quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Manuel Duarte de Almeida e o seu contributo no " Antero de Quental In Memoriam", bem valorizado por José Bruno Carreiro.

                                           

Manuel Duarte de Almeida (1844-1914), foi um transmontano natural de Vila Real, estudante de Farmácia na Universidade de Coimbra, tal como o seu irmão Custódio, de Medicina, na época áurea de Antero de Quental e da sua geração, quando se abriram as portas à modernidade europeia em Portugal. Participou mesmo em Abril de 1864 na famosa saída dos estudantes liderados por Antero para o Porto, a Rolinada, em protesto contra o chefe do Governo José
Rolim de Moura, 1º duque de Loulé.
Após a formatura, embora tivesse exercido farmácia em Vila Real,
preferiu entrar na Administração dos Correios (tendo-se casado em 1880, com descendência) e depois (1902) na Direcção Geral de Instrução Pública, e dedicar-se à poesia, alguns dos seus poemas tendo tido grande sucesso e consagração, nomeadamente pelo seu conhecimento científico e amor a Portugal, e o  último deles, Vai Victoribus!  escrito contra o imperialismo inglês por ocasião do Ultimato de 1890, mereceu um forte elogio do seu amigo Antero de Quental, em carta do Porto, de 24-III-1890: «Recebi o teu admirável poema, que, esperando eu sempre muito de ti, excedeu ainda a minha expectativa. A tua linguagem simples, forte, intensa, é verdadeiramente clássica. 

Escrevo à pressa. Teu do Coração, Anthero de Quental» 

Ora o infatigável publicista José Bruno Carreiro, a propósito do último período de vida de Antero, transcreve na sua ainda hoje incontornável obra Antero de Quental, Subsídios para a sua Biografia, 1948, no 2º volume, páginas 227 e seguintes, parte do contributo de Manuel Duarte de Almeida no In Memoriam de Antero de Quental, considerando-o «tão importante que cada um dos seus pormenores deve ser fixado e retido, como contribuição de alto valor para o conhecimento do seu estado de espírito nessa época. Procurando encontrar o que poderia ter-lhe "armado o braço com que, deliberada e friamente, pôs termo à sua preciosa existência", o velho amigo de Antero começou por reconstituir o último período da sua vida"... E começa a transcrever algumas partes, com comentários interessantes, embora os primeiros parágrafos do contributo tenham sido omitidos, nos quais Manuel Duarte de Almeida defende o direito ao suicídio e traça uma breve síntese do carácter de Antero. Ora como escreveu com bastante conhecimento, já que era dois anos apenas mais novo do que Antero e foram amigos desde pelo menos  1863 até 1891, oiçamo-lo: 

«É preciso pôr, completamente, de parte a ideia de padecimentos físicos incomportáveis, que pelo desespero, levassem o Antero à trágica resolução, que tão inesperadamente pôs termo aos seus dias.
Tal hipótese é a meu ver, absolutamente insustentável - e só quem não conhecesse a rija tempera daquele carácter, um tanto desigual, é certo, mas heróico, mas dotado, em sumo grau, de todas as energias morais; só quem não soubesse do, relativamente, plácido e resignado viver do Antero nos últimos tempos é que a poderia admitir.
O Antero só era fundamental vulnerável aos sofrimentos do espírito, ao mal do pensamento, e creio bem que nunca o tormento físico, por mais cruel e dilacerante que fosse, lograria quebrantar-lhe a robustez de animo a ponto de o forçar a eximir-se-lhe por um acto de fraqueza. Não que eu capitule assim a solução do suicídio, em toda e qualquer hipótese que ele se produza. casos pode haver e há, com feito, em que o suicídio, longe de revelar pusilanimidade, de significar ausência de energia para arcar corajosamente com as dificuldades da existência ou para suportar o peso de amarguras e adversidades iníquas e inexplicáveis que nos couberam em partilha, é, pelo contrário, um acto de coragem serena e reflectida, uma prova autêntica de verdadeira grandeza moral. É escusado recordar exemplos históricos e por demais eloquentes, que sobejamente o comprovam e que a ninguém medianamente ilustrado é lícito desconhecer.»
Saltando estes quatro parágrafos e mais quatro, Bruno Carreiro começa a transcrever assim: "A derradeira fase da existência do Antero derivou pacífica e repousada. As grandes lutas morais e sobretudo intelectuais, que no seu espírito por vezes tão violentamente se debateram, haviam cedido o lugar a uma serenidade calma e filosófica, feita de decepções e amarguras, como é a sorte de nós todos, mas nem, por isso, menos sólida e resistente; a uma quase perfeita conformidade, em suma, com as condições humanas da existência, com as suas dores e as suas misérias, intransferíveis e inevitáveis, conformidade que era nele aureolada pelo divino reflexo da bondade moral que de si espargia e fortalecida pelo ascendente prestigioso que ele bem conhecia exercer no círculo restrito dos amigos que o admiravam e compreendiam... Os padecimentos físicos haviam acalmado. As insónias, aquelas pavorosas e memoráveis insónias, que tão horridamente o haviam torturado durante a época mais agitada da sua vida intelectual e que eram devidas, sem dúvida, ao trabalho incessante, trabalho profundo e exaustivo, do seu poderoso cérebro, no período de gestação e sistematização das suas ideias filosóficas, acabaram afinal por desaparecer completamente, permitindo-lhe um sono tranquilo e fisiologicamente reparador. [Nota: Luís de Magalhães, escrevendo para a Província em 25-IX-1891, confirma-o: «Há bons seis anos que o seu estado geral melhorara. A terrível excitação dos nervos acalmara; alimentava-se bem, ainda que uma só vez ao dia; e as tormentosas insónias, que tanto o haviam martirizado, só de longe em longe e excepcionalmente se repetiam»]. O apetite, e com ele o vigor físico – um certo vigor físico, é claro – voltou, como era natural. Dava passeios de légua, a pé, sem experimentar a menor fadiga, como por mais de uma vez me asseverou... Alimentava-se pouco e uma só vez por dia. Devo, todavia, acrescentar que esse pouco bastava à sua regular nutrição, como ele próprio o reconhecia, sendo certo que, desde muito, se habituara completamente a esse regime sóbrio e que possuía a inestimável felicidade de se dar bem com ele, sem que vez alguma sentisse a necessidade de o alterar». (pág. 228).

