis em vós, - indivíduo dum dado nome, - João, Pedro, Luzia ou Maria, filho ou filha dum lavrador, - mas no  princípio Eterno de sabedoria e bondade que em cada um de nós reside e em vós despertou e vos propõe problemas vitais dos quais exige a solução.»

 [Comentário: Este apelo forte à sinceridade e autenticidade das nossas ideias, sentimentos e actos, em suma, da nossa vida, nomeadamente não termos medo de irmos contras as ideias feitas, ou os modos de vida, dos outros, recebe subitamente uma raiz espiritual e não meramente ética: "há dentro de vós um princípio Divino, que é o que há-de melhor em nós". O mais importante é então ouvir e seguir este princípio Divino, e seria bom sabermos a exacta palavra utilizada por Tolstoi, pois pode ser tanto o espírito, a centelha divina individualizada, como pode ser uma espécie de fundo colectivo da alma, ou a voz da consciência tão invocada por Antero de Quental, ou a presença Divina em nós, tal como ele acrescentou: «um Eterno princípio de sabedoria e bondade que em cada um de nós reside», e que em vós despertou ou pode despertar. Sintonizarmos, meditarmos, aprofundarmos este subtil e elevado nível ou princípio é então fundamental para vivermos mais plenamente e harmoniosamente, numa arte criativa e compassiva diária. ]

«Não acrediteis nas pessoas que vos dizem, com um sorriso condescendente, que também elas durante muito tempo procuraram respostas a essas mesmas perguntas, e as não acharam, porque é impossível achar outras soluções que não sejam as admitidas por todos.»

[Comentário: Este apelo tem sido formulado ou dado pelos mestres ao longo do tempo: aquilo que vos foi dito, aquilo em que acreditaste, muda com o tempo e as gerações. Outras perguntas e respostas são necessárias, e temos de ser nós a fazê-las, a descobri-las e a vivê-las, para assim darmos sentido à nossa vida...]

Não acrediteis senão em vós: não temais o desacordo com as opiniões e os pensamentos dos indivíduos que vos cercam, no caso em que os vossos próprios pensamentos resultem, não dos vossos desejos egoístas, mas do anelo de cumprir a vontade da Força que vos enviou à Terra. Crede em vós, principalmente quando as respostas que se vos impõem são conformes aos eternos princípios da sabedoria humana expressos em todas as doutrinas religiosas e, na de Cristo, no seu mais alto significado. Eu lembro-me como, aos quinze anos, vivi esses momentos, como despertei da minha passiva crença infantil nos juízos de outros em que tinha vivido até então, e como pela primeira vez compreendi que devia viver por mim próprio, escolher o meu caminho e ser responsável pela minha vida perante o Princípio que me a tinha dado.

Lembro-me que sentia então, posto que muito vagamente ainda, mas em todo o caso muito profundamente, que o fim principal da minha vida era ser bom, bom na acepção evangélica, - sacrifício e amor. Diligenciei então viver assim, mas a minha tentativa durou pouco. Não acreditava em mim, mas na imponente, presunçosa e triunfante sabedoria humana, que actuava em mim conscientemente, e inconscientemente pelo meio ambiente. E o meu primeiro despertar foi substituído pelo desejo determinado do ser poderoso, sábio, rico, forte; isto é, tal como o mundo, e não eu, o achava bom.

Não tinha então confiança firme em mim. Só à custa de perseverantes esforços, gastando dezenas de anos na realização de fins terrenos, nunca atingidos, é que  dei pela vaidade deles, muitas vezes pela sua nocividade, e compreendi que o que eu sabia há sessenta anos, e no qual não acreditara, podia e devia ser o único fim sensato da energia cada um.

E quão diferente, mas alegre para mim e mais útil para os outros, teria podido ser a minha vida, se eu acreditasse e seguisse então a voz da verdade, isto é, a voz Divina, quando ela primeira falou na minha alma, pura ainda de toda a tentação!

