quarta-feira, 22 de setembro de 2021

Tolstoi, "O meu Testamento". Do livro "Últimas Palavras". E com vídeo. Comentado com ligações a Antero de Quental, nos seus 193 anos. Com o Imagine, de John Lennon.

                       

                  O  meu Testamento, de Lev Tolstoi.

«Não há tempo a perder. Quem andou, não tem mais para andar. Inútil é hesitar e reflectir mais tempo sobre o que tenho a dizer. A morte não espera. A minha existência vai já no declínio, e a cada instante se pode extinguir. Se ainda posso prestar algum serviço à humanidade, se posso fazer perdoar os meus pecados e a minha vida ociosa e sensual, é dizendo aos homens, meus irmãos, o que me foi dado compreender mais nitidamente que eles: - o que me tortura e oprime o coração há muitos anos.
Todos os homens sabem, como eu, que a nossa vida não é o que deveria ser, e que nós nos tornamos mutuamente desventurados.
Sabemos que para sermos felizes e fazer felizes os outros, é preciso amarmos o próximo como a nós mesmos; e se nos é impossível fazer-lhe o que quereríamos que ele nos fizesse, pelo menos é possível não lhe fazer o que não quereríamos que nos fizessem...
É isto o que ensinam as religiões de todos os povos, e a razão e a consciência ordenam.  
 
[Comentário: Lev ou Leão Tolstoi (1828-1910), tal como Antero de Quental (1842-1891), foram seres muitos abertos à voz da Consciência, ou da Razão universal, ou ainda do Espírito, que sentiam dentro de si com mais força até que os preceitos de religião, embora estes fossem fortes em Tolstoi, ou os ensinamentos morais. Foram pensadores da verdade e que sentiram que ela se deixava indiciar por uma pequena voz subtil e silenciosa da consciência, ou de uma Razão universal, absoluta, divina. No caso, esta até apenas a materialização do Amor, expresso lapidarmente, no seu estado potencial, o da não-violência: - “não faças aos outros o que não gostarias que te fizessem”, embora saibamos como temos também o dever de criticar ou de nos opor ao mal, à violência, ao ódio. Este testamento que lemos foi escrito como um testemunho sincero já no fim da sua vida do que ele desejava e pensava, acreditava e sabia...]]
 