                            
Depois de afirmar mais de uma vez que Antero estava bem e satisfeito com o seu regime dietético, bem como com a construção filosófica a que chegara, Duarte de Almeida interroga-se quanto a ele necessitar de partir para os Açores e narra algumas das conversas que tiveram nas quais Antero confessou que «as suas queridas pupilas estavam senhoras feitas. Acabavam de sair do colégio; precisavam de entrar no mundo, de abandonar aquela monótona e arredada tebaida de Vila Conde». Depois havia a conveniência de uma casa grande: «O Antero não podia prescindir de casa espaçosa e ampla, com um vasto salão, pelo menos, onde pudesse isolar-se, em plena liberdade, passear de extremo a extremo, quando o seu espírito nervosamente exigia concentração criadora, a ausência de todo o ruído, o afastamento de toda a comunicação com o mundo exterior».
E por fim precisava de um ambientes sereno e livre da agitação lisboeta para «reduzir a sistema o conjunto de as suas ideias filosóficas, de as coordenar e fundir em corpo de doutrina, dando-lhe a forma arquitectural e técnica, a definitiva redacção, em suma (...) Para um tal empreendimento, Lisboa não lhe podia convir» pois «a intriga é enorme, trovejante, ensurdecedora (...) e nenhuma ideia convergente, nem sombra de pensamento patriótico - sincera e desinteressadamente patriótico - salvas raríssimas excepções, entre tantos alvitres opostos, tantos desalentados queixumes, tantas invectivas pessoais e miseráveis intrigas e inconscientes afirmações do mais impudente e desvairado egoísmo!»
São muito interessantes os sucessivos parágrafos em que Manuel Duarte de Almeida, amigo íntimo de Antero, reconstitui os diálogos tidos com Antero, com uma linguagem por vezes tão invulgarmente astral que ficamos siderados. Atente-se aos efeitos da "absurdeza e puerilidade das ideias emitidas pela vacuidade vertiginosa de uns cérebros", pois «em tais condições é impossível pensar. Toda a serenidade, de que o espírito necessita, esfarrapa, dissolve-se na bruma espessa, gelatinosa, desse meio asfixiante, dessa bisbilhotice mórbida, tão incorrigível, quanto insaciável, ficando-nos, de tudo, uma grande sensação de fadiga, de aborrecimento, de insuperável e apavorada repulsão.»
Quanto ao suicídio, considerando ser «difícil coisa, em verdade, averiguar e surpreender num espírito tão complexo e profundo ( e ao mesmo tempo tão cândido e cristalino!) as causas psicológicas, que poderiam determinar tão irreparável resolução põe a hipótese então de subitamente, num dos seus rompantes e assentes no seu sistema nervoso frágil, na sua "hereditariedade mórbida", considerando a imperfeição do seu trabalho ou escrito, que já o levara a rasgar o Programa de Trabalhos para as Gerações Novas, decidir partir da Terra, já que se desiludira da perfeição da sua filosofia. Não cremos contudo que seja esta explicação, pois não houvera descobertas que suscitassem tal derrocada de uma construção ainda hoje válida filosoficamente, embora certamente com outros conceitos, tais os da física quântica, a sustentarem-na, mas são valiosas as caracterizações que faz da demanda filosófico-espiritual de Antero, do seu sistema, muito ainda no séc. XIX, e certamente a sua espiritualidade ter-se-ia erguido mais fortemente senão se tivesse embrenhado tanto na filosofia alemã...
                                        
Mas oiçamos então a hipótese posta por Manuel Duarte de Almeida: «O sistema filosófico do Antero, a aliança íntima do espiritualismo e do materialismo, indissol
uvelmente fundidos num misticismo superior e transcendente, seria, na realidade, um sistema perfeito, impecável, absoluto, invulnerável e inacessível à acção e à influência progressiva das ciências físico-naturais, que na sua ininterrupta evolução têm feito ruir por terra as maiores produções do espírito humano, para as substituir por novas fórmulas e novas concepções, que, a seu turno, cederão o lugar a outras que melhor corresponderão e satisfaçam a um mais adiantado grau de civilização?
- O meu sistema é sólido, indefectível, dizia-me o Antero um dia, no quintalzinho das Águas Férreas [no Porto, na casa de Oliveira Martins], ao terminar uma saudosa e ameníssima palestra, em que, largamente, me expusera a súmula das suas ideias. E, tomado de crescente entusiasmo, prosseguiu: Como vês, assenta maciçamente no solo, sem precisar de escoras. Eleva-se por si, naturalmente; não carece do auxílio emprestado de estranhas teorias nem de vagas hipóteses ou postulados iniciais. O progresso das ciências físicas, seja qual for, há de fazer-se dentro do meu quadro e não virá senão confirmar, cada vez mais, a solidez indestructível da minha construção.
Tal era, com efeito, a sua convicção íntima no momento em que me falou. Mas o espírito do Antero era eminentemente progressivo e móbil, de uma plasticidade inigualável ou só igualada pela sua insaciável sede de saber. A dúvida, o monstro incoercível e informe, o lendário abutre do Prometeu, mordia-o, espicaçava-o, de contínuo, como sucede a todos os espíritos daquela envergadura e compleição. E se ele viesse a descobrir uma falha, uma fenda, por onde o seu grandioso sólido edifício? (...) Verificada essa impossibilidade, ou como tal julgado, de conseguir esse desideratum supremo, cessou toda a razão de existir. Avivarei este tópico essencial, que cumpre não esquecer: os combates de ideias foram sempre os que mais violenta e dilacerantemente se travaram na personalidade moral de Antero. Era do pensamento sobretudo que ele sofria, muito mais que do corpo ou ainda do coração.»
Discordamos da hipótese da desilusão filosófica, como já dissemos, pois as últimas conversas já nos Açores não a confirmam, e provavelmente Manuel Duarte de Almeida desconhecia os problemas de Antero com a irmã a propósito da guarda e educação das crianças, quanto a mim o factor decisivo do suicídio, tanto mais que se tinham tornado, tal como são mencionadas neste contributo, "mulheres feitas".
Como o preito da amizade profunda é expresso várias vezes neste contributo e com uma qualidade tão grande, concluiremos esta breve homenagem à amizade de Manuel Duarte de Almeida e Antero de Quental acrescentando, de outras partes do seu contributo para o imortal In-Memoriam de Antero de Quental, as que Duarte exprimiu no seus dois últimos parágrafos:
«Sim. Nestas breves e descoradas linhas, não procurei tracejar um Antero sobrenatural e fantástico, para ter o pretexto e o prazer de lhe acolchetar depois os factos e os comentários críticos, e bordar sobre essa criação da minha fantasia um tecido cintilante de imaginosas pedrarias, de tropos faiscantes, ou recamado de eruditas e autoritárias considerações.
Narrei singelamente factos: formulei conjecturas e induções; e se, de umas e de outras, não ressaltar, irrefragável, a evidência das conclusões alvejadas, destacar-se-á, pelo menos, espero eu, um pálido reflexo dessa imortal e radiosíssima figura - soberbo diamante preto, de incomparável e profundo fulgor, que nas letras portuguesas riscou tão inapagável e inconfundível traço - desse paladino idealista e intemerato sonhador, que, alfim, se partiu em demanda da sua fria noiva sepulcral, deixando nos corações dos que a amaram uma tão vívida saudade, uma tão indelével e espontânea e simpática veneração».
Foz do Douro, 24 de Janeiro, 1894. M. Duarte d'Almeida.

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Um poema espiritual, de Luz no Caminho, escrito ao som de "The fosse" - Wim Mertens, em 23.VIII.2021

Lisboa, 23.VIII.2021. Princípio da tarde, um poema espiritual. 


Cante a tua alma,

corajosamente,

contra ou acima de todas as oposições,

desferindo as setas que são orações,

a abrem as portas dos acontecimentos.


Mantém firme os teus objectivos maiores

a ligação ao espírito e a Deus,

o discernimento do que de subtil te rodeia

e a capacidade de apoiares o que vale.


Segue solitário, pois esse sempre foi a via

de quem quis subir à montanha divina,

embora possas encontrar almas afins

e cruzarem peitos e aspirações

na presença do Amor divino.


Liberta-te dos horizontalismos excessivos,

de tudo o que pouco podes modificar,

e consagra-te mais à realização interior

e partilha alegremente tal sobriedade

para que os antigos mestres encontrem em ti

ecos seus harmonizadores e inspiradores.

 

Nestes tempos de pestes e derrotas internacionais,

como não abrires mais os olhos e o coração

e saberes dialogar, apoiar e comungar

com os que à Verdade aspiram e se dão?


Um entre mil, dois num milhão,

que luta a da Humanidade mais luminosa

para se encontrar e saber comungar

a Verdade, a Justiça, o Amor e a Divindade.


Junto as mãos, cerro os olhos

À porta do peito bato e persisto

Até o resplendor do Amor

e do Ser Divino brilhar,

e nos encantar, alegrar e fortificar.


Tanta ignorância e egoísmo nas pessoas,

tanta opressão e sofrimento no mundo.

Quem consegue divertir-se ou dormir

quando tão grande é o clamor da dor?


Rasgo o meu peito corajosamente

que ele sangre de dor e aspiração,

e que saibamos derrotar a mentira

a opressão, e a insidiosa manipulação.


Circunsescrve agora a alma e avança.

Leva o fogo do amor lúcido acesso

e assume bem o teu corpo espiritual,

sintonizando aquelas luzes e estrelas

 dissipadoras da obscuridade e superficialidade

e que trazem o Graal do coração vivo,

prontas a reconhecerem-se na unidade Divina.