Sim, mocidade querida: tu que despertas a tomar [consciencializar] toda a importância da tua missão na vida, e isto não sob uma acção exterior mas pela tua própria iniciativa, não creias naqueles que te disserem que as tuas aspirações não passam de sonhos irrealizáveis da idade juvenil; que te assegurem que também eles sonharam e procuraram, mas que a vida cedo lhe demonstrou que tem as suas exigências, que é inútil criar quimeras, que é preciso cada qual esforçar-se por fazer concordar o melhor possível os seus actos com a maneira de viver da sociedade existente, a fim de ser um membro útil dessa sociedade.

Não te deixes de modo algum seduzir, ò gente jovem, pela miragem em moda, fazendo crer que a missão do homem é reorganizar a ordem de coisas estabelecida, em tal ponto e em tal época, recorrendo a toda a espécie de processos, algumas vezes contrários à moral. Não acredites em tal! Esse fim é ínfimo, comparado ao esforço que devemos fazer para manifestar em nós o princípio Divino que a nossa alma encerra em estado latente: fim de reorganização esse que também é mentiroso se permite a gente afastar-se dos princípios da bondade que a alma contém.

Não acredites que te seja impossível educares-te isoladamente na bondade e na verdade. Isso não somente é possível, como ainda toda a tua vida, a tua como a de todos as pessoas, para aí tende. A melhoria moral de cada um de nós conduz não só à melhoria social, mas ainda ao Bem universal que a humanidade pode atingir, o que não se realiza senão pelo esforço pessoal de cada indivíduo.

 [Comentário: São muito actuais e de meditarmos estes conselhos tolstoianos de não deixarmos influenciar pelas novas modas e directrizes materialistas e apelidadas de transformistas que a elite que deseja uma nova Ordem Mundial opressiva global  tenta impor na Humanidade graças ao seu domínio dos meios de informação e das duas moedas principais em curso ilimitado. Escapemos a tal manipulação, sobretudo televisiva...
Importante ainda a sua ideia,
e que Antero de Quental,  em vários aspectos afim de Tolstoi, embora tolstoiano fosse o seus discípulo Jaime de Magalhães Lima, meditou e escreveu por vezes excelentemente,  de que a melhoria moral ou ética da Humanidade e de cada um ela só se  realiza  pelo nosso esforço pessoal de intuirmos ou discernirmos a Verdade e o Bem universal, no fundo o princípio e plano Divino, e de tentar vivê-lo e testemunhá-lo.]

Sim, mocidade: crê em ti, quando no teu coração sentires ou ouvires falar o desejo de ser melhor, e não o de ir além dos outros, - ser poderoso, notável, - salvar os homens da sua má organização da vida; tem fé em ti quando sentires manifestar-se em ti o princípio divino, ou, como dizem os moujikes, "viver em conformidade com Deus". Vivendo assim, farás tudo o que podes fazer em teu próprio benefício e do da humanidade.

Procura o reino de Deus e a sua verdade, e o resto te será dado por acréscimo. 

Tem fé em ti no grave momento em que na tua alma pela primeira vez se acenda a consciência luminosa da tua origem divina. Não apagues essa luz;  pelo contrário, cuida preciosamente dela, até que ela por si se extinga [fisicamente, à hora da morte]. É nesta extensão da luz que reside o único, o grande e o belo sentido de vida de todo o ser humano.»

Realcemos, para concluir, parecer-nos Tolstoi considerar o princípio divino como sabedoria e a vontade de ser bondoso e fazer-se o bem (entre nós emblematizado no talent de bien faire, do Infante D. Henrique e depois de Fernando Pessoa nos seus textos de ressurreição espiritual), e o querermos ser melhores, evoluirmos mas não em competição mas sim em não-violência e amor. E que para tal será preciso vencermos as modas, manipulações e opressões exteriores, sendo fiéis a nós próprios (como muito valorizava Agostinho da Silva), ouvir e seguir a voz da consciência, ou do coração, diremos, e assumir e nutrir a luz tanto da verdade extrínseca como a interior e subtil da identidade espiritual, a de espíritos filhos ou filhas da Divindade, em cuja assunção e vivência apenas se verifica, ao morrermos, a extinção do corpo físico e do cérebro mas não da nossa consciência luminosa, que pelo contrário se vai estender ou expandir...
Sejamos pois jovens eternamente nesta fé ou vontade de avançarmos luminosamente no caminh
o do Bem, da Verdade e do Amor rumo à Fonte Divina, ao Sol Primordial....

