
Quando o In-Memoriam
de Antero de Quental foi dado à luz em 1896 (com as duas fotografias a antecederem o frontispício,) já passados cinco anos
da sua libertação samuraica do corpo terreno, muitos foram os elogios, poucas as críticas
desfavoráveis, mas uma destas, numa exemplaridade da inveja típica
tão portuguesa, saiu da pena de um conterrâneo e condiscípulo de
Antero que por mais de uma vez o atacara ou atraiçoara. Nada de
inesperado então, tanto mais que não fora convidado para participar
no In Memoriam. Foi publicada
discretamente no Brasil, numas cartas, por aquele trabalhoso
investigador e algo malvado ou invejosamente ambicioso Teófilo
Braga. Mas logo uns meses depois em Outubro eram elas publicadas em
Lisboa, num opúsculo intitulado Antero de Quental. In Memoriam. &
Rodrigues Freitas. Comemoração biographica, pela Typographia da
Companhia Editorial Portuguesa ao Conde de Barão. Oito páginas
dedicadas Antero e nove à biografia de Rodrigues Freitas. Uma breve
Advertência, assinada com as
iniciais A. R. Diz que o "notável erudito e laureado crítico"
"condescendeu nisso aos nossos desejos, - o que muito
agradecemos à sua comprovada amabilidade – aqui as reproduzimos
como elementos literários de subida valia».


Leiamos
então Teófilo Braga
acerca do In-Memoriam de Antero, com sublinhados meus nas partes mais negativizantes: «(...) Tem o livro um utilíssimo
intuito: consagrar a Memória de Antero Quental, o incomparável
poeta dos Sonetos filosóficos, nos quais fez por assim dizer
a autópsia da sua alma atormentada. E para que em tudo este
monumento trouxesse impresso um carácter simpático, foram
convidados os mais íntimos amigos de Antero de Quental, os que de
mais perto viveram com ele, os que escutaram as suas doutrinas
metafísicas e revolucionárias, os que o acompanharam como
admiradores sinceros até ao seu último momento, para contribuírem
para este padrão In Memoriam com estudos críticos sobre a
sua vida e os vários aspectos do seu talento. Que belo livro
seria este, e bem merecido por Antero de Quental, se o pensamento
originário fosse realizado! Infelizmente a homenagem ao genial
poeta, longe de consagrar-lhe a memória, deprime-a pela
inconsciência com que alguns amigos se comprazem em descrever
situações menos louváveis de Antero, ou pondo em evidência
o seu estado patológico de vasia mental, de que foi vítima.
Quanto
ao influxo simpático, tão natural e tão simples de conservar e de
repassar todo esse livro, está substituído por uma atmosfera de
ódio por alguns escritores que se serviram daquele pedestal para
dali detrás do vulto trágico e compassivo de Antero de Quental
atirarem sua pedrada traiçoeira a um [ele...]ou outro
transeunte por este arraial das letras portuguesas.»(...).
Prossegue
depois explicando a origem do In Memoriam, como levou cerca de
seis anos, como há nela muita ingenuidade a fazer-se de sinceridade,
Teófilo desejando então modestamente que não lhe suceda o mesmo
no seu inquérito ou In-Memoriam....
Explica
ainda que «o Livro in Memoriam foi coordenado por Luís de
Magalhães e Jaime Magalhães de Lima; pouco informados dos
antecedentes de Antero deixaram penetrar nesse livro indivíduos que
hostilizaram Antero, ou que nunca tiveram a sua intimidade que hoje
afectam; e admitiram narrativas banais que não engrandecem o
espírito daquele a quem se presta a apoteose.»
Enumera em seguida
os 29 autores e seus artigos, e depois de muito selectiva ou
sobranceiramente dizer que «pondo de parte três ou quatro destes
trabalhos que emprestam verdadeiros subsídios para o conhecimento da
individualidade de Antero, os outros são prosa estilísticas, em
que os seus autores mais ou menos se colocam em foco a pretexto do
desgraçado poeta»
Parece
mesmo que Teófilo tentava dissuadir possíveis leitores brasileiros
interessados In-Memoriam de comprarem a obra...