Fotografias no Gerês, Verão de 2021. Lux Dei!

                        

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Miguel Torga profetiza o admirável mundo novo actual, pela demissão das consciências, exactamente há 46 anos, em Albufeira.

                                               

Miguel Torga, na sua tão valiosa obra DIÁRIO, no vol. XII, publicado em 1975, escreveu uma entrada para o dia 18 de Agosto de 1975 (há 46 anos precisamente) com algo de profético na sua crítica e advertência quanto à manipulação das consciências, bastante demitidas, confundidas ou assustadas, por poderes e interesses mais ou menos perversos que controlam as máquinas dos Estados. Oiçamo-lo com um coração vivo e grato pela sua vida e demanda...

«Albufeira, 18 de Agosto de 1975 – Observo esta fauna drogada, hirsuta e piolhosa, que é hoje o pão nosso obrigatório em todos os meios cosmopolitas. Rapazes e raparigas, deitados à entrada do túnel que dá acesso à praia, ali estão de um lado e do outro, aos magotes, a  fazer e a vender bugigangas, a ensaiar a veia numa flauta, a coçar a guedelha, e a pedir esmola. A arremedar os chineses das gravatas e os cegos das romarias. Estranha juventude, que começa por impugnar a noção de singularidade individual – todos com as mesmas barbas, as mesmas cabeleiras, as mesmas gangas e os mesmos blusões, não se distinguem uns dos outros -, e acaba por estender a mão contestatária à caridade burguesa. Infinitamente mais capaz de se estender entre si do que a do meu tempo – no descampado dos valores é fácil a unanimidade -, feliz na sua preguiça e no seu desregramento, solar, de tropismos, sem dramas de nenhuma natureza, sentimental e sexualmente liberta, apenas motivada pelas mais estritas necessidades, longe de mim o propósito de a julgar. Mas inquieta-me pensar que o seu modo de vida, repartido entre a indiferença e o prazer, possa ser a prefiguração tosca de uma futura sociedade, certamente mais higiénica, embora igualmente abúlica e hedonista. Uma sociedade já não abandonada a si própria, como estes bandos de marginais, mas confiada à tutela providencial de um Estado oligárquico e esclarecido. É que os admiráveis mundos novos de amanhã, mais do que na perversão dos poderes, vão-se preparando na demissão das consciências.»

Há certamente alguma generalização excessiva da visão redutora da juventude contestatária de então, e por isso mesmo Torga se desculpa de parecer estar a criticá-la nessa descrição algo caricatural, mas de facto ele sente os perigos que se avizinham se não houver consciências que assumam a resistência às opressões dum sistema que se apresenta como uma nova ordem mundial, um admirável mundo novo, que assenta numa obediência abúlica das pessoas,  controladas e manipuladas para a sua sobrevivência minimamente hedonista e maximamente digitalizada, artificializada e medianizada, e garantida providencialmente por Estados oligárquicos, isto é, dependentes de grandes corporações, interesses, instituições e blocos, que não têm qualquer sensibilidade e visão de fraternidade e auto-sustentação mundial, antes se encontram em conflituosas opressões de vários povos menos alinhados com tal ordem financeira e ideológica e que internamente nada valorizam os direitos humanos e a dignidade e autonomia esclarecida da pessoa.

Sabemos como Miguel Torga nos últimos anos da sua vida (desencarna em 1995) foi bastante crítico dos desvios que se estavam a operar pelos governos e partidos em relação aos ideais democráticos, fraternos e libertadores que se abriram com o derrube da ditadura do Estado Novo. 

 O que diria ele nos nossos dias? Cremos que não se afastaria dessa linha, e certamente realçaria a necessidade de fortes valores afectivos, cognitivos e éticos e a competência responsável e independente marcarem as actuações sociais e públicas, numa ampla base de diálogo livre pela Verdade e o Bem Comum. Saibamos cumprir a nossa quota parte de discernimento e civismo, como ele tanto exemplificou...

segunda-feira, 16 de agosto de 2021

"A ORAÇÃO", de Bô Yin Râ. 2º cap. "Procurai e Achareis". Tradução de Pedro Teixeira da Mota.

                                 A ORAÇÃO, por Bô Yin Râ

                                          Tradução de Pedro Teixeira da Mota. Agosto 2021.

II. Capítulo:                            “PROCURAI E ENCONTRAREIS!”

«O procurar, tal como deve ser, quando se quer aprender a orar, é verdadeiramente tudo menos um cismar no entendimento!

Já a promessa que o que procura – com toda a certeza - "encontrará", mostra fortemente numa simplicidade lapidar que se trata de algo diferente duma “Procura interior” como se entende correntemente, pois a maior parte das vezes isto não é mais do que remexer e querer sentir dentro do entendimento humano, se houver sorte, mas sem nenhuma certeza de encontrar, como é firmemente prometido.

“Procurar”, tal como se procura normalmente dentro de si algo, é sempre expressão duma inquietação interior, - e qualquer que seja o objecto da procura: - tal busca é desenvolvida para se alcançar a quietude.

Alguns talvez possam pensar que a outra “procura”, de qual se diz que certamente “encontrará” deve ter igualmente como causa  uma inquietude que deseja tornar-se quietude?

Ora a “procura” necessária à  “oração” certa assenta nessa grande quietude: - aquela quietude interior que se enraíza  em si mesma e que não é mais influenciada pelo exterior.

Este modo de procura exige sempre o ser humano inteiro, e não somente o seu entendimento como um cão de busca inquieto sempre a esgaravatar.

É uma imersão serena no mais íntimo da alma – sem qualquer agitação, - sem nenhuma ambição - e sem impaciência inquieta.

Seria uma terrível tolice pretender-se que através de uma ardente e tempestuosa vontade forçada fosse atingido mais cedo o que se procura.

Assim uma pessoa só se engana a si própria, até que por fim, cansada e desapontada, renuncia a qualquer procura, quase antes do começo.

Pelo contrário quem procura deve  saber que só  tem a si próprio como obstáculo no caminho, se não procurar como alguém que tem a certeza de encontrar, - como o faria  quem soubesse que um objecto está num certo local e que tem de ser necessariamente encontrado, quando tudo o que tapava for retirado.

As pessoas não devem basear tal certeza apenas na promessa de que quem procura “encontra”!

Aqui a procura em si inclui logo necessariamente o encontrar-se, pois não se pode procurar sem que se siga igualmente o encontrar-se.

Neste tipo de «procura» o procurador é ele próprio o objecto de sua procura.

Contudo, quanto menos ele ansiar por si mesmo, tanto mais cedo se encontrará a si próprio!

Não deve fazer imagem ou representação do que espera encontrar!

Deve deixar-se afundar na sua própria profundeza sem fundo – sem medo e sem resistência!

Deve mergulhar a pique em si mesmo, e não deve sair da quietude, mesmo se os seus pés perderem o apoio habitual!

Com confiança deve deixar-se conduzir até ao seu fundo mais fundo, plenamente confiante que não está num caminho de aniquilação, mas que só se pode encontrar a si próprio !

Nenhum trabalho prévio de imaginação deverá turvar a sua visão!

Não deve esperar ver interna ou externamente “imagens”, como que nunca tivesse visto: - visões doutros seres e de mundos ocultos!

Não deve esperar manifestações do mundo dos Espíritos!

Mergulhando nas suas profundezas, verá ao princípio à sua volta tudo às escuras, mas quanto mais descer profundamente, mais as trevas retrocederão face a uma nova luz maravilhosa até que, na sua profundeza mais funda, se descobrirá a si próprio atravessado de luz - até  no fundo do seu próprio abismo, se tornar a si próprio claridade cristalina.

