Armando Martins Janeira, assim nomeado a partir da sua vivência nipónica, mas do seu natural transmontano Virgílio Armando Martins (Felgueiras,1914-1988), cedo se deliciou com a poesia, pois a sua mãe e avó foram professoras, da qual se veio a tornar um bom conhecedor não só da portuguesa como da universal, desenvolvendo ou escrevendo porém antes, a par do notável desempenho das suas importantes funções consulares e diplomáticas, peças de teatro e livros de ensaísmo e comparativismo, vindo a tornar-se depois um dos nossos melhores estudiosos e autores acerca do Japão e das relações históricas, culturais e religiosas luso-nipónicas.
Ora um dos seus primeiros mestres foi Luís de Camões, um ser orientalista e universalista, tal como ele próprio veio a ser, e se dezassete anos passou Camões na Índia e no Extremo Oriente, Armando Martins Janeira não ficou distante pois os onze anos passados em duas missões diplomáticas no Japão foram bastante intensos cultural e socialmente, como o próprio grande escritor Shusaku Endo reconheceu, ao referir-se à sua hospitalidade dialogante e ecuménica, no prefácio a uma das obras de Armando Martins Janeira.
O tributo ao pioneiro Luís Camões foi prestado cedo, pois em 1947, na sua primeira obra, sob o pseudónimo Mar Talegre, intitulada Camões, Bocage e Fernando Pessoa, mostra a sua estreita convivência com estes poetas, além de Antero de Quental por vezes referido.
Em 1971, voltará a Camões na Literatura Mundial, numa conferencia realizada em Tóquio, e trinta e dois anos depois, Camões foi de novo tema de uma conferência realizada em Londres, em 1979, e que se encontra online, - Meu Camões - Armando Martins Janeira, http://armandomartinsjaneira.net - onde confessa o seu amor e amizade: “Desde os meus tenros anos que Luís de Camões é meu camarada, meu mestre e meu amigo. Um Camões galante e indómito que me deslumbrou em rapaz; um Camões sereno e amargurado, cuja companhia na maturidade me conforta e ensina.”, e manifesta o seu conhecimento dos estudos biográficos camonianos e da sua multifacetada obra, destacando nela o Humanismo universalista, o equilíbrio entre o sentimento e a razão, a sua poderosa imaginação e força amorosa e mesmo erótica que perpassam nas Rimas, nos Lusíadas e na sua vida, destacando com pioneirismo, e em contraste com a maioria dos interpretes camonianos, este realçar do Eros carnal como fonte de exaltação heróica e de comunhão com o Cosmos Divino...
Este conhecimento é íntimo e foi adquirido prolongadamente, confessa: «Tive a sorte rara de ler Camões em vários países da Ásia. Li-o na gruta de Macau. Li-o no Japão de Mendes Pinto; recitei-mo baixinho perto do Eufrates e do Mecong; li-o na ilha de Moçambique, bela e serena, que para ele foi dura e falsa; li-o em vários lugares do mundo por onde ele deixou em pedaços a vida repartida. E li-o no mar, levantando de quando em vez os olhos pensativos sobre o mistério imenso das águas. E também o li no alto do Talegre transmontano, contemplando serranias de onde os maiores navegadores partiram, não podendo resistir ao apelo do mar, o que é mistério ainda maior.»
Ora no livro Camões, Bocage e Fernando Pessoa, um in-8º de 99
págs, impresso como dissemos em 1947, na saudosa tipografia do Conde Barão, em Lisboa, Armando Martins Janeira tece
considerações e apreciações bastante valiosas, por vezes bem
originais, embora uma, mais polémica, estimulou-me a questioná-la...
Nas
vinte e oito páginas da Introdução, escritas com bastante
originalidade e elevação, divididas em quatro sub-capítulos: Poesia que
“é a revelação do Desconhecido, do mundo nebuloso e mágico,
oculto sob a superfície da realidade certa”, “a mais rica e
mais completa expressão do Homem e do Mundo”; Essência da
Poesia, onde valoriza a busca do Mistério por todas as forças
racionais e irracionais, e considera linguagem poética a primeira em
que se “procurou exprimir a beleza”, sendo “a verdadeira poesia
a que apreende a essência das coisas e dos seres e a vibração da
sua eternidade”, talvez aqui revelando algo de Teixeira de
Pascoaes; Espírito da poesia portuguesa, onde valoriza
bastante Antero de Quental e a sua profundidade de pensamento e
visão, criticando o conde Keyserling que na Analyse Spectrale de
l'Europe (também criticada por Fernando Pessoa que anonimamente
o ouviu mesmo em alguma das suas duas conferências lisboetas) vira na nossa poesia apenas lirismo, herdado dos
provençais; e Europeidade, onde investiga com originalidade os
"princípios essenciais" ou as "linhas mestras" que lhe são fundamentais: «a sua natureza e validade ecuménica, que
contém uma força insita para expandir-se universalmente; o
predomínio do conhecimento e da exploração do mundo material sobre
a do mundo interior (o que nos separa da Ásia) mas dando no entanto a este um rico quinhão (o que nos distingue da América), a combinação harmoniosa da razão com o sentimento; um fundo moral comum que se alimenta do cristianismo, inconciliável com o pensamento filosófico e político e a moral científica que a Europa se criou; a sua incapacidade para actualizar essa base moral, de cujo atraso resulta um desespero metafísico doloroso, mas fecundo, desconhecido de outros continentes», e pensamos que Martins Janeira pensaria não só em Antero de Quental, mas também em vias negativas e existencialistas posteriores, e que desembocarão nos dias de hoje ainda em muito pseudo-esoterismo, fés cegas e ateísmos, mais ou menos cientistas...
