A Criação do Mundo, de Miguel Torga, é uma obra cujo título é enganador: pensamos que se trata de alguma cosmogonia e vamos encontrar a sua biografia, desde criança até à prisão pela Pide e a detenção no Aljube, para depois casar e estabilizar em Coimbra, com muitas aventuras, descrições e histórias fabulosas, sempre acompanhadas pela sua auto-consciência lúcida e escalpelizante, face às constantes opressões e desilusões que o vão obrigar a evoluir e a crescer num sentido de independência solitária mas solidária, livre pensadora mas telúrica.
É uma obra entusiasmante, e mesmo empolgante, tantas foram as dificuldades que ele teve de cruzar e vencer, tanto o momento genial de vivência e descrição e, embora os Cinco Dias da Criação do Mundo se desenrolem em cinco volumes, com cerca de 1000 páginas, lê-se rapidamente. E recomenda-se bem...
Junto com os doze volumes do Diário constituem uma autobiografia verdadeira, corajosa, esforçada, bem narrada e com vivências tão fabulosas que nos interrogamos como é que o Prémio Nobel nunca lhe foi dado, e tem sido dado a outros muito menos valiosos que Miguel Torga, aliás Adolfo Rocha, um médico transmontano, nascido (12-VIII-1907) em família humilde de lavrador e singrando por si mesmo até se tornar uma das vozes mais genuínas e lúcidas do Portugal profundo, trabalhador e lutador, justo e livre.
Se quisermos apresentar muito brevemente a obra, pois a sua leitura é recomendável a todo o português que ama ainda a sua terra, o seu povo e os seus valores potenciais, resumiríamos assim:
O Primeiro Dia, no 1º volume da Criação do Mundo, dado à luz discretamente em 1937, narra o seu ambiente
natal, a família, a aldeia e os seus habitantes, os trabalhos agrícolas, os costumes e vida
religiosa, a escola primária e as peripécias extraordinárias que
levam o professor da instrução primária, o sr. Botelho, concluída com
distinção, a pedir ao pai embevecido que permita ao jovenzinho
Adolfo continuar a estudar, ao que ele anui sabiamente, mas como não
havia dinheiro para custear o liceu em Vila Real, ei-lo enviado como criado
de servir para o Porto, a quinze tostões por mês, onde vive cerca
de um ano, enfrenta as primeiras falsas acusações, opressões e
perseguições, mas sempre a ler, a aprender e a conhecer o Porto,
até ser despedido pela sua independência ou rebeldia, voltando à aldeia, que o recebe algo trocistamente...
Depois, por ideia do prior da aldeia, vai para o seminário de Lamego, onde se "agarrou ao estudo com unhas e dentes", concluindo o ano bem e tendo as suas férias na aldeia natal, Agarez (S. Martinho de Anta), onde começa a despertar a energia sexual e a atracção por uma amiga, a frequentar a taberna e algumas casas mais ricas, e a sentir que já não acreditava nas litânias que todos repetiam: em verdade "perdera a fé". Dirá então ao Pai no fim das férias que já não queria voltar ao seminário, pelo que decidem enviá-lo para o Brasil, o El Dorado para muitos portugueses de então, tal Ferreira de Castro...
O Segundo Dia, ocupando as restantes 100 páginas do 1º volume da Criação do Mundo, narra os labores, vivências e aventuras na enorme fazenda de Santa Cruz, em Minas Gerais, de um dinâmico tio, onde o jovem Torga passará cerca de cinco anos, como "moiro de trabalho" e seu braço direito, embora muito perseguido pela mulher dele. No último ano pode frequentar ainda o Ginásio de Leopoldina, onde cria amizades, se destaca e ensaia os primeiros versos. Uma tarimba, ou mesmo uma iniciação (nomeadamente no amor), fabulosa para toda a sua vida...
O Terceiro Dia e 2º volume da Criação do Mundo narra o regresso a Portugal, o reencontro com os pais e a aldeia, a difícil inserção do tio e da mulher na aldeia, a entrada no colégio interno de S. António, em Coimbra, com os melhores autores portugueses à sua disposição na biblioteca e um casal de professores estimulante, os bons resultados em pouco tempo de estudo, o regresso do tio e sua "querida" mulher ao Brasil (que alívio..), a conclusão do liceu, a opção difícil pela Medicina e a entrada e formatura na Universidade de Coimbra, e a prática de clínica geral na sua zona natal, com um empregada namorada local, uma doença grave que o levou a ser operado, e a recuperação lenta...
O Quarto Dia, e 3º volume de A Criação do Mundo, narra uma viagem à Europa de automóvel com dois companheiros de circunstância e algo atemorizados com a resistência de Torga a saudações fascizantes, com as passagem mais detalhadas pela Espanha de Franco, Itália de Mussolini e a Paris dos portugueses exilados, e com peripécias muito curiosas.