A sua imersão constituirá assim um constante descobrimento desde o primeiro instante, até que por fim tenha encontrado em si o que não pode ser dito mas apenas o que se deixa sentir, porque mesmo a palavra mais resplandecente permanece obscura diante de tal claridade interior duma luminosidade indescritível…

Quem quer procurar desta maneira, a fim de encontrar, deve desde o princípio deixar o seu corpo chegar a uma  paz completa, de modo a não estar mais consciente de que um corpo animal "carrega" a sua consciência.

Depois quem procura deve  fechar lentamente os olhos e juntar as mãos, até sentir-se, percorrido por uma corrente muito viva de energia numa quietude profunda.

Como melhor atingir este estado de animada e intensa quietude, cada um descobrirá por si mesmo...

Um só aí chega em posição deitada, outro sentado ou de joelhos, e ainda outro só aí chegará, mantendo-se de pé.

Mas uma vez que se tenha chegado a este estado de quietude cheio de vida, não deve preocupar-se mais com a posição exterior do corpo.

Agora deve-se aspirar a sentir-se unicamente no interior de si.

Depois de algum tempo, uma pessoa sente-se cada vez mais no interior de si mesmo, até  gradualmente uma sensação encontrar entrada na consciência, tal como uma pessoa se sente  completamente cheia si próprio no seu interior.

É como se fossemos um fluído – o corpo porém um recipiente – e como se o fluído se sentisse cada vez mais distintamente a si próprio como o conteúdo do recipiente.

Os pensamentos devem então aquietar-se e não devem ser autorizados a qualquer tipo de interpretação tagarela do que é sentido.

Se os pensamentos ainda andam à volta, não se lhes deve dar mais atenção, até gradualmente se acalmarem por si próprios.

Mas se esta sensação de si próprio no seu interior se tornou um todo bem fechado, então os pensamentos não se repetem mais, porque a nova consciência de si próprio absorve toda a atenção.

Ao princípio será bom uma pessoa contentar-se por sentir-se no interior de si própria, pois isto é um resultado já certamente muito significativo.

Uma pessoa deve voltar à sua tarefa quotidiana com alegria, logo que que esta sensação começa a enfraquecer.

Nunca se deve manter forçadamente esta sensação quando, por exemplo, se está  cansado.

Se pouco a pouco, - sejam necessárias semanas ou meses - quem procura chegar, em qualquer momento e sem esforço particular, na quietude dum isolamento voluntário, a sentir-se e a vivenciar-se a si próprio, na maneira já descrita como o interior do seu corpo terrestre – configurado como este, tal como um fluído abraça os contornos do vaso no qual é derramado, então a pessoa está dignamente preparada para começar a “procurar” no sentido do verdadeiro “orar”...

Agora a pessoa na demanda, por um querer sentido claramente, deve entregar-se completamente nas mãos da sua vida mais íntima  e deixar-se mergulhar até ao sem fundo desta vida pressentida, - mantendo-se sempre claramente consciente e sem jamais se entregar, mesmo que um piscar de olhos, ao sonhar meio-desperto! -

Se emergem formas e imagens no interior de si, não se lhes deve dispensar qualquer atenção e sobretudo uma pessoa deve-se guardar de querer de algum modo interpretá-las!

Ainda  pior tolice seria combatê-las, pois de tal modo só se as tornam mais fortes e seguras.

Se uma pessoa não consegue desfazer-se delas ignorando-as, é necessário na circunstância e no momento considerado, interromper a imersão interior e entregar-se a uma actividade intensa no mundo exterior até que, num outro dia, se sinta de novo capaz de completar o que começara, sem interrupção.

Só quando a sensação de mergulho na sua própria profundeza interior se tornar completamente isenta de imagens é que uma pessoa deve entregar-se sem reservas.

A indizível escuridão, que tende ao princípio assustar a alma deve ser suportada com calma e sobretudo sem medo algum, mesmo quando seja necessário suportá-la várias vezes antes de o primeiro brilho luminoso se deixar sentir no seu mais íntimo.

Mas desde que a obscuridade se começa a aclarar, desenvolve-se também mais e mais um novo estado interior de consciência, dum tipo de que nunca antes se estivera consciente.

Então este novo estado de consciência torna-se mais e mais claro até que por fim mostra  a unidade indissolúvel da vontade do que procura com a vontade do Ser Primordial eterno...

Quem chegou a este nível sabe pela sua própria experiência, o que significa «encontrar», e  a primeira condição da verdadeira “oração” foi vivenciada por ele.

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Quando ele agora pronunciar as admiráveis palavras tão simples e tão claras de sentido, que o elevado Mestre da Nazaré transmitiu aos seus discípulos para “orarem”, sente, no novo estado de consciência atingido, que cada uma das suas palavras é só uma confirmação da sua própria vontade. -

 Toda a oração dominical torna-se para quem procura nada mais do que o reconhecimento perfeito da sua própria identificação indissolúvel com a vontade do Ser Eterno…

O que é vivenciado interiormente encontra nesta oração a expressão verbal na linguagem humana, e actua através dela em retorno sobre alma,  tornando-se por si mesma num «pedir» que traz consigo mesmo a sua satisfação.

Assim quem procura é desde então libertado da tola ilusão, de que a oração seria um meio de «modificar a mente» da Divindade...

 Ele sabe agora, que orar consiste simplesmente em: querer, em comunhão com a vontade do Ser Original, o que é querido de toda a eternidade a fim de que, posta em acção através da correcto modo de «pedir» possa agora manifestar-se, realizar-se e afirmar-se. - -

A sua procura tornou-se verdadeiramente “encontrar”.

Ele não pode, em toda a eternidade, nunca mais perder o que encontrou assim em si mesmo! ---»

domingo, 15 de agosto de 2021

A derrota norte-americana no Afeganistão, com a queda e fuga de Cabul, será o começo de uma nova Era? Ou transferiram-se para a Ucrânia?

                                       

 A reconquista de Cabul, a capital do Afeganistão, pelos Talibans, ocorrida hoje 15 de Agosto de 2021, marca o começo acelerado do fim do imperialismo norte-americano, ou é apenas, mais do que a evidente derrota, uma retirada de um terreno bem difícil e pouco rentável? Oremos para que seja sobretudo o começo do ruir de um castelo de cartas, ou de infinitas notas de dólar sem provisão, para que uma Humanidade una, justa, livre e solidária se afirme mais...

A rapidez e a facilidade com que aconteceu esta queda do bastião do invasor norte-americano, apoiado na sua ajudanta NATO, e desapoiado pelo exército Afegão, surpreendeu bastantes analistas e sobretudo (aparentemente pelo menos) os mais ricos e apetrechados do mundo, os do Pentágono, que dois dias antes apenas previam cerca de um mês pelo menos antes de que eles conseguissem chegar a Cabul, o que só demonstra a incompetência e a arrogância que reinam nesses níveis políticos e militares considerados o máximo, e dos quais a eleição pelos democratas do já senil Joseph Biden para presidente da USA é um sinal e que só vem comprovar mais uma vez o provérbio popular que um chefe fraco enfraquece o seu povo, ou a sua máquina de guerra....

Na realidade, os Talibans (os estudantes) que governaram de 1996 a 2001, e só reconhecidos pelo Paquistão, Arábia saudita e Emiratos Árabes Unidos) apesar de alguns aspectos fanáticos e extremistas, estão muito mais próximos do povo Afeganistão (que conheci nas minhas duas viagens por terra para a Índia) do que os políticos e militares que foram apoiados pelos invasores norte-americanos e que agora  fugiram para os países limítrofes. Logo, contra o que  esperava e avisava o ingénuo ou tolo do secretário geral das Nações Unidas, não terá que haver grandes negociações pois não há quase   concorrência e, à parte a necessária representação dos vários grupos étnicos, o governo será  fundamentalmente o dos Talibans e o dum Estado ou Emirato Islâmico, com alguns aspectos muito duros ou medievais para a visão ocidental moderna (nomeadamente o tratamento machista das mulheres), mas que são aceites por muitos islâmicos naturalmente, embora os vinte anos de injecção monetária, ocidentalização e modernidade devam exercer agora alguma influência moderadora. 