A morte do invólucro corporal, que a todo o instante nos ameaça, recorda-nos o carácter efémero de todos os nossos actos; de modo que a única coisa que podemos fazer e que pode conquistar-nos a felicidade e a serenidade é obedecer continuamente, eternamente, ao que nos determinam a razão e a consciência, se não cremos na revelação; ou no ensino de Cristo, se nele cremos.
Por outras palavras: se não podemos fazer ao próximo o que quereríamos que nos fizessem, pelo menos não façamos o que não desejamos para nós.
Posto que todos nós há muito tempo conhecemos esta verdade, os homens matam, roubam e violentam; de tal modo que em vez de viverem alegres, em tranquilidade e amor, sofrem, afligem-se e não vivenciam senão medo ou ódio uns pelos outros. Por toda a parte, na Terra, as pessoas procuram dissimular a sua vida insensata, e esquecer e abafar o seu sofrimento, sem poderem atingir tal resultado. Assim o número de pessoas que perdem a razão, e se suicidam, aumenta de ano para ano, porque está acima das suas forças suportar uma vida contrária à verdadeira vida humana...
Mas, dir-se-ia, talvez seja necessário a vida ser assim: - necessária a existência dos imperadores, dos reis ou presidentes, dos governos, dos parlamentos ou assembleias, que comandam milhões de soldados providos de espingardas e canhões, a todo o momento prontos para se atirarem um aos outros; - necessárias as fábricas e oficinas, que produzem objectos inúteis e perigosos, em que milhões de homens, mulheres e crianças são transformadas em máquinas, penando dez, doze ou quinze horas por dia; – necessária a despovoação crescente das aldeias e a acumulação progressiva das cidades com as suas tabernas, seus albergues nocturnos, seus asilos para crianças e seus hospitais; - necessária a prisão de centenas de milhares de homens. Talvez seja necessária que os casamentos diminuam cada vez mais, que a prostituição e os abortos aumentem de dia para dia, e que os homens se deem cada vez mais ao deboche.
Talvez seja necessário que a doutrina de Cristo, ensinando a concórdia, o perdão das ofensas, o amor do próximo e dos inimigos, seja inculcada aos homens por sacerdotes de seitas inumeráveis em lutas contínuas, e isto sob a forma de fábulas estúpidas e imorais, a respeito da criação do mundo e do homem, do seu castigo e da sua redenção por Cristo, e sobre tal ou tal rito, tal ou tal sacramento.
Talvez este estado de coisas seja natural ao homem, como próprio é as formigas e às abelhas viverem nos seus formigueiros e nos seus cortiços em lutas contínuas e sem outro ideal.
Talvez esta seja a lei dos homens, enquanto que o chamamento da razão e da consciência para uma outra vida afectiva e feliz não passará dum sonho, e que se não possa, enfim, imaginar e realizar tal como esta de hoje...
É assim, que falam certos opinativos...
Mas o coração humano não quer crer em tal: está sempre em revolta contra a mentira, e tem sempre, sempre, convidado os seres humanos a deixarem-se guiar pela razão e pela consciência. E em nossos dias
faz esse apelo com mais intensidade que nunca.
Não existimos durante séculos, durante milhares de anos, uma eternidade; mas, depois, eis-nos na Terra vivendo, pensando, amando e desfrutando da vida.
Ora nós podemos viver até aos setenta anos, - se, aliás, chegamos a essa idade, porque podemos não viver mais que alguns dias, algumas horas – em pesares e ódios, ou em alegrias e amor; podemos viver com a consciência de mal-fazer, ou de cumprir, imperfeitamente que seja, o que podemos julgar ser o nosso dever.
-«Tende mão em vós!... Fugi à tentação! » - bradava aos homens João Baptista,
-«Fugi à tentação! » - dizia a voz de Deus pela voz da consciência e da razão.
Antes de mais, detenhamo-nos a meio de cada uma das nossas ocupações, de cada um de nossos prazeres, e perguntemo-nos:- «Fazemos o que devemos, ou desbaratamos inutilmente a nossa vida, - esta vida que nos foi dado passar entre duas eternidade do nada?»
 
[Comentário: Esta afirmação de Tolstoi é algo dramática pois vemo-lo sem uma certeza de uma vida espiritual antes e depois da vida no corpo físico terrestre. Apesar de algumas vezes a ter admitido, ou mesmo a reencarnação, e ter-se dedicado à compilação de frases de sabedoria de muitos povos e tradições já no fim da sua vida, eis uma dramática confissão, que contudo ainda mais valoriza a sua luta constante por seguir a voz da consciência e da razão, sem outro motivo que o dever ser, embora a chegue a designar por Voz de Deus. Mas na sua luta contra os aspectos negativos da religião católica e ortodoxa acabou por não conseguir manter uma relação mística íntima com a Divindade. Antero de Quental, teve bastantes semelhanças com Lev Tolstoi, e assentou bastante a sua linha de conduta e de ética neste princípio do dever, do bem impessoal, embora algumas vezes tivesse afirmado a sua crença na imortalidade da alma e da vitória do amor sobre a morte, como alguns poemas finais retratam excelentemente, poucos para o que ele desejaria, como mais de uma vez afirmou, embora na sua adolescência tal fé e amor brilhasse mais pura e não diminuída. 

Tolstoi está assim a tentar chamar as pessoas a uma conversão mas talvez sem as fundações necessárias, que seriam: há uma vida depois da morte, o que semeias colhes, viverás num corpo psico-espiritual e num plano que estará de acordo com o que foste, sentiste, fizeste, pensaste, acreditaste.]
 
Eu sei muito bem que, devido a incitamentos ou estímulos da sociedade, nos parece impossível parar para reflectir ou meditar alguns momentos.
Uns dizem-nos: - «Basta de reflexões! Actos é que se querem!
Outros afirmam: - «A gente não deve pensar em si, nos seus desejos, quando a obra ou missão ao serviço da qual nos achamos é a da nossa família, da arte, da ciência, do comércio, da sociedade, - tudo pelo interesse geral.»
Outros sustentam: - «Tudo foi pensado e ponderado há muito tempo. Ninguém achou melhor. Tratemos de nós, e acabou-se».
Outros, enfim, pretendem: - «Reflectir ou não reflectir, tudo é um. Vive-se, depois morre-se. O melhor é portanto viver gozando. Quando uma pessoa se põe a reflectir, chega à conclusão de que a vida é pior que a morte, e mata-se. Por conseguinte, tréguas às reflexões! Viva cada um como poder!»
 