Encontro na Luz, de Bõ Yin Râ.

                  

domingo, 19 de setembro de 2021

"A ORAÇÃO", de Bô Yin Râ. 5º cap. (3ª p.), Renovação Espiritual. Tradução por Pedro Teixeira da Mota.

                                           

 «Esta é exactamente a ordem inversa da que se aplica nos nossos deveres na vida exterior, onde é preciso que uma pessoa crie primeiramente uma posição sólida para si mesmo antes de poder tomar a responsabilidade de fundar uma família, - e deve cuidar primeiro da sua família antes que possa ajudar  parentes e amigos, e  por sua vez  terá de não lhes ser mais necessário, antes de procurar ajudar grupos humanos mais longínquos ou pôr as suas forças ao serviço do conjunto da humanidade.

É de uma indizível importância para toda a humanidade que toda a pessoa que aprendeu verdadeiramente a “orar”, “ore” em primeiro lugar  para todos, antes de utilizar igualmente a "oração" para aspectos  mais longínquos ou mais próximos de natureza “privada”, para não mencionar os problemas puramente pessoais para os quais ele queira recorrer à “oração” …

  Pode assim com o decorrer do tempo  chegar uma verdadeira renovação  espiritual de partes crescentes da humanidade  só  pelo efeitos  das orações de poucos  seres!

Mas tal não permanecerá apenas nesses seres individuais, pois a potência de verdadeira oração saberá atingir bem cedo todos os que estão suficientemente maduros e firmes para serem capazes de aprender a “orar”…

Mas certamente não são poucos os que se podem encontrar nos dias de hoje. - -

Os que  ainda carregam os pesos e  dificuldades da Terra não se devem esquecer dos que antes deles atravessaram esta Terra sobrecarregdos dos mesmos pesos e dificuldades.

Não se deve imaginar que eles estão agora livres de qualquer desejo de serem ajudados, ou que estão tão fora do alcance da ajuda humana terrestre, que tal auxílio não lhes poderá ser mais útil.

Ah! – são mesmo muitos os que necessitam urgentemente de ajuda pela  “oração” verdadeira, pois as suas almas encontram-se num plano de evolução anímica que não lhes permite mais impulsionarem activamente o seu destino!...

Quando encontramos num  livro sagrado antigo as palavras: “É um pensamento santo e salutar, orar pelos mortos para que eles se salvem!”, – uma pessoa pode ficar verdadeiramente certa que estas palavras só puderam ser escritas por quem via por detrás do espesso véu que torna impossível, a quem para tal não está preparado,  ver a “terra sem retorno” -

E quando eu peço aqui a cada um, que quer aprender a "orar", de incluir  na sua “oração” verdadeira, na medida em que é capaz, também os que deixaram esta Terra, falo em virtude dos meus “conhecimento” mais certos e de modo algum influenciado por quaisquer ideias do ser humano terrestre acerca da vida depois da morte terrena.

Contudo deve-se pensar aqui também, em orar em primeiro lugar por todos, antes de direcionar as forças da verdadeira “oração” para seres individuais!

Ninguém, todavia, deve preocupar-se, que a sua oração possa ser para certas pessoas inútil,  porque elas já não teriam necessidade de ajuda!

Eu direi aqui apenas, que entre as que qualquer ser vivo  pode conhecer, ou que os seus pais se lembram, não existe uma só alma que não acolha com gratidão ser impulsionada no seu caminho, mesmo quando não pertencem aquelas que essa ajuda da “oração” verdadeira se pode tornar francamente “libertação”.

Mesmo em tal estado anímico, em que a alma se vivencia livre do corpo terrestre e que se costuma designar por “além”, a renovação espiritual, no mesmo sentido em que já usei anteriormente a palavra, é uma constante necessidade, já que consciência terrena continua a ter  efeitos perturbadoras na alma, enquanto ao mesmo tempo vibra  em  vivências novas que tem de aceitar passivamente sem, como outrora na terra, através do corpo físico, poder participar activamente nisso. 