De facto, não foram nem serão os norte-americanos ou outros coligados os que conseguirão ajudar a evolução económica e das mentalidades e costumes, ao terem manifestado insuficiente  tacto e capacidade dialogante, amor e sabedoria. 

Quem serão os novos parceiros dos Afegão, e provavelmente já não em missão de guerra mas de economia e bem estar, não sabemos ainda, mas possivelmente a China, Paquistão, Irão, três vizinhos importantes e, claro, a sempre fanatizante e exportadora de terrorismo, pela sua ideologia wahhabi, Arábia Saudita, restando saber se nos pacotes de ajuda desta haverá permissividade para Isis ou Al Qaeda e estímulo aos ataques aos Shiia...

                                          

O mais valioso, de tudo isto, a par do mais trágico que foram os milhares e milhares de mortos, feridos e traumatizados, civis e militares, será a possibilidade de os norte-americanos reconhecerem que o seu imperialismo tem os dias contados e que deveriam passar a gastar os triliões e triliões de dólares (que não lhes custa nada pois imprimem os dólares que querem),  dados aos investidores da industria dos armamentos em actividades mais pacíficas e benéficas para a humanidade. Esta sim, seria a grande lição frutuosa da derrota estrondosa do exército mais rico e apetrechado do mundo, perante uns guerrilheiros e estudantes quase pés descalços.

 O segundo fruto para o qual todos oramos é que os USA, e o seu braço direito a Nato,  terminem a sua ganância no Oriente e abandonem rapidamente o Iraque, e a Síria, onde estão a roubar óleo e trigo que tanta falta fazem aos milhões de sírios, residentes ou refugiados. Um escândalo este gangsterismo que está a ocorrer no norte da Síria, com a desculpa de estarem a lutar contra o ISIL que criaram e utilizam, e os Curdos, e porque estão fanaticamente contra Bashar Hafiz al-Assad, o legítimo presidente sírio.

                                            

                                                    

Com uma retirada pessimamente mal preparada, com erros trágicos como o abandono de certos aeroportos e quartéis, fiados ilusoriamente na lentidão do progresso do Talibans, com afirmações completamente tolas das chefias norte-americanas e da Nato, quando a quererem exigir negociações com os Talibans ou a prometerem continuar a operar em Kabul, horas antes de os estudantes guerrilheiros terem tomado conta de todo o país à excepção do aeroporto, por onde se devem estar a passar certamente momentos muito emotivos e trágicos até, pois nem todos conseguirão sair do país -, espera-se, finalmente,  que esta humilhação, tenha efeitos moderadores nos ímpetos guerreiros com que volta e meia norte-americanos, Nato e União Europeia investem contra alguns países, tais como Rússia, China, Irão, Síria, Somália, Coreia do Norte, Cuba e Venezuela, países não alinhados com o plutocracismo destrutivo que rege o Ocidente, a Arábia Saudita, Israel e mais alguns países e governos vendidos. 

Possam então os mesquinhos bloqueios e provocações e conflitos norte-americanos findar gradualmente. Que aprendam com esta lição no Afeganistão, que só trouxe mortes e sofrimentos. Que a Nato e os Estados Unidos da América comecem a metamorfosear os seus investimentos belicosos e destrutivos em energias de prosperidade, cura e cultura, dando início a uma nova Era, como a pintura final de Bô Yin Râ prefigura, de prosperidade, justiça, solidariedade, amor e espiritualidade sã....

Ps. Hoje 28.12.2022 acrescentemos uma intuição que já há algumas semanas perpassa: USA saiu do Afeganistão porque sabia que a guerra da Ucrânia estava a preparar-se,  porque os Talibans em luta com os do ISIL teriam bastantes problemas que se estenderiam aos países vizinhos e porque retiveram em si muito dinheiro do próprio governo do Afeganistão, o qual anda há meses a reclamá-lo...

quinta-feira, 12 de agosto de 2021

"A Criação do Mundo", uma obra notável, de Miguel Torga, fabulosa mesmo.

A Criação do Mundo, de Miguel Torga, é uma obra cujo título é enganador: pensamos que se trata de alguma cosmogonia e vamos encontrar a sua biografia, desde criança até à prisão pela Pide e a detenção no Aljube, para depois casar e estabilizar em Coimbra, com muitas aventuras, descrições e histórias fabulosas, sempre acompanhadas pela sua auto-consciência lúcida e escalpelizante, face às constantes opressões e desilusões que o vão obrigar a evoluir e a crescer num sentido de independência solitária mas solidária, livre pensadora mas telúrica.

É uma obra entusiasmante, e mesmo empolgante, tantas foram as dificuldades que ele teve de cruzar e vencer, tanto o momento genial de vivência e descrição e, embora os Cinco Dias da Criação do Mundo  se desenrolem em cinco volumes, com cerca de 1000 páginas, lê-se rapidamente. E recomenda-se bem...

Junto com os doze volumes do Diário constituem uma autobiografia verdadeira, corajosa, esforçada, bem narrada e com vivências tão fabulosas que nos interrogamos como é que o Prémio Nobel nunca lhe foi dado, e tem sido dado a outros muito menos valiosos que Miguel Torga, aliás Adolfo Rocha, um médico transmontano, nascido (12-VIII-1907) em família humilde de lavrador e singrando por si mesmo até se tornar uma das vozes mais genuínas e lúcidas do Portugal profundo, trabalhador e lutador, justo e livre.

Se quisermos apresentar muito brevemente a obra, pois a sua leitura é recomendável a todo o português que ama ainda a sua terra, o seu povo e os seus valores potenciais, resumiríamos assim:

O Primeiro Dia, no 1º volume da Criação do Mundo, dado à luz discretamente em 1937, narra o seu ambiente natal, a família, a aldeia e os seus habitantes, os trabalhos agrícolas, os costumes e vida religiosa, a escola primária e as peripécias extraordinárias que levam o professor da instrução primária, o sr. Botelho, concluída com distinção, a pedir ao pai embevecido que permita ao jovenzinho Adolfo continuar a estudar, ao que ele anui sabiamente, mas como não havia dinheiro para custear o liceu em Vila Real, ei-lo enviado como criado de servir para o Porto, a quinze tostões por mês, onde vive cerca de um ano, enfrenta as primeiras falsas acusações, opressões e perseguições, mas sempre a ler, a aprender e a conhecer o Porto, até ser despedido pela sua independência ou rebeldia, voltando à aldeia, que o recebe algo trocistamente...

Depois, por ideia do prior da aldeia, vai para o seminário de Lamego, onde se "agarrou ao estudo com unhas e dentes", concluindo o ano bem e tendo as suas férias na aldeia natal, Agarez (S. Martinho de Anta), onde começa a despertar a energia sexual e a atracção por uma amiga, a frequentar a taberna e algumas casas mais ricas, e a sentir que já não acreditava nas litânias que todos repetiam: em verdade "perdera a fé". Dirá então ao Pai no fim das férias que já não queria voltar ao seminário, pelo que decidem enviá-lo para o Brasil, o El Dorado para muitos portugueses de então, tal Ferreira de Castro...

O Segundo Dia, ocupando as restantes 100 páginas do 1º volume da Criação do Mundo, narra os labores, vivências e aventuras na enorme fazenda de Santa Cruz, em Minas Gerais, de um dinâmico tio, onde o jovem Torga passará cerca de cinco anos, como "moiro de trabalho" e seu braço direito, embora muito perseguido pela mulher dele. No último ano pode frequentar ainda o Ginásio de Leopoldina, onde cria amizades, se destaca e ensaia os primeiros versos. Uma tarimba, ou mesmo uma iniciação (nomeadamente no amor), fabulosa para toda a sua vida...

