quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Manuel Duarte de Almeida e o seu contributo no " Antero de Quental In Memoriam", bem valorizado por José Bruno Carreiro.


                                           

Manuel Duarte de Almeida (1844-1914), foi um transmontano natural de Vila Real, estudante de Farmácia na Universidade de Coimbra, tal como o seu irmão Custódio, de Medicina, na época áurea de Antero de Quental e da sua geração, quando se abriram as portas à modernidade europeia em Portugal. Participou mesmo em Abril de 1864 na famosa saída dos estudantes liderados por Antero para o Porto, a Rolinada, em protesto contra o chefe do Governo José
Rolim de Moura, 1º duque de Loulé.
Após a formatura, embora tivesse exercido farmácia em Vila Real,
preferiu entrar na Administração dos Correios (tendo-se casado em 1880, com descendência) e depois (1902) na Direcção Geral de Instrução Pública, e dedicar-se à poesia, alguns dos seus poemas tendo tido grande sucesso e consagração, nomeadamente pelo seu conhecimento científico e amor a Portugal, e o  último deles, Vai Victoribus!  escrito contra o imperialismo inglês por ocasião do Ultimato de 1890, mereceu um forte elogio do seu amigo Antero de Quental, em carta do Porto, de 24-III-1890: «Recebi o teu admirável poema, que, esperando eu sempre muito de ti, excedeu ainda a minha expectativa. A tua linguagem simples, forte, intensa, é verdadeiramente clássica. 

Escrevo à pressa. Teu do Coração, Anthero de Quental» 

Ora o infatigável publicista José Bruno Carreiro, a propósito do último período de vida de Antero, transcreve na sua ainda hoje incontornável obra Antero de Quental, Subsídios para a sua Biografia, 1948, no 2º volume, páginas 227 e seguintes, parte do contributo de Manuel Duarte de Almeida no In Memoriam de Antero de Quental, considerando-o «tão importante que cada um dos seus pormenores deve ser fixado e retido, como contribuição de alto valor para o conhecimento do seu estado de espírito nessa época. Procurando encontrar o que poderia ter-lhe "armado o braço com que, deliberada e friamente, pôs termo à sua preciosa existência", o velho amigo de Antero começou por reconstituir o último período da sua vida"... E começa a transcrever algumas partes, com comentários interessantes, embora os primeiros parágrafos do contributo tenham sido omitidos, nos quais Manuel Duarte de Almeida defende o direito ao suicídio e traça uma breve síntese do carácter de Antero. Ora como escreveu com bastante conhecimento, já que era dois anos apenas mais novo do que Antero e foram amigos desde pelo menos  1863 até 1891, oiçamo-lo: 

«É preciso pôr, completamente, de parte a ideia de padecimentos físicos incomportáveis, que pelo desespero, levassem o Antero à trágica resolução, que tão inesperadamente pôs termo aos seus dias.
Tal hipótese é a meu ver, absolutamente insustentável - e só quem não conhecesse a rija tempera daquele carácter, um tanto desigual, é certo, mas heróico, mas dotado, em sumo grau, de todas as energias morais; só quem não soubesse do, relativamente, plácido e resignado viver do Antero nos últimos tempos é que a poderia admitir.
O Antero só era fundamental vulnerável aos sofrimentos do espírito, ao mal do pensamento, e creio bem que nunca o tormento físico, por mais cruel e dilacerante que fosse, lograria quebrantar-lhe a robustez de animo a ponto de o forçar a eximir-se-lhe por um acto de fraqueza. Não que eu capitule assim a solução do suicídio, em toda e qualquer hipótese que ele se produza. casos pode haver e há, com feito, em que o suicídio, longe de revelar pusilanimidade, de significar ausência de energia para arcar corajosamente com as dificuldades da existência ou para suportar o peso de amarguras e adversidades iníquas e inexplicáveis que nos couberam em partilha, é, pelo contrário, um acto de coragem serena e reflectida, uma prova autêntica de verdadeira grandeza moral. É escusado recordar exemplos históricos e por demais eloquentes, que sobejamente o comprovam e que a ninguém medianamente ilustrado é lícito desconhecer.»
Saltando estes quatro parágrafos e mais quatro, Bruno Carreiro começa a transcrever assim: "A derradeira fase da existência do Antero derivou pacífica e repousada. As grandes lutas morais e sobretudo intelectuais, que no seu espírito por vezes tão violentamente se debateram, haviam cedido o lugar a uma serenidade calma e filosófica, feita de decepções e amarguras, como é a sorte de nós todos, mas nem, por isso, menos sólida e resistente; a uma quase perfeita conformidade, em suma, com as condições humanas da existência, com as suas dores e as suas misérias, intransferíveis e inevitáveis, conformidade que era nele aureolada pelo divino reflexo da bondade moral que de si espargia e fortalecida pelo ascendente prestigioso que ele bem conhecia exercer no círculo restrito dos amigos que o admiravam e compreendiam... Os padecimentos físicos haviam acalmado. As insónias, aquelas pavorosas e memoráveis insónias, que tão horridamente o haviam torturado durante a época mais agitada da sua vida intelectual e que eram devidas, sem dúvida, ao trabalho incessante, trabalho profundo e exaustivo, do seu poderoso cérebro, no período de gestação e sistematização das suas ideias filosóficas, acabaram afinal por desaparecer completamente, permitindo-lhe um sono tranquilo e fisiologicamente reparador. [Nota: Luís de Magalhães, escrevendo para a Província em 25-IX-1891, confirma-o: «Há bons seis anos que o seu estado geral melhorara. A terrível excitação dos nervos acalmara; alimentava-se bem, ainda que uma só vez ao dia; e as tormentosas insónias, que tanto o haviam martirizado, só de longe em longe e excepcionalmente se repetiam»]. O apetite, e com ele o vigor físico – um certo vigor físico, é claro – voltou, como era natural. Dava passeios de légua, a pé, sem experimentar a menor fadiga, como por mais de uma vez me asseverou... Alimentava-se pouco e uma só vez por dia. Devo, todavia, acrescentar que esse pouco bastava à sua regular nutrição, como ele próprio o reconhecia, sendo certo que, desde muito, se habituara completamente a esse regime sóbrio e que possuía a inestimável felicidade de se dar bem com ele, sem que vez alguma sentisse a necessidade de o alterar». (pág. 228).