Os poucos, entre os que morreram, e que na sua vida terrestre, eram activos no mundo espiritual, saberão certamente utilizar para os outros a ajuda da verdadeira oração que lhes fosse porventura dirigida…

Cada um pode estar certo de que nada é perdido do que o amor pode enviar “no além” por cima das fronteiras do mundo sensorial físico.

Isto aplica-se em verdade a todo o sentimento impregado de amor, a cada pensamento cheio de amor e por razão mais forte ainda, à ajuda miraculosa que se torna possível pela prática da “oração” verdadeira!

Assim, a verdadeira maneira de “orar” tal como eu ensino neste livro, estende a sua acção não somente sobre a terra, mas ainda bem além deste mundo de fenómenos sensoriais físicos!

A verdadeira “oração” conecta tudo o que é anímico e que carrega consigo a centelha espiritual,  tanto no Cosmos visível como invisível, e gera correntes de forças que, por intermédio das estações adequadas,  que verdadeiramente atingem por fim  o coração do Ser eterno absoluto, para em seguida refluírem de lá, de certo modo “carregadas de graça”, até a quem reza e a todos a quem foi dirigida a sua “oração”…

A verdadeira “oração” deixa recriar-se a “escada celestial” erguendo-a do íntimo do ser humano até ao mais íntimo da vontade do Ser Original, - essa escada celestial que  torna possível às mais elevadas hierarquias do Espírito fazerem descer  a esplendorosa e  eterna  Luz até à vivência mundana do homem da Terra!

A verdadeira “oração” é a mais elevada gorificação do Amor eterno, - a possibilidade oferecida amorosamente de união com a Omnipotência criadora eterna, que gera do Amor primordial   vida  eternamente nova

Assim para o ser humano da terra é apenas a realização do seu dever mais sagrado, quando  se esforça ao máximo por aprender  a “orar” verdadeiramente !

Salvação e bênção surgirão de tais “orações” para ele e para todas as almas e cada vez mais a face da terra através dessas  orações verdadeiras assumirá espiritualmente  uma nova plasmação, em prol dos que virão depois de nós.

Preparadores do futuro são todos aqueles que sabem verdadeiramente orar!-

Eles são os percursores e os desbravadores do caminho do Homem novo, que aspira já com impaciência à existência na Terra mas que só poderá fazer  a sua aparição  quando encontrar a terra preparada para a sua maneira nova de ser Homem.

Para ele  a verdadeira "oração" criará uma Pátria na Terra, - para ele: - o novo ser Humano  que conjuga tudo o que no presente está ainda dividido e dilacerado  porque ele vive agora só do Amor!- - -»


sábado, 18 de setembro de 2021

"A ORAÇÃO", de Bô Yin Râ. 5º cap. (2ª p.), Renovação Espiritual. Tradução por Pedro Teixeira da Mota.

                                           

É praticamente impossível  expor em palavras da linguagem humana a união sem par que existe no homem terrestre entre a "centelha espiritual e a "alma”, ou apenas querer esclarecê-la com o auxílio de imagens e semelhanças.

Se bem que a nossa “alma” seja para nós "o único real", ou seja, a única coisa activa internamente perceptível, ela não é senão um agrupamento orgânico formado e segundo certas leis de harmonias rítmicas, do oceano eterno das forças psíquicas,  o qual tem por assim dizer, como ponto focal de cristalização a “centelha espiritual” mergulhada neste oceano.

A percepção da nossa própria "centelha espiritual" só nos é possível na medida em que “somos almas”, e somente através de forças específicas da alma que, penetrando até ao Espírito puro, podem ser consideradas como os seus “sensores” [fühler].

Tudo de espiritual, que quer atingir a nossa consciência terrena,  tem de fazer o seu caminho através da “centelha espiritual” eterna em nós, onde é recebido pelos "sensores" da alma e é  novamente transmitido da alma por certos "órgãos anímicos" nas nossas membranas cerebrais...