O Terceiro Dia e 2º volume da Criação do Mundo narra o regresso a Portugal, o reencontro com os pais e a aldeia, a difícil inserção do tio e da mulher na aldeia, a entrada no colégio interno de S. António, em Coimbra, com os melhores autores portugueses à sua disposição na biblioteca e um casal de professores estimulante, os bons resultados em pouco tempo de estudo, o regresso do tio e sua "querida" mulher ao Brasil (que alívio..), a conclusão do liceu, a opção difícil pela Medicina e a entrada e formatura na Universidade de Coimbra, e a prática de clínica geral na sua zona natal, com um empregada namorada local, uma doença grave que o levou a ser operado, e a recuperação lenta...

O Quarto Dia, e 3º volume de A Criação do Mundo, narra uma viagem à Europa de automóvel com dois companheiros de circunstância e algo atemorizados com a resistência de Torga a saudações fascizantes, com as passagem mais detalhadas pela Espanha de Franco, Itália de Mussolini e a Paris dos portugueses exilados, e com peripécias muito curiosas.

O Quinto Dia e 4º volume de A Criação do Mundo , mostra-nos a sua reeinserção nos ambientes portugueses, a escolha de ser otorrinolaringologista e em Leiria, o meio pequeno e simpático dos intelectuais que conhece, os seus livros de poemas a serem publicados e os pouco amigos que os discutiam e apreciavam, e finalmente a prisão pela Pide e a sua detenção por uns meses no Aljube, com histórias muito emocionantes passando-se até à sua libertação por fim. Este volume foi já publicado após a revolução do 25 de Abril e pode narrar a prisão pela Pide e as suas críticas à opressão salazarista. 

Publicou-se finalmente em 1981, o Sexto Dia, e quinto volume, da Criação do Mundo, no qual coroa e reflecte  sua vida valiosa e lutadora, plena de causas e ideais assumidos e manifestados. Há menos cenas altamente emotivas nesta fase final da sua vida mas ainda assim destacam-se os sentimentos e reflexões sobre os efeitos da morte dos pais, a desilusão da democracia portuguesa, a amargura pelas invejas e rivalidades literárias, a apreciação do universalismo fraterno que os portugueses conseguiram manifestar no Brasil, em Cabo Verde e na ilha de Moçambique, como constata in loco.  sentindo fortemente a ligação profunda com os compatriotas simples e muitos até transmontanos, emigrados no Brasil. 

Neste O Sexto Dia Miguel Torga partilha então cronologicamente o regresso e tentativa de readaptação, com algumas desilusões, a Leiria e aos amigos, a sua lenta recuperação de doentes ou clientes no consultório, o aparecimento e o casamento com a sua mulher Andrée Crabbé , as aprendizagens últimas com os pais, a escolha de Coimbra como local ideal para a sua missão curativa e de bisturi, os passeios por Portugal e a recolha de histórias de animais para o que se tornará os Bichos, a continuação da opressão ou mesmo ódio salazarista e da Pide, nomeadamente em relação aos seus postos médicos e livros, as caçadas que lhe permitiam sensorialmente um regresso ao paraíso original, os projectos de revistas que falharam rapidamente, a doença e a morte da mãe "aquela alma irmã que durante largos anos fora ali a encarnação viva da cordialidade e da alegria", os mistérios das doenças e e das curas, sempre tão dependentes dos doentes em si,  a viagem com a mulher ao Brasil, onde tem "com milhares de patrícios em todas as associações lusas a fraterna comunhão que sonhara", a revisitação dos locais e pessoas que lá conhecera há trinta anos e a metamorfose das ideias com que ficara, o consultório coimbrão tornado cenáculo contestatário ("centro de cavaqueira e conspiração") e espiado pela Pide, a morte impactante do Pai e mestre, a modernização da casa feita pela mulher, a morte de Salazar, a viajem algo desilusiva à África portuguesa, embora com o deslumbramento da ilha de Moçambique, a morte dos amigos, o 25 de Abril, as esperanças e uma certa desilusão posterior e, finalmente as auto-observações ou consciencializações últimas onde reafirma  a sua essência de livre pensador e escritor: pois  "lutara sempre por universal de valores fraternos, por uma ordem social onde a liberdade fosse a lei das leis e a arte o credo dos credos".

Miguel Torga  deixou a Terra, física mas não espiritual, em 17 de Janeiro de 1995, a sua mulher seguindo-o no mesmo ano. Que eles avancem luminosamente no Cosmos, com a Divindade cada vez mais brilhando neles, e nos inspirem sabiamente.

                           

As reflexões ao longo de todos os volumes são muito valiosas, e transcreveremos apenas algumas deste 4º  volume, escritas na prisão, uma experiência sempre importante na vida de alguém, como vamos ver:

«A receber a luz do dia por um postigo cego, impossibilitado de ler e de escrever, sepultado vivo, passava horas sentado no catre regelado, a meditar. Os atropelos que a avidez do mando era capaz de fazer em nome da ordem, da civilização cristã, dos valores morais, da pátria e de quejandas altisonâncias.

O mesmo ser, que no decurso dos séculos e à custa de tantos sacrifícios e coragem conseguira erguer-se do rés da natureza aos degraus de uma dignidade quase divina, não tinha pejo, sempre que lhe convinha, de tentar reduzir o semelhante à simples animalidade do começo. Enjaulado como uma fera, privado dos mais elementares meios de higiene, a ouvir e a cheirar os próprios rumores e odores, sem voz, sem direitos, sem acção, condenado a uma existência meramente vegetativa, funcional, de alambique, a comida a entrar e a sair, o sono e a vigília a alternar na repetição pendular do mesmo absurdo. Um suíno no chiqueiro tinha mais regalias do que ali um filho de Deus: o tratador que vinha espreitá-lo ou nutri-lo, falava-lhe, ao menos.»...

E seguem-se outras páginas bem valiosas de auto-avaliação e de forte questionamento da injustiça erguida a sistema, com uma consciência do corpo espiritual da humanidade, acentuada ainda quando lê nas paredes os nomes dos presos antigos e reflecte acerca da sua capacidade de resistência:

«Por enquanto, não sentia o ânimo desfalecido. Pelo contrário. O osso ia ser duro de roer, mas estava decidido a rilhá-lo corajosamente, como outros o tinham feito antes de mim, porventura com mais mérito, risco e humildade. Outros que sentados naquela mesma enxerga e diante daquelas mesmas paredes, haviam meditado, interrogado e respondido com igual desespero e expectativa. Porquê, tamanha raiva prosélita? Até quando tantas e tais humilhações?

Esquecidos de que apenas o triunfo os legitimava, os conjurados oportunistas crucificavam impiedosamente os subversivos inoportunos de hoje. Enrodilhados numa teia de sofismas e de interesses, tomavam de assalto o poder, legislavam, decretavam, erguiam um monumento à sua intervenção providencial, e consideravam qualquer atentado a essa soberania um crime de lesa-pátria. Mas fossem quais fossem as mistificações da prepotência, e durasse o que durasse o tormento, nunca faltariam consciências rebeldes à submissão e dispostas a dar testemunho da impostura.

Esta lição, pelo menos, aprendera já: - que havia espíritos indomáveis que nenhuma força vergava, e que, no plano dos valores humanos, ninguém, está sozinho no mundo, por mais isolado que pareça. Que sempre uma legião de sombras vem solícita em nosso socorro dos confins da memória [e do mundo espiritual], nas horas de aflição. Antepassados e contemporâneos, vinculados às mesmas ideias e sentimentos, que primeiro nos aconselham, estimam e amparam, numa exemplaridade paradigmática, e depois, como isentos horizontes, medem imparcialmente a grandeza das acções que praticamos, e nos santificam ou amaldiçoam ao rigor da sua luz.

De todos eles recebia agora ajuda, cada qual a lembrar-me o seu comportamento varonil de lutas e agruras. Casos trágicos de sacrifício total, abnegações levadas às últimas consequência, estoicismos quase sobre-humanos, e até fraquezas lamentáveis, redimidas por suicídios heróicos na hora da exaustão. Uma cívica comunhão de santos que inseria a dignidade individual no contexto colectivo, a fragilidade do vime no vigor do feixe. João António, Pedro Martins, Manuel Paulo, Aníbal Vieira... - lia a custo. Nomes desconhecidos gravados na caliça salitrada com o rebordo da colher»... 

