Todos os homens sabem, como eu, que a nossa vida não é o que deveria ser, e que nós nos tornamos mutuamente desventurados.
Sabemos que para sermos felizes e fazer felizes os outros, é preciso amarmos o próximo como a nós mesmos; e se nos é impossível fazer-lhe o que quereríamos que ele nos fizesse, pelo menos é possível não lhe fazer o que não quereríamos que nos fizessem...
É isto o que ensinam as religiões de todos os povos, e a razão e a consciência ordenam.
A morte do invólucro corporal, que a todo o instante nos ameaça, recorda-nos o carácter efémero de todos os nossos actos; de modo que a única coisa que podemos fazer e que pode conquistar-nos a felicidade e a serenidade é obedecer continuamente, eternamente, ao que nos determinam a razão e a consciência, se não cremos na revelação; ou no ensino de Cristo, se nele cremos.
Por outras palavras: se não podemos fazer ao próximo o que quereríamos que nos fizessem, pelo menos não façamos o que não desejamos para nós.
Posto que todos nós há muito tempo conhecemos esta verdade, os homens matam, roubam e violentam; de tal modo que em vez de viverem alegres, em tranquilidade e amor, sofrem, afligem-se e não vivenciam senão medo ou ódio uns pelos outros. Por toda a parte, na Terra, as pessoas procuram dissimular a sua vida insensata, e esquecer e abafar o seu sofrimento, sem poderem atingir tal resultado. Assim o número de pessoas que perdem a razão, e se suicidam, aumenta de ano para ano, porque está acima das suas forças suportar uma vida contrária à verdadeira vida humana...
Mas, dir-se-ia, talvez seja necessário a vida ser assim: - necessária a existência dos imperadores, dos reis ou presidentes, dos governos, dos parlamentos ou assembleias, que comandam milhões de soldados providos de espingardas e canhões, a todo o momento prontos para se atirarem um aos outros; - necessárias as fábricas e oficinas, que produzem objectos inúteis e perigosos, em que milhões de homens, mulheres e crianças são transformadas em máquinas, penando dez, doze ou quinze horas por dia; – necessária a despovoação crescente das aldeias e a acumulação progressiva das cidades com as suas tabernas, seus albergues nocturnos, seus asilos para crianças e seus hospitais; - necessária a prisão de centenas de milhares de homens. Talvez seja necessária que os casamentos diminuam cada vez mais, que a prostituição e os abortos aumentem de dia para dia, e que os homens se deem cada vez mais ao deboche.
Talvez seja necessário que a doutrina de Cristo, ensinando a concórdia, o perdão das ofensas, o amor do próximo e dos inimigos, seja inculcada aos homens por sacerdotes de seitas inumeráveis em lutas contínuas, e isto sob a forma de fábulas estúpidas e imorais, a respeito da criação do mundo e do homem, do seu castigo e da sua redenção por Cristo, e sobre tal ou tal rito, tal ou tal sacramento.
Talvez este estado de coisas seja natural ao homem, como próprio é as formigas e às abelhas viverem nos seus formigueiros e nos seus cortiços em lutas contínuas e sem outro ideal.
Talvez esta seja a lei dos homens, enquanto que o chamamento da razão e da consciência para uma outra vida afectiva e feliz não passará dum sonho, e que se não possa, enfim, imaginar e realizar tal como esta de hoje...
É assim, que falam certos opinativos...
Mas o coração humano não quer crer em tal: está sempre em revolta contra a mentira, e tem sempre, sempre, convidado os seres humanos a deixarem-se guiar pela razão e pela consciência. E em nossos dias
faz esse apelo com mais intensidade que nunca.
Não existimos durante séculos, durante milhares de anos, uma eternidade; mas, depois, eis-nos na Terra vivendo, pensando, amando e desfrutando da vida.
Ora nós podemos viver até aos setenta anos, - se, aliás, chegamos a essa idade, porque podemos não viver mais que alguns dias, algumas horas – em pesares e ódios, ou em alegrias e amor; podemos viver com a consciência de mal-fazer, ou de cumprir, imperfeitamente que seja, o que podemos julgar ser o nosso dever.
-«Tende mão em vós!... Fugi à tentação! » - bradava aos homens João Baptista,
-«Fugi à tentação! » - dizia a voz de Deus pela voz da consciência e da razão.
Antes de mais, detenhamo-nos a meio de cada uma das nossas ocupações, de cada um de nossos prazeres, e perguntemo-nos:- «Fazemos o que devemos, ou desbaratamos inutilmente a nossa vida, - esta vida que nos foi dado passar entre duas eternidade do nada?»
[Comentário: Esta afirmação de Tolstoi é algo dramática pois vemo-lo sem uma certeza de uma vida espiritual antes e depois da vida no corpo físico terrestre. Apesar de algumas vezes a ter admitido, ou mesmo a reencarnação, e ter-se dedicado à compilação de frases de sabedoria de muitos povos e tradições já no fim da sua vida, eis uma dramática confissão, que contudo ainda mais valoriza a sua luta constante por seguir a voz da consciência e da razão, sem outro motivo que o dever ser, embora a chegue a designar por Voz de Deus. Mas na sua luta contra os aspectos negativos da religião católica e ortodoxa acabou por não conseguir manter uma relação mística íntima com a Divindade. Antero de Quental, teve bastantes semelhanças com Lev Tolstoi, e assentou bastante a sua linha de conduta e de ética neste princípio do dever, do bem impessoal, embora algumas vezes tivesse afirmado a sua crença na imortalidade da alma e da vitória do amor sobre a morte, como alguns poemas finais retratam excelentemente, poucos para o que ele desejaria, como mais de uma vez afirmou, embora na sua adolescência tal fé e amor brilhasse mais pura e não diminuída.