Acrescentará porém outros traços marcantes, talvez algo idealizados: "a consciência duma essencial missão espiritual, desapegada de interesses terrenos; a contemplação lírica e sensual da natureza, aliada à impossibilidade de integrar-se nela, que leva às conquistas e à recriação do mundo pela ciência; um idealismo prosélito, activo e missionário, terrenal e nunca ingénuo, que iluminou os seus maiores santos, guerreiros e político; uma exaltação épica atrevida e inconsiderada que conduz à aventura pelo sabor dela, ao arrrojo sobre o que se mostra impossível, que foi o fogo dinamizador dos seus grandes feitos históricos e a tessitura das suas lendas; um aferro pagão à vida e simultaneamente um desprezo dela por um ideal (...)», concluindo que tal convergência de correntes, ideias e movimentos criou "uma comunidade de substância espiritual", "que tem a consciência duma missão universal, isto é, a fé em si própria de ser capaz de realizar os seus próprios destinos e os destinos do universo
pela sua inextinguível reserva de forças espirituais».
Resta saber como Armando modificaria este optimismo ocidental, face ao domínio que a civilização americana, criticada por ele, acabou por conseguir sobre a Europa, desfigurando-a muito, para além da existência de outros povos que têm também consciência das suas missões espirituais e sociais planetária, tal a China, a Rússia, o Irão e que estão a ressuscitar das opressões últimas a que tem sido sujeitos e a libertar vários povos da opressão do imperialismo norte-americano e de certo modo também ocidental e europeu. Veja-se ainda como a União Europeia tem estado submetida a ditames externos à sua missão de lucidez, independência, diálogo e justiça....
Em 2º, a Concepção Heróica
da grandeza Humana, o valor do
da dignidade do ser humano (como defendera Pico della Mirandola, na imagem dum fresco florentinono meio de Ficino e Poliziano), muito bem desenvolvido, afirmando por exemplo
que nos « Lusíadas o homem é exaltado até ao sumo da sua
humanidade. O espírito, movido pelo ideal e por um ardente
misticismo, que é, ainda, uma força do próprio espírito,
desenvolve forças poderosas e ilimitadas, capazes de dominar toda a
terra e de dominar mesmo a fraqueza da sua misérrima morada
corporal», citando alguns dos melhores versos, tais: «Por feitos
imortais e soberanos, … Divinos os fizeram, sendo humanos». Mas
não esquecerá os mais pequenos na sua obra e muito lucidamente
Armando Martins Janeira discerne já em Camões, e em sintonia com António Sérgio «um certo pensamento
a que hoje poderia chamar-se democrático», na sua crítica aos mais poderosos, ricos e arrogantes.
Em 3º, o Universalismo, já que Camões soube unir os valores medievais com os renascentistas, o que, graças à sua
experiência e conhecimento da natureza humana, tornam-no “um homem
universal, um desses seres extraordinário que se erguem à visão
vasta dos problemas essenciais e dos caminhos que conduzem a evolução
dum povo ou duma cultura», insistindo ainda que a gesta dos Descobrimentos «dá ao espírito europeu uma extensão ecuménica».
Todavia este universalismo, que Armando Martins Janeira reconhece naturalmente nos Descobrimentos aos portugueses, tem contudo, nomeadamente na tal
dimensão ecuménica, algumas limitações e máculas, sabidas e derivadas da mentalidade fanática ou inquisitorial e que Armando
Martins Janeira não considerou necessário mencionar neste seu estudo literário.