Vejamos
todavia que provas concretas dá Teofilo Braga, esse sim, um
adversário ou inimigo de Antero: ora entra logo a matar contra
Vasconcellos Abreu, com quem se daria mesmo mal, citando algumas
frases do seu contributo, em que este emprega o eu e o meu algumas
vezes, concluindo:
«Por
este insistente personalismo vê-se logo que se tem em frente um
pedante; procura-se o nome e acha-se o célebre sanscritólogo-
escrivão, que além de assoalhar aí a sua personalidade cómica,
ainda joga à sorrelfa a sua pedrada aos que bem conhecem toda a sua
inanidade.
A
nota odiosa sujou o livro que devera ser simpático; esta, porém, é
propositada e bastava considerá-la como um abuso, passando adiante.
Há outras de deplorável efeito nas narrativas dos mais sinceros
amigos de Antero, que com certeza não as escreveram para produzirem
a impressão deprimente que deixam em quem lê.»
Anote-se
que Guilherme de Vasconcellos Abreu, companheiro de Antero dos tempos de estudante
até ao seu último momento em Portugal continental, de facto, no
In-Memoriam, conclui o seu contributo (bem valioso e mostrando o amor da sabedoria do Oriente que os unia) a defender Antero e, logo,
a atacar Teófilo, embora sem mencionar o seu nome: « Alguém que em
tempos se dissera seu amigo, mas por íntima ruindade própria se
afastara dele, acoimou-o, depois de morto, de vício em que o
acusador era useiro, e assim explica o seu suicídio.
Mente
esse vil caluniador!
Antero
foi sempre alma pura, e em toda a sua vida um idealista!
Era
um doente!
Era.
Sofria de mal que Stuart Mill diz ser a força dissolvente do
universo psicológico, da reflexão e meditação em si e consigo,
que dá a acuidade interna mas afunda na tristeza.
Antero
era um doente, porque génio de águia, águia subiu até o sol
e não se aqueceu, transformou-se consumindo-se, debilitando-se e
mariposa queimou-se na luz que procurava.»
Uma boa mensagem nos é transmitida: a de não nos deixarmos queimar nem aniquilar na luz, nas seitas e gurus ou na extinção do eu e no nirvana, mas antes nos religarmos ao espírito imortal e ao Divino, criativa, persistente, luminosa e invencivelmente..
Ora os
episódios que Teófilo Braga vai narrar, uma brincadeira divertida e um disfarce ou discrição,
parecem-nos que só aos seus olhos têm esses sentidos deprimentes,
justificada pela sua falta de humor e talvez talvez por alguma
inimizade para com esses companheiros de Antero.
Passa
então ao segundo caso de inimigos:«Quando Antero de Quental
estabeleceu por algum tempo em Lisboa a sua residência, junto com
Batalha Reis, agrupou-se em volta dele uma pequena boémia de rapazes
inteligentes e espirituosos, que viviam em troça permanente.
Filosofava-se, discutia-se, improvisava-se, com um criticismo
vagabundo mas esterilizante», contando em seguida como Luciano
de Castro, que começara a destacar-se no jornal Revolução de
Setembro, «quis assistir às discussões dessa reunião, a que
deram o nome de Cenáculo, para ser iniciado por Antero na
Metafísica. Com toda a sinceridade da sua crença na superioridade
mental era fácil abusar dele; Antero começou por fazer-lhe a
revelação de um extraordinário poeta cossaco, ainda desconhecido
em Portugal, chamado Ulurus, do qual expôs os mais arrojados
pensamentos [E que pena, diremos, não terem sido registados...]
Luciano Cordeiro acreditou na individualidade de Ulurus, e isto em
nada deslustra a nobre confiança que ele tributava a um espírito
dirigente que se chamou
Porta-estandarte das ideias modernas em Portugal».