Nestes tempos de novas censuras e opressões saibamos também nós, em sintonia grata com Miguel Torga e os seus companheiros e camaradas, suportar e vencer as manipulações e investidas, ou as detenções e bloqueios que nos fizerem, persistindo na luz, na justiça, na verdade, na fraternidade, no amor e na liberdade... 

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

O In-Memoriam de Antero de Quental, as críticas de Teófilo Braga e o caminho na Luz......

                        

Quando o In-Memoriam de Antero de Quental foi dado à luz em 1896 (com as duas fotografias a antecederem o frontispício,) já passados cinco anos da sua libertação samuraica do corpo terreno, muitos foram os elogios, poucas as críticas desfavoráveis, mas uma destas, numa exemplaridade da inveja típica tão portuguesa, saiu da pena de um conterrâneo e condiscípulo de Antero que por mais de uma vez o atacara ou atraiçoara. Nada de inesperado então, tanto mais que não fora convidado para participar no In Memoriam. Foi publicada discretamente no Brasil, numas cartas, por aquele trabalhoso investigador e algo malvado ou invejosamente ambicioso Teófilo Braga. Mas logo uns meses depois em Outubro eram elas publicadas em Lisboa, num opúsculo intitulado Antero de Quental. In Memoriam. & Rodrigues Freitas. Comemoração biographica, pela Typographia da Companhia Editorial Portuguesa ao Conde de Barão. Oito páginas dedicadas Antero e nove à biografia de Rodrigues Freitas. Uma breve Advertência, assinada com as iniciais A. R. Diz que o "notável erudito e laureado crítico" "condescendeu nisso aos nossos desejos, - o que muito agradecemos à sua comprovada amabilidade – aqui as reproduzimos como elementos literários de subida valia».

 Leiamos então Teófilo Braga acerca do In-Memoriam de Antero, com sublinhados meus nas partes mais negativizantes: «(...) Tem o livro um utilíssimo intuito: consagrar a Memória de Antero Quental, o incomparável poeta dos Sonetos filosóficos, nos quais fez por assim dizer a autópsia da sua alma atormentada. E para que em tudo este monumento trouxesse impresso um carácter simpático, foram convidados os mais íntimos amigos de Antero de Quental, os que de mais perto viveram com ele, os que escutaram as suas doutrinas metafísicas e revolucionárias, os que o acompanharam como admiradores sinceros até ao seu último momento, para contribuírem para este padrão In Memoriam com estudos críticos sobre a sua vida e os vários aspectos do seu talento. Que belo livro seria este, e bem merecido por Antero de Quental, se o pensamento originário fosse realizado! Infelizmente a homenagem ao genial poeta, longe de consagrar-lhe a memória, deprime-a pela inconsciência com que alguns amigos se comprazem em descrever situações menos louváveis de Antero, ou pondo em evidência o seu estado patológico de vasia mental, de que foi vítima.

Quanto ao influxo simpático, tão natural e tão simples de conservar e de repassar todo esse livro, está substituído por uma atmosfera de ódio por alguns escritores que se serviram daquele pedestal para dali detrás do vulto trágico e compassivo de Antero de Quental atirarem sua pedrada traiçoeira a um [ele...]ou outro transeunte por este arraial das letras portuguesas.»(...).

Prossegue depois explicando a origem do In Memoriam, como levou cerca de seis anos, como há nela muita ingenuidade a fazer-se de sinceridade, Teófilo desejando então modestamente que não lhe suceda o mesmo no seu inquérito ou In-Memoriam....

Explica ainda que «o Livro in Memoriam foi coordenado por Luís de Magalhães e Jaime Magalhães de Lima; pouco informados dos antecedentes de Antero deixaram penetrar nesse livro indivíduos que hostilizaram Antero, ou que nunca tiveram a sua intimidade que hoje afectam; e admitiram narrativas banais que não engrandecem o espírito daquele a quem se presta a apoteose.» 

Enumera em seguida os 29 autores e seus artigos, e depois de muito selectiva ou sobranceiramente dizer que «pondo de parte três ou quatro destes trabalhos que emprestam verdadeiros subsídios para o conhecimento da individualidade de Antero, os outros são prosa estilísticas, em que os seus autores mais ou menos se colocam em foco a pretexto do desgraçado poeta»

Parece mesmo que Teófilo tentava dissuadir possíveis leitores brasileiros interessados In-Memoriam de comprarem a obra...

Vejamos todavia que provas concretas dá Teofilo Braga, esse sim, um adversário ou inimigo de Antero: ora entra logo a matar contra Vasconcellos Abreu, com quem se daria mesmo mal, citando algumas frases do seu contributo, em que este emprega o eu e o meu algumas vezes, concluindo:

«Por este insistente personalismo vê-se logo que se tem em frente um pedante; procura-se o nome e acha-se o célebre sanscritólogo- escrivão, que além de assoalhar aí a sua personalidade cómica, ainda joga à sorrelfa a sua pedrada aos que bem conhecem toda a sua inanidade.

A nota odiosa sujou o livro que devera ser simpático; esta, porém, é propositada e bastava considerá-la como um abuso, passando adiante. Há outras de deplorável efeito nas narrativas dos mais sinceros amigos de Antero, que com certeza não as escreveram para produzirem a impressão deprimente que deixam em quem lê.»

Anote-se que Guilherme de Vasconcellos Abreu, companheiro de Antero dos tempos de estudante até ao seu último momento em Portugal continental, de facto, no In-Memoriam, conclui o seu contributo (bem valioso e mostrando o amor da sabedoria do Oriente que os unia) a defender Antero e, logo, a atacar Teófilo, embora sem mencionar o seu nome: « Alguém que em tempos se dissera seu amigo, mas por íntima ruindade própria se afastara dele, acoimou-o, depois de morto, de vício em que o acusador era useiro, e assim explica o seu suicídio.

Mente esse vil caluniador!

Antero foi sempre alma pura, e em toda a sua vida um idealista!

Era um doente!

Era. Sofria de mal que Stuart Mill diz ser a força dissolvente do universo psicológico, da reflexão e meditação em si e consigo, que dá a acuidade interna mas afunda na tristeza.

Antero era um doente, porque génio de águia, águia subiu até o sol e não se aqueceu, transformou-se consumindo-se, debilitando-se e mariposa queimou-se na luz que procurava.»

Uma boa mensagem nos é transmitida: a de não nos deixarmos queimar nem aniquilar na luz, nas seitas e gurus ou na extinção do eu e no nirvana, mas antes nos religarmos ao espírito imortal e ao Divino, criativa, persistente, luminosa e invencivelmente..

Ora os episódios que Teófilo Braga vai narrar, uma brincadeira divertida e um disfarce ou discrição, parecem-nos que só aos seus olhos têm esses sentidos deprimentes, justificada pela sua falta de humor e talvez talvez por alguma inimizade para com esses companheiros de Antero.

Passa então ao segundo caso de inimigos:«Quando Antero de Quental estabeleceu por algum tempo em Lisboa a sua residência, junto com Batalha Reis, agrupou-se em volta dele uma pequena boémia de rapazes inteligentes e espirituosos, que viviam em troça permanente. Filosofava-se, discutia-se, improvisava-se, com um criticismo vagabundo mas esterilizante», contando em seguida como Luciano de Castro, que começara a destacar-se no jornal Revolução de Setembro, «quis assistir às discussões dessa reunião, a que deram o nome de Cenáculo, para ser iniciado por Antero na Metafísica. Com toda a sinceridade da sua crença na superioridade mental era fácil abusar dele; Antero começou por fazer-lhe a revelação de um extraordinário poeta cossaco, ainda desconhecido em Portugal, chamado Ulurus, do qual expôs os mais arrojados pensamentos [E que pena, diremos, não terem sido registados...] Luciano Cordeiro acreditou na individualidade de Ulurus, e isto em nada deslustra a nobre confiança que ele tributava a um espírito dirigente que se chamou Porta-estandarte das ideias modernas em Portugal».