Ora, perante o ódio ao Islão, ao ismaelita, que vemos expresso nos Lusíadas, Armando Martins Janeira consegue compreender e aceitar tal ódio
como real e justificado, se bem que eu considere isso em Camões, um fiel do Amor, até
mais retórico e de sujeição à Igreja e à censura inquisitorial, e dá-nos as
seguintes indicações nessa sua linha de raciocínio: «o amor e o
ódio seriam os dois sentimentos mais fortes do ser humano, e é
dessa oposição entre os dois polos contrários, o amor e ódio, em
que a vibração do espírito camoniano é tão sincera e intensa,
que se «alimenta o seu misticismo – porque todo o misticismo é a
atingência do ponto máximo de amor, o qual mais sobressai e mais
alto sobe quanto mais fundo for o ódio, quer seja o ódio do pecado,
quer seja o ódio da fé inimiga.»
Pelo que a conclusão a que chega em seguida me parece menos curial: «Mas este ódio não estreita o seu humanismo, não diminui a sua larga simpatia humana, porque não é o ódio ao homem, é o ódio à fé alheia pela exaltação da irrompente força mística da própria fé.»
Ora parece-me que o ódio estreita o humanismo humano e diminui a sua larga simpatia humana, pois o ódio à fé alheia abrange os homens que a seguem, que a defendem ou que lutam mesmo por ela. Tanto mais que a «exaltação da irrompente força mística da própria fé» tanto acontece numa como noutra religião, e diga-se que essa força mística irrompente é algo primária e não matura ou elevada, já que misté, significa silencioso, ou seja os místicos eram os que conseguiam ver e sentir mais do espírito, do mundo espiritual e angélico e da Divindade, e calavam pela sua quase inefabilidade e para não deitarem pérolas aos que, não as compreendendo, as podiam menosprezar ou danificar.
Creio assim bem mais que Luís Camões não tinha ódio aos inimigos da fé, nem sequer teria ódio ao Islão em si, embora fosse obrigado a lutar feramente contra os inimigos de Portugal no Oriente, e desferisse alguns ataques, mais por palavras negativas, do que por argumentos, em relação ao Islâmicos, nos Lusíadas, já que eles eram os maiores inimigos dos portugueses, aos quais sucederam os Holandeses, protestantes.
O universalismo que Camões sentiu pelo seu contacto com povos e culturas e religiões diferentes só poderia nascer se o que o animava era curiosidade, abertura, simpatia, fraternidade e amor e, portanto, uma capacidade de diálogo em busca da verdade, tão patente por exemplo em Wenceslau de Moraes e em Armando Martins Janeira embaixador e amante do Japão, diálogo universalista que teve até na sua época quinhentista uma manifestação bem poderosa nos ditos inimigos islâmicos e exactamente na Índia: os encontros ecuménicos criados pelo clarividente imperador Akbar, em Fatehpur Sikri, na casa de Adoração, Ibadat khana, onde participaram desde 1575 padres católicos vindos de Goa (como vemos na miniatura), num ambiente ora fraterno ora acalorado, mas sem ódios, à parte um ou outro mais fanático, pois os verdadeiros místicos não deixam o sentimento de repulsão extrema e destrutiva, o ódio, instalar-se nas suas almas. Ou por exemplo, em 1893, no 1º Parlamento das Religiões, em Chicago, no qual tanto brilhou, no apelo da fraternidade e unidade da Religiões, Swami Vivekananda, o discípulo de Ramakrishna Parmahamsa...
Mas certamente cada um entenderá à sua maneira, o "santo ódio" referido por escrituras, teólogos e santos e que o próprio Jesus teria dito, ou fizeram-no dizer, nomeadamente que "viera trazer a espada". Agora para de que modo a usarmos, e se ela é a do discernimento ou a de aço, fica a questão...
Concluamos com algo da bela e instrutiva interpretação de Armando Martins Janeira da nossa tão fundacional, arquétipa e imortalizadora realização amorosa e divina alcançada por Vasco Gama e os seus heroicos companheiro, na utópica Ilha do Amores, canto IX, dos Lusíadas: «A Ilha divina não é só a recompensa eterna dos navegadores, é a sua iniciação na nova categoria humana que alcançaram pelos trabalhos excessivos - é a sua heroificação.
Por isso a Ilha estará sempre neles, nunca mais perderão a atmosfera divina, o toque divino nem a companhia divina a que se ascenderam, porque ao deixarem a Ilha:
Das Ninfas, que hão-de ter eternamente
Por mais tempo que o Sol o mundo aquente.»
Saibamos "percorrer o caminho da virtude alto e fragoso", até no cimo do alto monte contemplarmos, com a Deusa, Vasco da Gama, Camões, Armando Martins Janeira e outros seres luminosos, a ordem do Universo, o campo unificado de energia consciência, a música das esferas, o Sol Divino, e intensifiquemo-nos ecumenicamente, espiritualmente, universalmente, cosmicamente...
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