Anote-se
aqui esta bela imagem caracterizadora de Antero, erguida ou pelo
menos relatada, embora criticamente, por Teófilo, e continuemos com
a incapacidade de Teófilo de ser jovem e brincar ou ironizar, antes
pautando-se por padrões que lhe terão permitido chegar, enquanto
republicano, algo que Antero não era, a Presidente da República, e
logo a atingir alguma imortalidade, contudo bem menor que a de Antero
enquanto líder, alma pura e genial, poeta, filósofo e figura moral
e ética, senão mesmo espiritual.
Relata
em seguida como Luciano Cordeiro referiu o tal Ulurus primeiro num
artigo e depois no seu Livro de Crítica e como terá havido
troça grande do Cenáculo. E como no In Memoriam Batalha Reis
refere de novo “essa anedota que devia estar esquecida”, “num
embuste em que quem não estava na melhor posição era Antero de
Quental,” transcreve o passo do In Memoriam, e algo
hipocritamente conclui. «Não se cita aqui o nome de Luciano
Cordeiro, mas todos [falso]conhecem a anedota , que hoje só
tem o inconveniente de pôr a uma luz menos simpática, o espírito,
dirigente, que obedecia às sugestões do meio trocista em que se
achava.»
Seria
assim, ou apenas passaram a saber dela, e agora com este folheto,
graças às elucidações algo policiais de Teófilo, que Luciano de
Castro fora um dos enganados pela fake new de Antero?
Eis-nos
com Teófilo Braga tentando repisar ou antipatizar a memória ou
figura de Antero, talvez ironizando mesmo quando lhe dá o epíteto,
“o dirigente”, e logo em seguida sugere ser uma mera marioneta do meio
ambiente.
O
terceiro inimigo a abater (e porque razões pessoais estes três
referidos expressamente?) surge em seguida:«Mas esta tendência para o engano
ou o logro é também revelada por uma narrativa do seu fervoroso
amigo Alberto Sampaio, que o acompanhou na viagem a Paris»
quando foi visitar o “grande Michelet” e este «recebeu o
pseudo-Bettencourt com a sua ingénita bondade, ouviu ler traduzidas
para francês algumas composições do livro, e deu ao visitante uma
lacónica carta de agradecimento para Antero de Quental». E
transcreve a versão algo diferente de Alberto Sampaio, conforme está
no In Memoriam.
E
vai prosseguir (mostrando de início a a sua fraca visão da história
e da biografia) e finalizar, atirando-se ao que lhe faria talvez mais
inveja em Antero, a sua qualidade de filósofo ou metafísico, atacando-o
escudado na sua ilusória filosofia positivista de Augusto Comte, a
que aderira plenamente e que poucos anos depois estava defunta na
Europa filosófica:
«Para
quê arquivar estas pequenas coisas, que não deixam um indivíduo em
boa luz? [Teófilo sempre na mesma, a malquistar a imagem-memória de
Antero]. O livro abunda em narrativas assim insignificantes, dando
todo o relevo a destemperos de mocidade, e ao prolongamento desta
além do seu tempo».
É possível que Teófilo Braga nunca tenha brincado
nem rido? Mas vem aí mais uma atordoada depreciadora invejosa (ó Fama, ó Glória...) fortíssima: «Quando se trata de aglomerar factos
positivos para fundamentar a glória de Antero, apenas há pirotecnia
de estilo e elegias sobre esperanças decepadas.» E como prova
isso? Aduzindo um texto, dando a entender que é um contributo para o
In-Memoriam de Antero, de um seu condiscípulo da
intransigência fanática positivista e talvez, esse sim, sofrendo
mais da “pedantice” que atribuíra a Guilherme de Vasconcellos
Abreu: «Neste ponto o estudo de Mariano Machado sobre a capacidade
filosófica de Antero é cheio de verdade: “Em mim, que estudara
desde 1866 a 1868 estudara muito...[quase três anos...] a
matemática e a filosofia de Augusto Comte, encontrou ele um
intransigente positivista. É claro que um um intransigente
positivista não podia concordar com a orientação política e
filosófica de Antero, então intransigente metafísico. Ele
esqueceu em um momento infeliz o que devia ao seu nome, classificando
de banalidade francesa os trabalhos de Comte, um dos maiores génios
de que a humanidade se orgulha, e que merece com justiça, segundo
Stuart Mill, ser considerado superior a Descartes e Leibnitz, por ter
manifestado uma potência intelectual igual à destes, em uma idade
avançada do saber humano.»