                            
Depois de afirmar mais de uma vez que Antero estava bem e satisfeito com o seu regime dietético, bem como com a construção filosófica a que chegara, Duarte de Almeida interroga-se quanto a ele necessitar de partir para os Açores e narra algumas das conversas que tiveram nas quais Antero confessou que «as suas queridas pupilas estavam senhoras feitas. Acabavam de sair do colégio; precisavam de entrar no mundo, de abandonar aquela monótona e arredada tebaida de Vila Conde». Depois havia a conveniência de uma casa grande: «O Antero não podia prescindir de casa espaçosa e ampla, com um vasto salão, pelo menos, onde pudesse isolar-se, em plena liberdade, passear de extremo a extremo, quando o seu espírito nervosamente exigia concentração criadora, a ausência de todo o ruído, o afastamento de toda a comunicação com o mundo exterior».
E por fim precisava de um ambientes sereno e livre da agitação lisboeta para «reduzir a sistema o conjunto de as suas ideias filosóficas, de as coordenar e fundir em corpo de doutrina, dando-lhe a forma arquitectural e técnica, a definitiva redacção, em suma (...) Para um tal empreendimento, Lisboa não lhe podia convir» pois «a intriga é enorme, trovejante, ensurdecedora (...) e nenhuma ideia convergente, nem sombra de pensamento patriótico - sincera e desinteressadamente patriótico - salvas raríssimas excepções, entre tantos alvitres opostos, tantos desalentados queixumes, tantas invectivas pessoais e miseráveis intrigas e inconscientes afirmações do mais impudente e desvairado egoísmo!»
São muito interessantes os sucessivos parágrafos em que Manuel Duarte de Almeida, amigo íntimo de Antero, reconstitui os diálogos tidos com Antero, com uma linguagem por vezes tão invulgarmente astral que ficamos siderados. Atente-se aos efeitos da "absurdeza e puerilidade das ideias emitidas pela vacuidade vertiginosa de uns cérebros", pois «em tais condições é impossível pensar. Toda a serenidade, de que o espírito necessita, esfarrapa, dissolve-se na bruma espessa, gelatinosa, desse meio asfixiante, dessa bisbilhotice mórbida, tão incorrigível, quanto insaciável, ficando-nos, de tudo, uma grande sensação de fadiga, de aborrecimento, de insuperável e apavorada repulsão.»
Quanto ao suicídio, considerando ser «difícil coisa, em verdade, averiguar e surpreender num espírito tão complexo e profundo ( e ao mesmo tempo tão cândido e cristalino!) as causas psicológicas, que poderiam determinar tão irreparável resolução põe a hipótese então de subitamente, num dos seus rompantes e assentes no seu sistema nervoso frágil, na sua "hereditariedade mórbida", considerando a imperfeição do seu trabalho ou escrito, que já o levara a rasgar o Programa de Trabalhos para as Gerações Novas, decidir partir da Terra, já que se desiludira da perfeição da sua filosofia. Não cremos contudo que seja esta explicação, pois não houvera descobertas que suscitassem tal derrocada de uma construção ainda hoje válida filosoficamente, embora certamente com outros conceitos, tais os da física quântica, a sustentarem-na, mas são valiosas as caracterizações que faz da demanda filosófico-espiritual de Antero, do seu sistema, muito ainda no séc. XIX, e certamente a sua espiritualidade ter-se-ia erguido mais fortemente senão se tivesse embrenhado tanto na filosofia alemã...