Mas como também todas as impressões ruidosas da vida terrestre exterior fazem ressonâncias na alma através da consciência cerebral, assim o organismo indiscritivelmente subtil da "alma" é constantemente abalado, o que não somente diminui umas vezes mais, outras vezes menos, a sua receptividade para o espiritual, mas em certas ocasiões pode provocar  mesmo mais prolongadamente uma espécie de "paralisia" “da alma”.

Para quem já experimentou este fenómeno, - e poucos serão o que ainda não o experimentaram -, pouco preciso de dizer quanto a como esta "paralisia" da "alma" tem um efeito recíproco sobre a consciência cerebral…

Assim existem continuamente no interior do ser humano  interacções recíprocas e uma higiene da "alma" não tem certamente menos importância que uma higiene do comportamento do corpo terrestre visível e dos seus órgãos.

Nós precisamos constantemente duma “renovação espiritual” no sentido duma renovação da vitalidade anímica, a fim de que a alma  permaneça capaz de receber e transmitir o espiritual, tal como não podemos dispensar a renovação das forças do nosso corpo terrestre se queremos cumprir a existência terrena.

Não existe, contudo, maneira mais eficaz de se alcançar uma renovação espiritual incessante que estar-se continuamente pronto a "orar", - tal como a “oração sem cessar” que dela provém.

Para  quem está sempre pronto a orar, por todo o seu posicionamento na vida interior e exterior: - a sua vida contemplativa e activa, a verdadeira oração é tão necessária à sua existência como a alimentação do seu corpo terrestre, e não tem mais necessidade de qualquer circunstância especial para ser levado a “orar”, se bem que tais ocasiões nunca lhe faltarão.

E não são somente os elos de corrente de ouro de actos de orações, modeladas conscientemente, que conferem bênçãos às suas vidas!

É  a  contínua  vontade de orar deles, que por assim dizer “ora”  por eles, quando os seus deveres diários e diversões tornam impossível  a formação consciente da oração.

Se uma pessoa já alcançou este estado, então é impensável que o dia de trabalho possa começar ou  acabar sem uma verdadeira “oração”.

Todavia, foi dito: - “Quando queres orar, fecha-te no teu quarto!”

 Assim não é de modo algum necessário, - e seria mesmo violar o "pudor da alma", - que a vizinhança de quem reza saiba dos seus actos de oração, a não ser que várias pessoas se encontrem na mesma vontade de orar e um deles procure dar a tal vontade uma expressão verbal.

Mas então têm de ser pessoas nas quais cada uma sabe o que é a verdadeira "oração", e é preciso que cada uma já se tenha, na sua vida,  elevado ao estágio de estar contínuamente pronta a orar, -  senão a oração em grupo tornar-se-á um gesto vazio, ou no melhor dos casos, como no dar-se graças em conjunto à refeição, a adesão a um costume piedoso. É verdade que esta tradição  nasceu de actos colectivos de oração de pessoas que conheciam o segredo da verdadeira oração e que não queriam também deixar de sustentar o corpo terrestre sem “orar”.

À criança devem ser dadas  fórmulas de oração calmas, adaptadas ao seu sentimento e à sua receptividade sem esperar dela uma atitude interior que esteja para além da capacidade concentração das forças da sua alma!

Com todo o cuidado deve-se  introduzir o adolescente na prática da "oração" verdadeira, antes de lhe ser desvendado o modo como tudo se entrelaça espiritualmente.

Assim, quem que já aprendeu  a rezar na prática, só ouvirá em seguida noções já familiares, ao receber todo o ensinamento na sua interdependência.

A expressão verbal que o verdadeiro iniciado na "oração" quer dar a cada acto seu de oração pertence inteiramente a ele só.

Pode, com a mesma eficácia, adoptar fórmulas de orações existentes, que lhe são talvez queridas e familiares desde a sua infância, como pode formular ele próprio as palavras, do amplo fundo dos seus sentimentos, mesmo se na sequência de palavras tal oração não representasse mais que um balbuciar emocionado.

Apesar de em verdade tal balbuciar possa tornar-se uma "oração", não se deve pensar erradamente  que a verdadeira "oração" é mais um “balbuciar” que a formulação duma sequência  de palavras. 