O Quinto Dia e 4º volume de A Criação do Mundo , mostra-nos a sua reeinserção nos ambientes portugueses, a escolha de ser otorrinolaringologista e em Leiria, o meio pequeno e simpático dos intelectuais que conhece, os seus livros de poemas a serem publicados e os pouco amigos que os discutiam e apreciavam, e finalmente a prisão pela Pide e a sua detenção por uns meses no Aljube, com histórias muito emocionantes passando-se até à sua libertação por fim. Este volume foi já publicado após a revolução do 25 de Abril e pode narrar a prisão pela Pide e as suas críticas à opressão salazarista.
Publicou-se finalmente em 1981, o Sexto Dia, e quinto volume, da Criação do Mundo, no qual coroa e reflecte sua vida valiosa e lutadora, plena de causas e ideais assumidos e manifestados. Há menos cenas altamente emotivas nesta fase final da sua vida mas ainda assim destacam-se os sentimentos e reflexões sobre os efeitos da morte dos pais, a desilusão da democracia portuguesa, a amargura pelas invejas e rivalidades literárias, a apreciação do universalismo fraterno que os portugueses conseguiram manifestar no Brasil, em Cabo Verde e na ilha de Moçambique, como constata in loco. sentindo fortemente a ligação profunda com os compatriotas simples e muitos até transmontanos, emigrados no Brasil.
Neste O Sexto Dia Miguel Torga partilha então cronologicamente o regresso e tentativa de readaptação, com algumas desilusões, a Leiria e aos amigos, a sua lenta recuperação de doentes ou clientes no consultório, o aparecimento e o casamento com a sua mulher Andrée Crabbé , as aprendizagens últimas com os pais, a escolha de Coimbra como local ideal para a sua missão curativa e de bisturi, os passeios por Portugal e a recolha de histórias de animais para o que se tornará os Bichos, a continuação da opressão ou mesmo ódio salazarista e da Pide, nomeadamente em relação aos seus postos médicos e livros, as caçadas que lhe permitiam sensorialmente um regresso ao paraíso original, os projectos de revistas que falharam rapidamente, a doença e a morte da mãe "aquela alma irmã que durante largos anos fora ali a encarnação viva da cordialidade e da alegria", os mistérios das doenças e e das curas, sempre tão dependentes dos doentes em si, a viagem com a mulher ao Brasil, onde tem "com milhares de patrícios em todas as associações lusas a fraterna comunhão que sonhara", a revisitação dos locais e pessoas que lá conhecera há trinta anos e a metamorfose das ideias com que ficara, o consultório coimbrão tornado cenáculo contestatário ("centro de cavaqueira e conspiração") e espiado pela Pide, a morte impactante do Pai e mestre, a modernização da casa feita pela mulher, a morte de Salazar, a viajem algo desilusiva à África portuguesa, embora com o deslumbramento da ilha de Moçambique, a morte dos amigos, o 25 de Abril, as esperanças e uma certa desilusão posterior e, finalmente as auto-observações ou consciencializações últimas onde reafirma a sua essência de livre pensador e escritor: pois "lutara sempre por universal de valores fraternos, por uma ordem social onde a liberdade fosse a lei das leis e a arte o credo dos credos".
Miguel Torga deixou a Terra, física mas não espiritual, em 17 de Janeiro de 1995, a sua mulher seguindo-o no mesmo ano. Que eles avancem luminosamente no Cosmos, com a Divindade cada vez mais brilhando neles, e nos inspirem sabiamente.
As reflexões ao longo de todos os volumes são muito valiosas, e transcreveremos apenas algumas deste 4º volume, escritas na prisão, uma experiência sempre importante na vida de alguém, como vamos ver:
«A receber a luz do dia por um postigo cego, impossibilitado de ler e de escrever, sepultado vivo, passava horas sentado no catre regelado, a meditar. Os atropelos que a avidez do mando era capaz de fazer em nome da ordem, da civilização cristã, dos valores morais, da pátria e de quejandas altisonâncias.
O mesmo ser, que no decurso dos séculos e à custa de tantos sacrifícios e coragem conseguira erguer-se do rés da natureza aos degraus de uma dignidade quase divina, não tinha pejo, sempre que lhe convinha, de tentar reduzir o semelhante à simples animalidade do começo. Enjaulado como uma fera, privado dos mais elementares meios de higiene, a ouvir e a cheirar os próprios rumores e odores, sem voz, sem direitos, sem acção, condenado a uma existência meramente vegetativa, funcional, de alambique, a comida a entrar e a sair, o sono e a vigília a alternar na repetição pendular do mesmo absurdo. Um suíno no chiqueiro tinha mais regalias do que ali um filho de Deus: o tratador que vinha espreitá-lo ou nutri-lo, falava-lhe, ao menos.»...