Depois
destas mirabolantes hierarquizações dos génios da humanidade, vá
lá Teófilo cita algo menos mal da apreciação de Mariano Machado:
«Pode não reconhecer-se nos escritos filosóficos de Antero os
traços gerais e preciosos de um sistema filosófico, perfeito, mas
o que não é justo contestar-lhe é a originalidade da sua
argumentação, a sua subtileza...»
A
hipocrisia de Teófilo, que mal Antero morrera se lançara a publicar
torcidamente vários poemas de Antero, em Raios de Extinta Luz,
certamente contra o que seria a vontade dele, levando mesmo a
especialista anteriana Ana Maria Almeida Martins a escrever na sua
sua notável obra Antero de Quental e a Génese do In Memoriam:
«Raios de Extinta Luz, livro que Teófilo Braga no início de
1892 publicou e prefaciou, com poemas pretensamente inéditos de
Antero. Esse prefácio é, no mínimo, deselegante e cheio de
inexactidões, ofensivo da memória do poeta e que funciona como um
ajuste de contas obviamente cobarde», vai no fim do seu artigo, no
último parágrafo, mostrar bem o seu lado diabólico ou de advogado
ou amigo dos diabos, ou do Diabo, etimologicamente, o Adversário:
«Destaca-se
no livro, como peça capital, o estudo do Dr. Souza Martins,
Nosographia de Antero, estudo magistral de psicologia mórbida,
sobre uma individualidade cujos antepassados são bem conhecidos, e
cujos actos pessoais foram muito acentuados; chega-se à conclusão
demonstrada que o poeta era um alienado! Por isto se pode com
franqueza dizer que este estudo, aliás brilhante, não devera entrar
no livro In Memoriam, se é que as narrativas de situações
comprovativas não matizassem essa consagração. É importante o
estudo Bibliográfico da obra de Antero; pouco trabalho realizado e
muita dispersão de energia, sem plano. Louve-se a intenção do
livro de apoteose; confessemos que o poeta merecia um monumento
erigido pelos amigos sinceros, mas pela forma em que está redigido,
chegamos quase a classificá-los – amigos dos diabos.»
Acrescente-se
que nesses tais "amigos dos diabos" Teófilo Braga e de algum modo Sousa Martins estariam à
cabeça e não os que defendendo Antero de Quental tiveram de ser adversários de Teófilo Braga e dos seus erros, distorções ou más vontades...
Neste sentido corre bem a carta trocada entre dois dos organizadores do tão belo quão valioso In-Memoriam: Joaquim de Araújo envia-a a 16 de Agosto de 1893 a Joaquim de Magalhães e no fim afirma a propósito da sua colaboração no número da Revista de Portugal que estava para sair dedicado a Antero: «O meu artigo combate por diversas vezes, sans rancune, de um modo elevado, afirmações do Teófilo Braga, e parece-me que é dos mais úteis que a Revista há-de encerrar. Conte comigo absoluta e inteiramente, e conte que hei-de fazer uma coisa digna do nosso grande Morto. Reputo o meu artigo indispensável, absolutamente indispensável à biografia de Antero, que de futuro haja de escrever-se...»
E neste futuro de páginas brancas continuamos nós a reflectir e a escrever, defrontando forças e seres hostis como eles, na senda de desbravamento luminoso mas bem árduo de Antero de Quental e dos seus admiradores, companheiros e mateiros...
Ad astra per aspera... Himavat, pintura de Bô Yin Râ....