Trata-se aqui dos altos efeitos de leis espirituais e da sua utilização, de modo que a reverência diante da ordem espiritual compele-nos já a esforçar-nos por dar uma forma tão perfeita quanto possível ao acto de orar…

E, elevando-se  ainda muito acima disso, são possíveis sequências de palavras, que ordenadas segundo o valor espiritual dos sons, afectam   indizível e beneficamente a alma, de modo que a oração que as utiliza, eleva-se por assim dizer com uma força duplicada…

Quando uma pessoa pode  “orar” verdadeiramente, pensa saber o que deverá pedir, todavia é necessário  dizer ainda algumas palavras, a fim de não se perpetuar ad infinitum o erro que tantas pessoas cometem e que desconhecendo o mistério da verdadeira “oração”, todavia na seu tipo de devoção pensam  que estão orar de boa fé, tal como a conseguem compreender.

 Para quase todos dos que assim supõe orar, é algo natural em primeiro lugar orarem para o seu próprio bem e para o bem daqueles - como se costuma dizer - que lhes são mais “próximos” na vida terrena…

Sem dúvida foi ouvida a exortação: “Orai por aqueles que vos odeiam e vos perseguem”; e nas igrejas “romanas” reza-se no dia da Gólgota com uma insistência significativa pelos “heréticos”, os judeus e os pagãos, mas não se pensa que do ponto de vista dos que estão despertos espiritualmente os nossos inimigos e os que nos desprezam, do mesmo modo que os homens mais afastados e em quem nunca pusemos os olhos, estão também tão ligados espiritualmente a nós quanto os nossos mais próximos e queridos, ainda que não possamos consagrar o mesmo tipo e o mesmo grau de amor a desconhecidos e a pessoas que nos fizeram muito mal, - e em verdade nenhuma Lei divina “ exige” tal, pois é ela mesma que estabelece e opera esta diversidade.

Mas quem aprendeu realmente a orar deverá consequentemente alargar o seu campo de visão, a fim de orar sobretudo e em primeiro lugar, por todos os que sobre a Terra querem tornar-se Homens, e se esforçam por ser Homem: - que sofrem sob a natureza animal e que procuram domar a natureza animal! – 

Só então é permitido a quem reza pensar em certos grupos de pessoas, - depois nos seus amigos e familiares, - em seguida na sua pequena família, - e em último lugar: - também em si próprio!»


sexta-feira, 17 de setembro de 2021

"A ORAÇÃO", de Bô Yin Râ. 5º cap. Renovação Espiritual. (1ª p.) Tradução por Pedro Teixeira da Mota.

                               RENOVAÇÃO ESPIRITUAL

«Se alguém em si acreditasse que  graças à  “oração” verdadeira toda a humanidade poderia encontrar uma renovação espiritual, ele não teria de modo algum caído em erro.

Mas uma vez que, na Terra, “a humanidade” está constituída simplesmente de um grande número de seres humanos individuais, uma tal renovação só pode partir de uma pessoa, pelo que falaremos aqui somente da pessoa individual em vez de nos perdermos no conjunto, pois desse modo perder-se-ia muito para o indivíduo.

Se uma só pessoa, algures nesta Terra, se encontrar preparada e a querer renovar-se pela  “oração” verdadeira, já muito terá sido ganho para toda a humanidade, pois nós, seres humanos, não estamos isolados uns dos outros no espaço vazio, mas o bem ou o mal que flui através de um, flui  dele ainda mais através de todas as almas humanas mesmo que elas estejam em acção nos mais remotos lugares e possam sabê-lo ou não.

Se  dei, nos capítulos anteriores,  dum modo tão detalhado o que se relaciona com a verdadeira “oração” e em que é que consiste a autêntica "oração", isso aconteceu sobretudo porque muitas pessoas não imaginam nada mais fácil que rezar, - pois muitas pensam que  já  oraram,  quando na sua compreensão imaginativa  têm conversas, numa familiaridade demasiado presunçosa, com uma criatura dos seus sonhos a quem chamam o seu “Deus”, e que aceitam como consolação fácil o efeito recíproco de auto-sugestão produzido nos seus sentimentos. -

Desta pseudo-maneira de orar só pode certamente resultar auto-ilusão e  um sentimento passageiro e falso de exaltação, - nunca a verdadeira renovação espiritual que quem ora tem tanta necessidade .