E seguem-se outras páginas bem valiosas de auto-avaliação e de forte questionamento da injustiça erguida a sistema, com uma consciência do corpo espiritual da humanidade, acentuada ainda quando lê nas paredes os nomes dos presos antigos e reflecte acerca da sua capacidade de resistência:
«Por enquanto, não sentia o ânimo desfalecido. Pelo contrário. O osso ia ser duro de roer, mas estava decidido a rilhá-lo corajosamente, como outros o tinham feito antes de mim, porventura com mais mérito, risco e humildade. Outros que sentados naquela mesma enxerga e diante daquelas mesmas paredes, haviam meditado, interrogado e respondido com igual desespero e expectativa. Porquê, tamanha raiva prosélita? Até quando tantas e tais humilhações?
Esquecidos de que apenas o triunfo os legitimava, os conjurados oportunistas crucificavam impiedosamente os subversivos inoportunos de hoje. Enrodilhados numa teia de sofismas e de interesses, tomavam de assalto o poder, legislavam, decretavam, erguiam um monumento à sua intervenção providencial, e consideravam qualquer atentado a essa soberania um crime de lesa-pátria. Mas fossem quais fossem as mistificações da prepotência, e durasse o que durasse o tormento, nunca faltariam consciências rebeldes à submissão e dispostas a dar testemunho da impostura.
Esta lição, pelo menos, aprendera já: - que havia espíritos indomáveis que nenhuma força vergava, e que, no plano dos valores humanos, ninguém, está sozinho no mundo, por mais isolado que pareça. Que sempre uma legião de sombras vem solícita em nosso socorro dos confins da memória [e do mundo espiritual], nas horas de aflição. Antepassados e contemporâneos, vinculados às mesmas ideias e sentimentos, que primeiro nos aconselham, estimam e amparam, numa exemplaridade paradigmática, e depois, como isentos horizontes, medem imparcialmente a grandeza das acções que praticamos, e nos santificam ou amaldiçoam ao rigor da sua luz.
De todos eles recebia agora ajuda, cada qual a lembrar-me o seu comportamento varonil de lutas e agruras. Casos trágicos de sacrifício total, abnegações levadas às últimas consequência, estoicismos quase sobre-humanos, e até fraquezas lamentáveis, redimidas por suicídios heróicos na hora da exaustão. Uma cívica comunhão de santos que inseria a dignidade individual no contexto colectivo, a fragilidade do vime no vigor do feixe. João António, Pedro Martins, Manuel Paulo, Aníbal Vieira... - lia a custo. Nomes desconhecidos gravados na caliça salitrada com o rebordo da colher»...
Nestes tempos de novas censuras e opressões saibamos também nós, em sintonia grata com Miguel Torga e os seus companheiros e camaradas, suportar e vencer as manipulações e investidas, ou as detenções e bloqueios que nos fizerem, persistindo na luz, na justiça, na verdade, na fraternidade, no amor e na liberdade...
4 comentários:
Felizmente encontramos uma voz lúcida que escreve sobre um Autor incomparável,- Miguel Torga. Este Escritor fez as delícias da minha juventude, escreveu com uma multiplicidade de emoções e sentimentos. As suas personagens filtradas na dimensão reflectida nas vivências humanas e traduzindo o sublime...
Pedro, muito obrigada pela memória, em dia de aniversário, pela sua generosidade em dedicar-se a este grandioso ESCRITOR / POETA, neste tempo de deserto solitário.
Tenhamos esperança de poder voar nas asas do vento, de sonhar...
Abraços,
Manuela
Graças muitas, Manuela, pela sua simpática e estimulante apreciação, tanto mais que com o Fernão Magalhães conheceram e conviveram com o Miguel Torga. Sem dúvida um autor que bem merece a nossa releitura e meditação, como acontece sempre que venho estar algum tempo no Gerês transmontano, vossa terra natal. E que possamos continuar a lembrá-los, amá-los e continuá-los, tal como aliás a Manuela já fez na sua tão valiosa editora Tarataruga, com o excelente livro do Fernão "Ser e Ler Miguel Torga". Abraço bem luminoso!
Pedro, muito obrigada por tudo que tem feito à volta da nossa Cultura. É, sem dúvida, o melhor e mais valioso que possuímos. Será, sempre, o tesouro mais verdadeiro e precioso...abraços, Manuela
Graças muitas, Manuela,pelo cumprimento e estímulo, tanto para mim como para si, para não esmorecermos por vezes dado o desinteresse da maioria face à nossa tão multifacetada e valiosa cultura e suas grandes almas... Abraço luminoso.
Enviar um comentário