Tolstoi está assim a tentar chamar as pessoas a uma conversão mas talvez sem as fundações necessárias, que seriam: há uma vida depois da morte, o que semeias colhes, viverás num corpo psico-espiritual e num plano que estará de acordo com o que foste, sentiste, fizeste, pensaste, acreditaste.]
Uns dizem-nos: - «Basta de reflexões! Actos é que se querem!
Outros afirmam: - «A gente não deve pensar em si, nos seus desejos, quando a obra ou missão ao serviço da qual nos achamos é a da nossa família, da arte, da ciência, do comércio, da sociedade, - tudo pelo interesse geral.»
Outros sustentam: - «Tudo foi pensado e ponderado há muito tempo. Ninguém achou melhor. Tratemos de nós, e acabou-se».
Outros, enfim, pretendem: - «Reflectir ou não reflectir, tudo é um. Vive-se, depois morre-se. O melhor é portanto viver gozando. Quando uma pessoa se põe a reflectir, chega à conclusão de que a vida é pior que a morte, e mata-se. Por conseguinte, tréguas às reflexões! Viva cada um como poder!»
[Comentário: Sabemos como houve e há pessoas que pensaram tal em relação Antero de Quental: de tanto matutar, de pouco rir e desfrutar, melancolizara-se e fragilizara-se, e de facto a falta de maior fogo do amor em si, e um progressivo isolamento e desilusão precipitaram-no no abandonar da missão terrestre.]
Não escutei estas vozes: a todo este arrazoado, respondei simplesmente:
«Atrás de mim vejo a a eternidade durante a qual eu não existia; adiante, sinto a mesma noite infinita em que morte a todo o instante me pode tragar. Actualmente vivo e posso, - sei que posso! - fechando voluntariamente os olhos, cair numa existência cheia de miséria, mas sei que abrindo-os para olhar à volta de mim, posso escolher a melhor e mais feliz existência. De modo que, digam o que disserem as vozes, quaisquer que sejam as seduções que nos atraiam, por muito tomado que eu esteja pela obra que tenho em mão, e agitado pela vida que me cerca, paro, examino e reflicto.»
Eis o que eu tinha a dizer aos meus semelhantes antes de regressar ao infinito.»
[Comentário: Assim escreveu Tolstoi no final da sua vida, quando deixava num testamento legal os direitos de muitas das suas obras ao povo russo, ou seja, dava-os à universalidade dos seres na gratuitidade do amor e da sabedoria. Não são contudo palavras de tão grande sabedoria face à morte, e constituem sobretudo um apelo a que, por preceitos religiosos, nomeadamente os de Jesus Cristo, ou por uma intuição da Razão cósmica, ou uma audição da voz da Consciência, saibamos agir em amor e vencermos a instintividade (as "tentações", para ele tão forte e culpabilizante no seu aspecto sexual), a superficialidade de vida, a possessividade, a violência, os hábitos e costumes sociais negativos que tanto controlam ainda a humanidade, em muitos casos explorados pelos governos, os grupos económico-ideológicos e os meios de informação e desinformação tão vendidos e manipulantes....
Prestes a deixar a Terra, Tolstoi não se afirma como um mestre espiritual conhecedor vivencialmente de que é um espírito imortal, ou que existe a vida depois da morte, ou uma justiça cósmica, antes simplesmente pede para que saibamos parar e meditar de quando em quando, a fim de discernirmos se estamos a caminhar na direcção certa e nos melhores modos, aqueles que tornam a existência dos seres e a nossa melhor, mais sábia, amorosa e feliz, mais em
harmonia com o querer Divindade...
Possam a Luz e o Amor divinos e a comunhão com os grande seres alimentarem a sua alma, possa o seu ser estar agora bem mais consciente e a vivenciar as luminosas dimensões espirituais e reais em que o amor e a não-violência que ele tanto quis, e em parte conseguiu, viver e transmitir, brilhem e possam reflectindo-se nele chegar até nós...
Imagens finais do túmulo verdejante de Tolstoi, na Iasnaia Poliana (Clareira dos Freixos), aonde o tolstoiano Jaime de Magalhães Lima, "discípulo" dilecto de Antero, foi em peregrinação dialogante, narrada no seu belo livrinho, Cidades e Paisagens, 1889, cf:. (teixeiradamota.blogspot.com/2015/01/jaime-de-magalhaes-lima-as-doutrinas-do.html), seguida de uma pintura dos mundos espirituais pelo mestre alemão Bô Yin Râ (1876-1943). Utilizamos para o texto a tradução de Francisco Barros Lobo, circa 1906, com pequenas correcções. O texto foi também gravado e comentado e pode ouvi-lo em: https://www.youtube.com/watch?v=MxAVZYVV9dQ&t=1s
Segue-se um vídeo do Imagine, de John Lenon, um mártir precoce, tal como Sócrates, Jesus, Ali, Sohrawardi, Dara Shikok, S. João de Brito, Mahatma Gandhi, Martin Luther King, Qassem Soleimani, Daria Dugina e tantos outros... Aum! Amor!
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