Todavia, nada seria  mais errado se as pessoas sentissem o mais pequeno desencorajamento face à minha explicação.

É fácil imaginar-se que este ou aquele estaria disposto a dizer:«Se orar verdadeiramente encerra em si todas estas condições prévias, então eu nunca a aprenderei! - Eu desabafarei com o meu Deus, e encontrarei consolação no pensamento que serei ouvido, e talvez mesmo atendido!”

Mas quem  tenha lido o livro até aqui com a mente desperta,  e contudo pode falar assim, em verdade não compreendeu  plenamente as minhas palavras.

Quando eu procurei apresentar os requisitos da verdadeira “oração”,  com base na promessa de “procurar”, “pedir” e “bater”,  foi-me necessário  entrar nos detalhes, para que o leitor não duvidasse mais que a verdadeira “oração” é algo diferente da piedosa recitação de certas fórmulas de oração.

Assim instruído, o leitor com discernimento  rapidamente estará certo em si e saberá o que para ele próprio doravante  se segue.

Compreenderá que só lhe será possível “orar” verdadeiramente quando tiver ocorrido uma reorientação total do pensar,  sentir e agir, do modo a que estejam  preenchidas todas as pré-condições da real "oração" , antes mesmo que ele comece a “orar”.

Agora por causa dos  demasiado receosos, gostaria de salientar aqui  que apesar de ter descrito o que acontece na verdadeira “oração” ,  tudo isso manifesta-se por si mesmo, depois que a vida inteira foi modelada de tal modo que se está sempre pronto a orar. -

Aos que só podem conceber a oração como algo para pessoas abatidas e afligidas, devo dizer que em verdade uma vida pronta para a oração não precisa de renunciar a qualquer alegria nobre, e  pode francamente tornar-se garantida de contínua serenidade, uma constante  felicidade. - -

Quanto à necessidade de "desabafar o seu coração", sentida pelo ser que é levado tal, ela é apenas o sentir particularmente intenso da verdade que ele não é um ser totalmente isolado e reduzido só a ele  no espaço cósmico, - que apesar do seu isolamento cósmico e da fuga da vontade em relação ao Espírito, mantém-se ligado - mesmo que passivamente - à sua pátria original: o reino do Espírito puro e essencial, e que a ajuda que pode vir de lá, tem uma abrangência bem mais vasta que toda a ajuda provinda do mundo sensorial físico das coisas manifestadas espacialmente.

Ele engana-se somente na interpretação do seu sentimento, quando acredita  ser, como se o fosse, um interlocutor pessoal, sem um nível intermediário, face ao Ser Original eterno, e não erra menos quando considera como "oração" esta auto-confissão da sua aflição  diante testemunhas invisíveis, a qual é de facto uma confissão verdadeira, justa e santa…

Uma tal “confissão” cumpre uma necessidade inata da natureza humana e constitui uma obra libertadora da alma, duma importância inestimável na vida, de modo que todo ser humano terrestre, qualquer que seja,  de tempos a tempos deveria confessar-se assim diante dos “sacerdotes” verdadeiros invisíveis, de modo a tornar-se capaz de receber constantemente novas forças do mundo invisível.

Não se deve esperar que a alma seja invadida por uma aflição muito difícil, para recorrer-se a uma tal verdadeira “confissão”, que traz sempre em si mesma a sua eternamente válida “absolvição” .

Só depois duma tal “confissão”, e a consequente libertação da alma graças a ela obtida, se deve pedir, através duma verdadeira “oração”, o que uma pessoa pode “pedir”.

O homem que “ora” então da maneira certa, tal como deve pedir-se, - atingirá verdadeiramente um renovação espiritual, e esta renovação é  necessária sempre que a vida exterior entorpece insensibilizadoramente  os sensores da alma. -

A “renovação espiritual” não reside portanto num renovamento da centelha vital espiritual no ser humano, mas numa renovação da receptividade da alma para todos influxos que, emanando do Reino do Espírito puro, podem e querem atingi-la pelas “antenas” do   núcleo da sua essência espiritual. -»