Mas oiçamos então a hipótese posta por Manuel Duarte de Almeida: «O sistema filosófico do Antero, a aliança íntima do espiritualismo e do materialismo, indissoluvelmente fundidos num misticismo superior e transcendente, seria, na realidade, um sistema perfeito, impecável, absoluto, invulnerável e inacessível à acção e à influência progressiva das ciências físico-naturais, que na sua ininterrupta evolução têm feito ruir por terra as maiores produções do espírito humano, para as substituir por novas fórmulas e novas concepções, que, a seu turno, cederão o lugar a outras que melhor corresponderão e satisfaçam a um mais adiantado grau de civilização?
- O meu sistema é sólido, indefectível, dizia-me o Antero um dia, no quintalzinho das Águas Férreas [no Porto, na casa de Oliveira Martins], ao terminar uma saudosa e ameníssima palestra, em que, largamente, me expusera a súmula das suas ideias. E, tomado de crescente entusiasmo, prosseguiu: Como vês, assenta maciçamente no solo, sem precisar de escoras. Eleva-se por si, naturalmente; não carece do auxílio emprestado de estranhas teorias nem de vagas hipóteses ou postulados iniciais. O progresso das ciências físicas, seja qual for, há de fazer-se dentro do meu quadro e não virá senão confirmar, cada vez mais, a solidez indestructível da minha construção.
Tal era, com efeito, a sua convicção íntima no momento em que me falou. Mas o espírito do Antero era eminentemente progressivo e móbil, de uma plasticidade inigualável ou só igualada pela sua insaciável sede de saber. A dúvida, o monstro incoercível e informe, o lendário abutre do Prometeu, mordia-o, espicaçava-o, de contínuo, como sucede a todos os espíritos daquela envergadura e compleição. E se ele viesse a descobrir uma falha, uma fenda, por onde o seu grandioso sólido edifício? (...) Verificada essa impossibilidade, ou como tal julgado, de conseguir esse desideratum supremo, cessou toda a razão de existir. Avivarei este tópico essencial, que cumpre não esquecer: os combates de ideias foram sempre os que mais violenta e dilacerantemente se travaram na personalidade moral de Antero. Era do pensamento sobretudo que ele sofria, muito mais que do corpo ou ainda do coração.»
Discordamos da hipótese da desilusão filosófica, como já dissemos, pois as últimas conversas já nos Açores não mostram isso, e muito provavelmente Manuel Duarte de Almeida não soube dos problemas de Antero com a irmã a propósito da guarda e educação das crianças, quanto a mim o factor decisivo do suicídio, tanto mais que se tinham tornado, tal como são mencionadas neste contributo, "mulheres feitas".
Como o preito da amizade profunda é expresso várias vezes neste contributo e com uma qualidade tão grande, concluiremos esta breve homenagem à amizade de Manuel Duarte de Almeida e Antero de Quental acrescentando, de outras partes do seu contributo para o imortal In-Memoriam de Antero de Quental, as que ele exprimiu no seus dois últimos parágrafos:
«Sim. Nestas breves e descoradas linhas, não procurei tracejar um Antero sobrenatural e fantástico, para ter o pretexto e o prazer de lhe acolchetar depois os factos e os comentários críticos, e bordar sobre essa criação da minha fantasia um tecido cintilante de imaginosas pedrarias, de tropos faiscantes, ou recamado de eruditas e autoritárias considerações.
Narrei singelamente factos: formulei conjecturas e induções; e se, de umas e de outras, não ressaltar, irrefragável, a evidência das conclusões alvejadas, destacar-se-á, pelo menos, espero eu, um pálido reflexo dessa imortal e radiosíssima figura - soberbo diamante preto, de incomparável e profundo fulgor, que nas letras portuguesas riscou tão inapagável e inconfundível traço - desse paladino idealista e intemerato sonhador, que, alfim, se partiu em demanda da sua fria noiva sepulcral, deixando nos corações dos que a amaram uma tão vívida saudade, uma tão indelével e espontânea e simpática veneração».
Foz do Douro, 24 de Janeiro, 1894. M. Duarte d'Almeida.

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