Anote-se aqui esta bela imagem caracterizadora de Antero, erguida ou pelo menos relatada, embora criticamente, por Teófilo, e continuemos com a incapacidade de Teófilo de ser jovem e brincar ou ironizar, antes pautando-se por padrões que lhe terão permitido chegar, enquanto republicano, algo que Antero não era, a Presidente da República, e logo a atingir alguma imortalidade, contudo bem menor que a de Antero enquanto líder, alma pura e genial, poeta, filósofo e figura moral e ética, senão mesmo espiritual.

Relata em seguida como Luciano Cordeiro referiu o tal Ulurus primeiro num artigo e depois no seu Livro de Crítica e como terá havido troça grande do Cenáculo. E como no In Memoriam Batalha Reis refere de novo “essa anedota que devia estar esquecida”, “num embuste em que quem não estava na melhor posição era Antero de Quental,” transcreve o passo do In Memoriam, e algo hipocritamente conclui. «Não se cita aqui o nome de Luciano Cordeiro, mas todos [falso]conhecem a anedota , que hoje só tem o inconveniente de pôr a uma luz menos simpática, o espírito, dirigente, que obedecia às sugestões do meio trocista em que se achava.»

Seria assim, ou apenas passaram a saber dela, e agora com este folheto, graças às elucidações algo policiais de Teófilo, que Luciano de Castro fora um dos enganados pela fake new de Antero?

Eis-nos com Teófilo Braga tentando repisar ou antipatizar a memória ou figura de Antero, talvez ironizando mesmo quando lhe dá o epíteto, “o dirigente”, e logo em seguida sugere ser uma mera marioneta do meio ambiente.

O terceiro inimigo a abater (e porque razões pessoais estes três referidos expressamente?) surge em seguida:«Mas esta tendência para o engano ou o logro é também revelada por uma narrativa do seu fervoroso amigo Alberto Sampaio, que o acompanhou na viagem a Paris» quando foi visitar o “grande Michelet” e este «recebeu o pseudo-Bettencourt com a sua ingénita bondade, ouviu ler traduzidas para francês algumas composições do livro, e deu ao visitante uma lacónica carta de agradecimento para Antero de Quental». E transcreve a versão algo diferente de Alberto Sampaio, conforme está no In Memoriam.

E vai prosseguir (mostrando de início a a sua fraca visão da história e da biografia) e finalizar, atirando-se ao que lhe faria talvez mais inveja em Antero, a sua qualidade de filósofo ou metafísico, atacando-o escudado na sua ilusória filosofia positivista de Augusto Comte, a que aderira plenamente e que poucos anos depois estava defunta na Europa filosófica:

«Para quê arquivar estas pequenas coisas, que não deixam um indivíduo em boa luz? [Teófilo sempre na mesma, a malquistar a imagem-memória de Antero]. O livro abunda em narrativas assim insignificantes, dando todo o relevo a destemperos de mocidade, e ao prolongamento desta além do seu tempo». 

É possível que Teófilo Braga nunca tenha brincado nem rido? Mas vem aí mais uma atordoada depreciadora invejosa (ó Fama, ó Glória...) fortíssima: «Quando se trata de aglomerar factos positivos para fundamentar a glória de Antero, apenas há pirotecnia de estilo e elegias sobre esperanças decepadas.» E como prova isso? Aduzindo um texto, dando a entender que é um contributo para o In-Memoriam de Antero, de um seu condiscípulo da intransigência fanática positivista e talvez, esse sim, sofrendo mais da “pedantice” que atribuíra a Guilherme de Vasconcellos Abreu: «Neste ponto o estudo de Mariano Machado sobre a capacidade filosófica de Antero é cheio de verdade: “Em mim, que estudara desde 1866 a 1868 estudara muito...[quase três anos...] a matemática e a filosofia de Augusto Comte, encontrou ele um intransigente positivista. É claro que um um intransigente positivista não podia concordar com a orientação política e filosófica de Antero, então intransigente metafísico. Ele esqueceu em um momento infeliz o que devia ao seu nome, classificando de banalidade francesa os trabalhos de Comte, um dos maiores génios de que a humanidade se orgulha, e que merece com justiça, segundo Stuart Mill, ser considerado superior a Descartes e Leibnitz, por ter manifestado uma potência intelectual igual à destes, em uma idade avançada do saber humano.»

Depois destas mirabolantes hierarquizações dos génios da humanidade, vá lá Teófilo cita algo menos mal da apreciação de Mariano Machado: «Pode não reconhecer-se nos escritos filosóficos de Antero os traços gerais e preciosos de um sistema filosófico, perfeito, mas o que não é justo contestar-lhe é a originalidade da sua argumentação, a sua subtileza...»

A hipocrisia de Teófilo, que mal Antero morrera se lançara a publicar torcidamente vários poemas de Antero, em Raios de Extinta Luz, certamente contra o que seria a vontade dele, levando mesmo a especialista anteriana Ana Maria Almeida Martins a escrever na sua sua notável obra Antero de Quental e a Génese do In Memoriam: «Raios de Extinta Luz, livro que Teófilo Braga no início de 1892 publicou e prefaciou, com poemas pretensamente inéditos de Antero. Esse prefácio é, no mínimo, deselegante e cheio de inexactidões, ofensivo da memória do poeta e que funciona como um ajuste de contas obviamente cobarde», vai no fim do seu artigo, no último parágrafo, mostrar bem o seu lado diabólico ou de advogado ou amigo dos diabos, ou do Diabo, etimologicamente, o Adversário:

«Destaca-se no livro, como peça capital, o estudo do Dr. Souza Martins, Nosographia de Antero, estudo magistral de psicologia mórbida, sobre uma individualidade cujos antepassados são bem conhecidos, e cujos actos pessoais foram muito acentuados; chega-se à conclusão demonstrada que o poeta era um alienado! Por isto se pode com franqueza dizer que este estudo, aliás brilhante, não devera entrar no livro In Memoriam, se é que as narrativas de situações comprovativas não matizassem essa consagração. É importante o estudo Bibliográfico da obra de Antero; pouco trabalho realizado e muita dispersão de energia, sem plano. Louve-se a intenção do livro de apoteose; confessemos que o poeta merecia um monumento erigido pelos amigos sinceros, mas pela forma em que está redigido, chegamos quase a classificá-los – amigos dos diabos

Acrescente-se que nesses tais "amigos dos diabos" Teófilo Braga e de algum modo Sousa Martins estariam à cabeça e não os que defendendo Antero de Quental tiveram de ser adversários de Teófilo Braga e dos seus erros, distorções ou más vontades...

Neste sentido corre bem a carta trocada entre dois dos organizadores do tão belo quão valioso In-Memoriam: Joaquim de Araújo envia-a a 16 de Agosto de 1893 a Joaquim de Magalhães e no fim afirma a propósito da sua colaboração no número da Revista de Portugal que estava para sair dedicado a Antero: «O meu artigo combate por diversas vezes, sans rancune, de um modo elevado, afirmações do Teófilo Braga, e parece-me que é dos mais úteis que a Revista há-de encerrar. Conte comigo absoluta e inteiramente, e conte que hei-de fazer uma coisa digna do nosso grande Morto. Reputo o meu artigo indispensável, absolutamente indispensável à biografia de Antero, que de futuro haja de escrever-se...»

E neste futuro de páginas brancas continuamos nós a reflectir e a escrever, defrontando forças e seres hostis como eles, na senda de desbravamento luminoso mas bem árduo de Antero de Quental e dos seus admiradores, companheiros e mateiros...

 Ad astra per aspera...     Himavat, pintura de Bô Yin Râ....