[Comentário: Sabemos como houve e há pessoas que pensaram tal em relação Antero de Quental: de tanto matutar, de pouco rir e desfrutar, melancolizara-se e fragilizara-se, e de facto a falta de maior fogo do amor em si, e um progressivo isolamento e desilusão precipitaram-no no abandonar da missão terrestre.]
 
Não escutei estas vozes: a todo este arrazoado, respondei simplesmente:
«Atrás de mim vejo a a eternidade durante a qual eu não existia; adiante, sinto a mesma noite infinita em que morte a todo o instante me pode tragar. Actualmente vivo e posso, - sei que posso! - fechando voluntariamente os olhos, cair numa existência cheia de miséria, mas sei que abrindo-os para olhar à volta de mim, posso escolher a melhor e mais feliz existência. De modo que, digam o que disserem as vozes, quaisquer que sejam as seduções que nos atraiam, por muito tomado que eu esteja pela obra que tenho em mão, e agitado pela vida que me cerca, paro, examino e reflicto.»
Eis o que eu tinha a dizer aos meus semelhantes antes de regressar ao infinito.»

                                                  
[Comentário: Assim escreveu Tolstoi no final da sua vida, quando deixava num testamento legal os direitos de muitas das suas obras ao povo russo, ou seja, dava-os à universalidade dos seres na gratuitidade do amor e da sabedoria. Não são contudo palavras de tão grande sabedoria face à morte, e constituem sobretudo um apelo a que, por preceitos religiosos, nomeadamente os de Jesus Cristo, ou por uma intuição da Razão cósmica, ou uma audição da voz da Consciência, saibamos agir em amor e vencermos a instintividade (as "tentações", para ele tão forte e culpabilizante no seu aspecto sexual), a superficialidade de vida, a possessividade, a violência, os hábitos e costumes sociais negativos que tanto controlam ainda a humanidade, em muitos casos explorados pelos governos, os grupos económico-ideológicos e os meios de informação e desinformação tão vendidos e manipulantes....
Prestes a deixar a Terra, Tolstoi não se afirma como um mestre espiritual conhecedor vivencialmente de que é um espírito imortal, ou que existe a vida depois da morte, ou uma justiça cósmica, antes simplesmente pede para que saibamos parar e meditar de quando em quando, a fim de discernirmos se estamos a caminhar na direcção certa e nos melhores modos, aqueles que tornam a existência dos seres e a nossa melhor, mais sábia, amorosa e feliz, mais em 
harmonia com o querer Divindade...

Possam a Luz e o Amor divinos e a comunhão com os grande seres alimentarem a sua alma, possa o seu ser estar agora bem mais consciente e a vivenciar as luminosas dimensões espirituais e reais em que o amor e a não-violência que ele tanto quis, e em parte conseguiu, viver e transmitir, brilhem e possam reflectindo-se nele chegar até nós...

                        

 Imagens finais do túmulo verdejante de Tolstoi, na Iasnaia Poliana (Clareira dos Freixos), aonde o tolstoiano Jaime de Magalhães Lima, "discípulo" dilecto de Antero, foi em peregrinação dialogante, narrada no seu belo livrinho, Cidades e Paisagens, 1889, cf:. (teixeiradamota.blogspot.com/2015/01/jaime-de-magalhaes-lima-as-doutrinas-do.html), seguida de uma pintura dos mundos espirituais pelo mestre alemão Bô Yin Râ (1876-1943). Utilizamos para o texto a tradução de Francisco Barros Lobo, circa 1906, com pequenas correcções. O texto foi também gravado e comentado e pode ouvi-lo em:  https://www.youtube.com/watch?v=MxAVZYVV9dQ&t=1s

Segue-se um vídeo do Imagine, de John Lenon, um mártir precoce, tal  como Sócrates, Jesus, Ali, Sohrawardi, Dara Shikok, S. João de Brito, Mahatma Gandhi,  Martin Luther King, Qassem Soleimani, Daria Dugina e tantos outros... Aum! Amor!

                        

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